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26 de março de 2018
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21:08

Após dois anos, atracadouro do Guaíba é reinaugurado. ‘Quem frequentará nova orla?’, questiona ativista

Por
Sul 21
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Entrega do novo atracadouro construído junto à Usina do Gasômetro. Fotos: Joana Berwanger/Sul21

Giovana Fleck

“Esse momento histórico marca a retomada da relação entre as pessoas e a orla do Guaíba”, afirmou, em tom eufórico, o prefeito Nelson Marchezan Jr (PSDB). Assim como vereadores, secretários, cônsules e outras figuras políticas, Marchezan participou da entrega do novo atracadouro construído junto à Usina do Gasômetro. O espaço, que integra o conjunto de obras de revitalização da orla do Guaíba, irá concentrar a atividade dos barcos turísticos na região. A entrega da obra aconteceu nessa segunda-feira (26),  dia em que Porto Alegre comemora 246 anos. Segundo o vereador e presidente da Câmara Municipal dos Vereadores, Valter Nagelstein (PMDB), o atracadouro representa “a Porto Alegre que os açorianos sonharam”.

Primeira obra da chamada “revitalização da orla” a ser entregue, o atracadouro visa impulsionar o turismo náutico do Guaíba. Segundo dados de 2015, divulgados pela Prefeitura, o segmento recebeu mais de 180 mil turistas e moradores no ano, gerando uma arrecadação de aproximadamente R$ 3,6 milhões. Três embarcações voltarão a ser atracadas na área: Cisne Branco, Porto Alegre 10 e Noiva do Caí. O custo do passeio fica em torno de R$ 30 por pessoa. Segundo o diretor de Turismo da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico, Roberto Snel,  foram investidos cerca de R$ 20 milhões na estrutura, com investimento originário do CAF (Corporação Andina de Fomento, auto-identificada como Banco de Desenvolvimento da América Latina desde 2010).

“Os defensores do atraso” e “os que querem fazer as mudanças”

Marchezan lembra que, por dois anos, Porto Alegre não teve acesso a um atracadouro público nos 73 km de orla, apenas particulares. Fotos: Joana Berwanger/Sul21

Após o fim do repertório da Banda Municipal de Porto Alegre, que finalizou com uma versão de “Heal the world” (Cure o mundo), todas as autoridades presentes foram convidadas a subir ao palco. Apenas duas mulheres se posicionaram entre mais de quinze homens. Uma delas se erguia na ponta dos pés para enxergar a plateia, atrás de duas fileiras de representantes de paletó.

Na cerimônia, Marchezan iniciou sua fala enaltecendo a “equipe que aceita enfrentar os desafios impostos à cidade” e agradecendo a participação de governos anteriores na realização da obra. O atracadouro começou a ser reformado em outubro de 2015, na gestão de José Fortunati. Por conta das cheias, as obras tiveram que parar quase imediatamente depois de seu início – fazendo com que o deck tivesse que ser repensado e erguido um metro acima do original.

Marchezan lembrou que, por dois anos, Porto Alegre não teve acesso a um atracadouro público nos 73 km de orla, apenas particulares. “Nós precisamos de outras obras para, atenção à palavra, socializar a nossa orla. […] Para isso, precisamos de investimentos privados”, completou. Ele justificou o atraso na entrega da obra com uma combinação do descumprimento do calendário por meio da empresa responsável (o consórcio Orla Mais Alegre, nesse caso, especialmente o escritório Jaime Lerner Arquitetos) e de exageros burocráticos na parte pública, o que, para ele, correspondem a interesses “ideológicos e de poder”. Ele criticou os partidos de oposição na Câmara, usando expressão cunhada por Nagelstein: “Nós temos dois partidos que são os defensores do atraso e aqueles que querem fazer as mudanças necessárias.” O prefeito diminuiu o tom, suavizando a voz. “Nós precisamos estar juntos dentro das mesmas ideologias”, completa. Ainda assim, parabenizou todos os vereadores por “compor a cidade”.

Contradições

Com as obras paradas, a Usina do Gasômetro também aguarda conclusão. Fotos: Joana Berwanger/Sul21

Marchezan foi decisivo ao afirmar que a Prefeitura não tem dinheiro para obras de infraestrutura. Por isso, em seu discurso, clamou pelo apoio dos vereadores para que parcerias entre o setor público e o privado sejam aprovadas. “Precisamos apoiar um grupo de ideias comuns”, ressaltou. Ele exemplificou afirmando que a orientação é que os 12 parques e as mais de 600 praças de Porto Alegre tenham a manutenção garantida por concessões para que “a iniciativa privada faça investimentos em prazos inimagináveis dentro da ordem pública”.

O prefeito também lamentou a perda de investimentos internacionais com o rebaixamento da nota de risco pela Secretaria do Tesouro Nacional (STN).“Isso é uma consequência das nossas decisões […] e a solução é fazermos por nós mesmos.” Para Marchezan, o “fazer por nós mesmos” significa suprir esses financiamentos com a ajuda do setor empresarial.

Cobrança por participação

“Sempre é o mesmo discurso riscado, em que o prefeito afirma que não tem dinheiro,” comentou Clara Alencastro, que integra a Rede Minha Porto Alegre, coletivo que incentiva a participação cidadã na construção da cidade. Desde o início das obras, a Rede mantém o projeto Cais Mauá de Todos, que cobra a abertura de uma nova licitação com novas empresas para realizar as obras no Cais Mauá e na orla do Guaíba. “É só pesquisar rapidamente no Google que tu encontra diversas irregularidades nos históricos dessas empresas”, afirmou Clara.

Em 2016, a empresa responsável pela concepção arquitetônica do atracadouro, a Jaime Lerner Arquitetura, foi alvo de uma operação da Polícia Federal que investiga suposta fraude na licitação para a construção do BRT de Palmas. Um ano mais tarde, o relatório conclusivo da operação acusou o prefeito de Palmas, Carlos Amastha (PSB) ,por corrupção passiva e associação criminosa. Em 2018, Jaime Lerner foi convocado para prestar esclarecimentos sobre sua relação “amigável” com Amastha.

Por conta das cheias, as obras tiveram que parar quase imediatamente depois de seu início – fazendo com que o deck tivesse que ser repensado e erguido um metro acima do original. Fotos: Joana Berwanger/Sul21

Clara ressaltou que o foco da Minha Porto Alegre não é impedir que as obras ocorram, mas cobrar para que sejam concluídas dentro de prazos viáveis e por empresas cujo histórico não seja “duvidoso”. “Mas nós sabemos que é a nossa missão Don Quixote. É praticamente impossível.” Ela usou o exemplo da campanha de Marchezan, que prometia resolver os problemas de burocracia da Prefeitura. “Ele não cumpriu com isso, pelo contrário, só burocratizou mais. A lei antivandalismo, por exemplo, é algo que só vai requerer mais processos para que uma manifestação legítima vá para as ruas.” Além disso, Clara questionou quem vai frequentar a nova orla. “A gente sabe que política privada reflete em serviços que são só para alguns. Quando batalhamos, batalhamos para que todos tenham acesso”, resume.

A Prefeitura afirma que as obras do Trecho 1 da orla estão em fase final, com 96% de conclusão. No entanto, os trechos 2 e 3, que se estendem entre a Fundação Iberê Camargo, o Barra Shopping Sul e o Estádio Beira-Rio ainda não têm previsão de entrega.

Ao final do discurso do prefeito, as três embarcações soaram suas buzinas. Marchezan esticou seu corpo para voltar ao microfone. “Nem toda corneta é ruim.”

Fotos: Joana Berwanger/Sul21

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