Giovana Fleck
“Esse momento histórico marca a retomada da relação entre as pessoas e a orla do Guaíba”, afirmou, em tom eufórico, o prefeito Nelson Marchezan Jr (PSDB). Assim como vereadores, secretários, cônsules e outras figuras políticas, Marchezan participou da entrega do novo atracadouro construído junto à Usina do Gasômetro. O espaço, que integra o conjunto de obras de revitalização da orla do Guaíba, irá concentrar a atividade dos barcos turísticos na região. A entrega da obra aconteceu nessa segunda-feira (26), dia em que Porto Alegre comemora 246 anos. Segundo o vereador e presidente da Câmara Municipal dos Vereadores, Valter Nagelstein (PMDB), o atracadouro representa “a Porto Alegre que os açorianos sonharam”.
Primeira obra da chamada “revitalização da orla” a ser entregue, o atracadouro visa impulsionar o turismo náutico do Guaíba. Segundo dados de 2015, divulgados pela Prefeitura, o segmento recebeu mais de 180 mil turistas e moradores no ano, gerando uma arrecadação de aproximadamente R$ 3,6 milhões. Três embarcações voltarão a ser atracadas na área: Cisne Branco, Porto Alegre 10 e Noiva do Caí. O custo do passeio fica em torno de R$ 30 por pessoa. Segundo o diretor de Turismo da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico, Roberto Snel, foram investidos cerca de R$ 20 milhões na estrutura, com investimento originário do CAF (Corporação Andina de Fomento, auto-identificada como Banco de Desenvolvimento da América Latina desde 2010).
“Os defensores do atraso” e “os que querem fazer as mudanças”
Após o fim do repertório da Banda Municipal de Porto Alegre, que finalizou com uma versão de “Heal the world” (Cure o mundo), todas as autoridades presentes foram convidadas a subir ao palco. Apenas duas mulheres se posicionaram entre mais de quinze homens. Uma delas se erguia na ponta dos pés para enxergar a plateia, atrás de duas fileiras de representantes de paletó.
Na cerimônia, Marchezan iniciou sua fala enaltecendo a “equipe que aceita enfrentar os desafios impostos à cidade” e agradecendo a participação de governos anteriores na realização da obra. O atracadouro começou a ser reformado em outubro de 2015, na gestão de José Fortunati. Por conta das cheias, as obras tiveram que parar quase imediatamente depois de seu início – fazendo com que o deck tivesse que ser repensado e erguido um metro acima do original.
Marchezan lembrou que, por dois anos, Porto Alegre não teve acesso a um atracadouro público nos 73 km de orla, apenas particulares. “Nós precisamos de outras obras para, atenção à palavra, socializar a nossa orla. […] Para isso, precisamos de investimentos privados”, completou. Ele justificou o atraso na entrega da obra com uma combinação do descumprimento do calendário por meio da empresa responsável (o consórcio Orla Mais Alegre, nesse caso, especialmente o escritório Jaime Lerner Arquitetos) e de exageros burocráticos na parte pública, o que, para ele, correspondem a interesses “ideológicos e de poder”. Ele criticou os partidos de oposição na Câmara, usando expressão cunhada por Nagelstein: “Nós temos dois partidos que são os defensores do atraso e aqueles que querem fazer as mudanças necessárias.” O prefeito diminuiu o tom, suavizando a voz. “Nós precisamos estar juntos dentro das mesmas ideologias”, completa. Ainda assim, parabenizou todos os vereadores por “compor a cidade”.
Contradições
Marchezan foi decisivo ao afirmar que a Prefeitura não tem dinheiro para obras de infraestrutura. Por isso, em seu discurso, clamou pelo apoio dos vereadores para que parcerias entre o setor público e o privado sejam aprovadas. “Precisamos apoiar um grupo de ideias comuns”, ressaltou. Ele exemplificou afirmando que a orientação é que os 12 parques e as mais de 600 praças de Porto Alegre tenham a manutenção garantida por concessões para que “a iniciativa privada faça investimentos em prazos inimagináveis dentro da ordem pública”.
O prefeito também lamentou a perda de investimentos internacionais com o rebaixamento da nota de risco pela Secretaria do Tesouro Nacional (STN).“Isso é uma consequência das nossas decisões […] e a solução é fazermos por nós mesmos.” Para Marchezan, o “fazer por nós mesmos” significa suprir esses financiamentos com a ajuda do setor empresarial.
Cobrança por participação
“Sempre é o mesmo discurso riscado, em que o prefeito afirma que não tem dinheiro,” comentou Clara Alencastro, que integra a Rede Minha Porto Alegre, coletivo que incentiva a participação cidadã na construção da cidade. Desde o início das obras, a Rede mantém o projeto Cais Mauá de Todos, que cobra a abertura de uma nova licitação com novas empresas para realizar as obras no Cais Mauá e na orla do Guaíba. “É só pesquisar rapidamente no Google que tu encontra diversas irregularidades nos históricos dessas empresas”, afirmou Clara.
Em 2016, a empresa responsável pela concepção arquitetônica do atracadouro, a Jaime Lerner Arquitetura, foi alvo de uma operação da Polícia Federal que investiga suposta fraude na licitação para a construção do BRT de Palmas. Um ano mais tarde, o relatório conclusivo da operação acusou o prefeito de Palmas, Carlos Amastha (PSB) ,por corrupção passiva e associação criminosa. Em 2018, Jaime Lerner foi convocado para prestar esclarecimentos sobre sua relação “amigável” com Amastha.
Clara ressaltou que o foco da Minha Porto Alegre não é impedir que as obras ocorram, mas cobrar para que sejam concluídas dentro de prazos viáveis e por empresas cujo histórico não seja “duvidoso”. “Mas nós sabemos que é a nossa missão Don Quixote. É praticamente impossível.” Ela usou o exemplo da campanha de Marchezan, que prometia resolver os problemas de burocracia da Prefeitura. “Ele não cumpriu com isso, pelo contrário, só burocratizou mais. A lei antivandalismo, por exemplo, é algo que só vai requerer mais processos para que uma manifestação legítima vá para as ruas.” Além disso, Clara questionou quem vai frequentar a nova orla. “A gente sabe que política privada reflete em serviços que são só para alguns. Quando batalhamos, batalhamos para que todos tenham acesso”, resume.
A Prefeitura afirma que as obras do Trecho 1 da orla estão em fase final, com 96% de conclusão. No entanto, os trechos 2 e 3, que se estendem entre a Fundação Iberê Camargo, o Barra Shopping Sul e o Estádio Beira-Rio ainda não têm previsão de entrega.
Ao final do discurso do prefeito, as três embarcações soaram suas buzinas. Marchezan esticou seu corpo para voltar ao microfone. “Nem toda corneta é ruim.”