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27 de maio de 2018
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12:31

Residencial dá exemplo de como integrar à sociedade pessoas com problemas de saúde mental

Por
Sul 21
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Nos seis anos em que ficou em Cachoeira, Maria Geneci foi mantida presa a cada episódio de descontrole. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Giovana Fleck

Dona Laura não escuta e nem fala. Ela gosta de andar envolta por um casaco quentinho com capuz, mesmo no verão. Ela dá a mão para conseguir apoio para subir escadas, mesmo que não conheça a pessoa para quem pede ajuda. De degrau em degrau, sobe até chegar em seu quarto. A cama bem arrumada fica perto da janela. Com as mãos dentro dos bolsos do casaco, ela senta e observa.

Aos 50 anos, Dona Laura tem um espaço que pode chamar de casa. Seus últimos 40 anos, no entanto, foram vividos no Hospital Vera Cruz, em Sorocaba (SP). Após denúncias e investigações que confirmaram casos de abuso e cárcere dos pacientes, o hospital foi oficialmente fechado em março de 2018. Com a desativação, a cidade de Sorocaba – que já foi o centro do maior polo manicomial no Brasil, com 2,7 mil pacientes – fechou oficialmente todos os seus hospitais psiquiátricos.

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Por isso, Dona Laura veio parar em Porto Alegre. Pouco se sabe de sua história. Segundo Salete de Moura, ela é muito afetiva e demonstra isso se aproximando. A comunicação com ela se estabelece no convívio, já que ela nunca aprendeu a linguagem de sinais. “É no olhar, no toque”, explica. No dia do seu aniversário, foi organizada uma festa para ela. “Tinha que ter visto a alegria dela. […] Ela tem direito a isso, ao que pode ser oferecido de melhor. Ela já passou por tanta coisa difícil, todos precisam de estímulos, de incentivo. Precisa ter alguém para olhar e acreditar nas capacidades do outro.”

A estrutura de atendimento e cuidado da população que sofre de algum transtorno mental ainda passa por adequação. Fruto do fortalecimento da luta antimanicomial, a desativação gradual desse tipo de hospital e a sua substituição por uma rede articulada de atendimento, ao menos desde a década de 1990, tem o nome de “desinstitucionalização”. O novo quadro da saúde mental no Brasil ainda em formação continua sendo, no entanto, alvo de disputa. Quinze anos depois da publicação da chamada Lei da Reforma Psiquiátrica, vigora no país um embate sobre o melhor modo de se atender a população com sofrimento psíquico tendo em vista o horror por muito tempo ignorado como o do Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais.

A coordenadora, Salete de Moura, em um dos quartos. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Residencial Terapêutico Nova Vida

O Residencial Terapêutico Nova Vida é a única casa de assistência para usuários Tipo 2 – com menor autonomia – mantido pela Prefeitura de Porto Alegre. Há outras na cidade, mas todas vinculadas à iniciativa privada. A capacidade do Nova Vida é para até 10 usuários. Hoje, oito residem no local – mas mais duas pessoas deverão ocupar as vagas restantes em breve.

Fora ele, existe um estabelecimento para atender usuários Tipo 1, com maior independência. É uma casa localizada na rua Cristiano Fischer, dentro de um condomínio com outros moradores. Ali, quatro pessoas podem morar e aprender com a liberdade do cotidiano, enquanto contam com acompanhamento semanal dos funcionários da saúde. Depois disso, podem voltar para o convívio com a família ou ter sua moradia própria. 206 pessoas já passaram pelo sistema; a coordenação garante que todas conquistaram sua autonomia através do processo.

Em julho do ano passado, o Nova Vida se mudou para uma estrutura construída pensando nos moradores e funcionários. Saíram do bairro Cristal para uma casa mais centralizada, na rua Santana. Com paredes brancas e piso bege, a estrutura ainda se assemelha a um hospital. “Mas, aos poucos, estamos dando ares de casa”, afirma Salete, pedagoga e coordenadora do espaço. No térreo, há a parte administrativa, além de uma cozinha e salas de convivência. Um espelho grande, de corpo inteiro, está apoiado em um dos corredores. “Você não sabe a importância que tem um espelho no dia a dia”, diz a coordenadora enquanto uma das usuárias olha seu reflexo.

No andar de cima estão os quartos. Cada cômodo é dividido por uma dupla. Todos têm cama, armário, cabeceira e um cesto de roupas sujas. O Residencial é atendido por uma equipe de higienização, mas cada usuário também é responsável pela organização e limpeza do espaço. Uma churrasqueira foi instalada em uma área externa, pensando em comemorações e outras atividades.

A equipe de saúde do Nova Vida é composta por enfermeiros, técnicos de enfermagem, psiquiatra e nutricionista.

O quarto de Maria Geneci, mobiliado e decorado por ela. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Autonomia e cuidado em primeiro lugar

“Quando está frio, a gente sabe que precisa colocar um sapato quente, um casaco. A gente tem autonomia pra pensar no próprio frio. Quem esteve institucionalizado, não tem”, afirma Salete. Com base em sua experiência, ela conta que os usuários que passaram por sistemas de extrema vulnerabilidade apresentam dificuldade de relacionar o que sentem com soluções simples, como colocar uma meia. “Se não tiver alguém que faça essa intervenção, se não ajudar, a pessoa vai passar frio.” Salete conta que, ao trabalhar isso no cotidiano, o usuário acaba se tornando independente. “Mas cada um vai no seu tempo”, completa.

Salete cita o exemplo do Hospital Espírita de Porto Alegre. Com a Reforma Psiquiátrica, pacientes internados após surtos só poderiam permanecer nas instituições por até 21 dias. No Hospital Espírita, algumas pessoas estão aguardando liberação há sete anos. “A solução sempre parece ser a internação, o isolamento do convívio social”. Para ela, a internação compulsória ocorre por conta de uma fragilidade do sistema. “É muito difícil lidar com o sofrimento psíquico. Não tem como não se afetar. Tu tem que ter uma estrutura boa e exercitar muito no teu cotidiano a crença de que isso dá certo.”

Tapete feito em uma das oficinas das quais os usuários fazem parte. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Leandro foi um dos egressos do Hospital Espírita. Salete conta que, quando foi visitá-lo, ele vestia uma calça de moletom rasgada e manchada. Fazia frio, Salete foi agasalhada. Leandro, no entanto, usava apenas chinelos de dedos sem meias. “Era um de cada cor. Estava cabeludo, com as unhas compridas.” Ele dizia que queria voltar para casa. Porém, a casa de Leandro, onde ele vivia com os pais, foi destruída pelas chuvas. Seus pais também faleceram.

Depois disso, ele foi interditado pelo Estado. “É a pior coisa que pode acontecer na vida de uma pessoa”, resume Salete. Através da “ação de interdição”, ele foi declarado incapaz para os atos da vida civil, sendo nomeado um curador para auxiliá-lo. No caso de Leandro, foi um advogado indicado pelo Ministério Público. A partir disso, ele foi internado.

“Se deixasse, ele passava o dia inteiro na cama. Chamávamos para almoçar, ele sentava, esperava ser servido, comia e deitava. Ele não interagia.” Após três anos vivendo no Vida Nova, Leandro vai terminar o Ensino Fundamental. Ele é conhecido por fazer piadas e contar histórias para os outros. “Levou um ano para que ele se soltasse. Ele vai e volta para a escola sozinho.” Em uma das saídas, Leandro decidiu comprar alguns DVDs para assistir no Residencial. Comprou de um vendedor ambulante, no Centro. O problema foi que um dos filmes havias sido gravado de dentro do cinema e estava com a qualidade muito ruim. “Ele simplesmente disse que ia voltar e trocar. No final, ele não achou mais o vendedor. Mas isso é o máximo do que podia acontecer. Alguém, que passou pelo que ele passou, chegou ao ponto de ter autonomia suficiente para reclamar. Quando eles chegam aí, significa que atingimos o máximo do nosso trabalho. O normal, é ignorarem o que gostam e o que não gostam.”

No caso de Dona Laura, por exemplo, não há um dia ou horário de entrada e outro de saída. “Ela está conosco”, diz Salete. Os pacientes permanecem no Nova Vida pelo tempo que precisarem. “É algo muito difícil de precisar. Quanto tempo leva? Depende de cada um”, diz a coordenadora. Foi Salete quem incentivou os usuários do residencial a interagirem mais com a comunidade fora das dependências da instituição. “Eles podem ir ao cinema, num shopping. Pra isso, pegam um ônibus. E funciona, dá certo. Mas, num primeiro momento, as pessoas ficam com medo, receosas. ‘E se dá um negócio em alguém?’. Bom, se acontecer, aconteceu. Pode dar um negócio em mim também. São situações que não podem nos limitar.”

Os pedidos para ocupar vagas no Nova Vida chega via Secretaria Municipal da Saúde (SMS), alguns por pedido do Ministério Público. Recentemente, a portaria que delimita os perfis para internações foi alterado pelo Ministério da Saúde. Antes, só seriam encaminhadas para o Residencial pessoas que tivessem passado por alguma internação compulsória. Agora, isso não é mais uma prerrogativa.

De 15 em 15 dias, os usuários e os trabalhadores se reúnem em assembleia. Ali, eles negociam os passeios, as viagens e as atividades. Alguns recebem o Benefício da Prestação Continuada (BPC), que equivale a um salário-mínimo mensal. Para cada beneficiário, o Residencial abriu uma conta-poupança. Assim, toda semana, eles recebem uma parte deste dinheiro para fazer compras livres. “É para que eles respeitem o que é da ordem do seu próprio desejo.”

Ge, em frente, e Dona Laura ao fundo durante a caminhada no Dia da Luta Antimanicomial. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Maria Geneci Flores da Rosa, a Ge, chegou ao residencial vinda de uma das 19 instituições psiquiátricas de Cachoeira do Sul. Mãe de três e avó de dois, hoje, ela mantém as fotos da família na cabeceira. A cama, cujo colchão é ergonômico, foi comprada com seu próprio dinheiro. O tapete colorido foi Ge quem fez, amarrando faixas de malha em uma das oficinas da qual faz parte. O rádio está ligado. A rotina de Ge consiste em acordar, tomar o café da manhã, se dedicar ao artesanato, almoçar, escrever, escutar música e, à noite, jantar e ir para a escola – onde está prestes a completar o 4˚ ano do Ensino Fundamental.

Ge tem os cabelos compridos. Recentemente, ela usou parte do seu BPC para colocar um aplique nas pontas. “Desde os 12 anos eu queria ter cabelo comprido. Não dá nem pra dizer que não é meu”, conta, estendendo as pontas para que os outros toquem. Ge se diz feliz. “Aqui a gente tem uma família. Não é dona Salete?”, questiona a coordenadora, indo abraçá-la “É como se fosse a nossa mãe.”

Ao mesmo tempo, Ge tem que conviver com um passado marcado pelos maus tratos. Ela levanta a manga e afasta as pulseiras; revelando uma cicatriz que se estende pelo antebraço. Nos seis anos em que ficou em Cachoeira, Ge foi mantida presa a cada episódio de descontrole. Mergulhada em um ciclo de ansiedade provocada pela falta de estrutura do local e a ausência familiar, ela conta que era mantida amarrada em uma cama por dias.

No dia em que a reportagem visitou o Nova Vida, Ge tinha acabado de escrever um registro em um dos computadores. “Meu nome é Maria Geneci. Por seis anos, morei em Cachoeira. Mas foi muito sofrido para mim. Hoje, moro em Porto Alegre. Faço tricô, estudo e escuto música. É muito bom. É bom estarmos aqui”.

Para Salete, há uma fragilidade muito grande quanto ao apoio antes, durante e após a internação. “Precisamos de mais lugares como esse. Precisamos que ele seja um exemplo de que dá certo”, afirma.

Porto Alegre e a política de desinstitucionalização

Cartaz com o histórico do Residencial Terapêutico Nova Vida. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Em 2018, o Residencial comemorará 28 anos de existência. Mas, ao mesmo tempo, Porto Alegre comemora 28 anos sem a abertura de novas vagas para portadores de doenças psíquicas na rede municipal. Com a introdução do Sistema Único de Saúde (SUS), os municípios passaram a ganhar um protagonismo inédito na gestão da saúde mental. Ainda assim, os sistemas disponíveis não suprem uma demanda crescente. Fora o Residencial, existem os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) – responsáveis por atendimentos individuais ou em grupo, fazendo uso de medicamentos ou oficinas terapêuticas; por visitas aos domicílios dos pacientes, além de supervisionar hospitais psiquiátricos na sua região. Porém, Porto Alegre não conta com um novo CAPS desde 2012.

No dia 23 de maio de 2018, o instituto Human Rights Watch (HRW) divulgou um estudo com algumas conclusões sobre o sistema de internações psiquiátricas no Brasil. Segundo o HRW, milhares de crianças e adultos com deficiência estão confinados em instituições de acolhimento, sem necessidade, e podem enfrentar negligência e abuso. “O Brasil deveria priorizar formas de apoio a pessoas com deficiência que lhes permitam viver de forma independente e em suas comunidades, em vez de segregados em instituições”, aponta o relatório.

Em 86 páginas, a pesquisa intitulada ‘Eles ficam até morrer’: uma vida de isolamento e negligência em instituições para pessoas com deficiência no Brasil’, conclui que muitas pessoas com deficiência no país entram em instituições ainda quando crianças e lá permanecem por toda a vida. A maioria das instituições visitadas por pesquisadores da Human Rights Watch não provia mais do que as necessidades básicas de seus residentes, como alimentação e higiene, com poucas oportunidades de contato relevante com a comunidade ou de desenvolvimento pessoal. Alguns residentes são amarrados às camas e recebem sedativos para controle de comportamento.

Equipe do Nova Vida. Foto: Divulgação

Segundo Giovanni Salum, psiquiatra e coordenador de saúde mental da SMS, a Prefeitura mantém 25 pessoas interditadas dentro da rede privada. Isso acontece pois não há vagas na rede pública. “Temos consciência de que é um gasto muito maior [manter as pessoas em instituições privadas] do que construir espaços municipais. O município perde dinheiro com isso”, pontua. Ele também admite que “internações em hospitais são a mesma coisa que enxugar gelo”.

No entanto, não há como mensurar quantas pessoas, hoje, precisariam do acesso a esse serviço. Segundo Giovanni, todos os registros referentes à rede de saúde mental nunca foram digitalizadas e estão em papel. “A rede de atenção psicossocial está defasada há anos.”

Em uma iniciativa inédita, a gestão Marchezan lançou o Plano de Superação da População de Rua. Através dele, está prevista a inserção de 10 novos residenciais terapêuticos (nos moldes do Nova Vida) com 10 vagas cada um. “Várias pessoas com transtornos mentais não chegam nem aos hospitais, mas passam anos nas ruas”, diz o coordenador. De acordo com ele, a Prefeitura trabalha com uma média de 4 mil pessoas em situação de rua na Capital – das quais 5% seriam portadoras de transtornos mentais graves. Eles serão contratualizados através de chamamentos públicos para conseguir parcerias com entidades filantrópicas. No plano, os residenciais serão estabelecidos em imóveis alugados ou cedidos pelo município. Segundo Giovanni, a verba para isso viria do Ministério da Saúde. Mas detalhes sobre preços e contratações ainda ficam obscuros, podendo ser revelados apenas com a publicação do edital.

O coordenador aponta que a previsão mais realista para concluir esta fase é para o primeiro ou segundo semestres de 2019. No entanto, ainda existem variáveis apontadas por Giovanni como limitantes da execução. Segundo ele, tudo depende de conseguir prestadores de serviços de qualidade, além de um edital forte e um orçamento plausível; mas, principalmente, “do dinheiro chegar e o município investir nessa empreitada”. “Não é nossa pretensão dizer que esses 10 centros irão resolver o problema. Não vão. Mas é alguma coisa.”

 

 


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