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19 de maio de 2018
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18:03

Luta contra manicômios combate a indústria lucrativa da loucura

Por
Sul 21
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Luta contra manicômios combate a indústria lucrativa da loucura
Luta contra manicômios combate a indústria lucrativa da loucura
O hospital de Barbacena, em MG, ficou conhecido como um depósito de pessoas que não eram aceitas, como os homossexuais e as mulheres / Reprodução

Rafaella Dotta – Brasil de Fato

Se você tem familiares ou conhecidos que padecem de sofrimento mental, vai entender o que estamos falando. A loucura é complexa e precisa de cuidados. Os obstáculos se tornam ainda maiores quando o fardo acaba ficando para a pessoa e a família. Como lidar?

O dia 18 de maio é a data escolhida para incentivar que todos conversem sobre a loucura. Até meados de 1970, os hospitais psiquiátricos – os chamados manicômios – eram a única alternativa para quem apresentava sofrimento mental no Brasil. O internamento na maioria das vezes era compulsório, ou seja, o paciente não precisava concordar, e lá ficava até que se “curasse”, ou até o fim da vida.

Ganhando dinheiro com a loucura

Miriam Nadim Abou-Yd, do Fórum Mineiro de Saúde Mental e referência no tema, estima que existiram 100 mil leitos psiquiátricos no Brasil, um número maior que o de leitos pediátricos. “Milhares de hospitais privados foram abertos e quanto mais abriam, mais aumentava a demanda. Se internava todo mundo com motivo ou sem”, alerta. “Não era uma questão de falta de leito, mas de estratégia equivocada de cuidado”, complementa.

Como os hospitais psiquiátricos eram privados, o governo repassava a eles uma verba por cada paciente. Miriam explica que os gastos dentro dos manicômios eram muito pequenos, devido às péssimas condições dadas aos pacientes, e assim o lucro dos donos dos hospitais eram “desmedidos”. Isso ficou conhecido como “indústria lucrativa da loucura”.

Condições monstruosas

Hoje sabe-se de inúmeras denúncias de maus tratos dentro dos manicômios. Os piores exemplos vêm do maior hospício brasileiro, instalado na cidade de Barbacena (MG), e retratado pela teatral “Nos Porões da Loucura”, em cartaz em BH. O ator Marco Túlio Zerlotini impressionou-se ao estudar para seu personagem. O frio, o terrível tratamento de choque e a falta de higiene eram comuns dentro do manicômio.

“O hospital de Barbacena ficou conhecido como um depósito de pessoas que não eram aceitas. Passaram por lá políticos, homossexuais, mulheres e pessoas que tinham dinheiro e queriam esconder alguma situação, por exemplo, uma adolescente grávida”, conta o ator. Para controlar os pacientes o manicômio distribuía medicamentos e eletrochoques. “Não era um ambiente destinado à cura, mas sim para a contenção dessas pessoas”.

Golpe na saúde mental: governos tornam a investir nas internações obrigatórias

As alternativas construídas ao longo dos 30 anos de luta antimanicomial estão em perigo. A entrada do presidente Michel Temer (MDB), através de um golpe, estende à saúde mental uma série de choques também, retomando o fortalecimento das internações e desmontando o Sistema Único de Saúde (SUS). Os retrocessos estão sendo sinalizados em todos os níveis pelos governos nacional, estadual e municipal.

A portaria federal número 3.588 deve causar a maior mudança, analisa a psiquiatra e integrante do Fórum Mineiro de Saúde Mental Miriam Abou-yd. A regra implanta no Brasil uma “nova política nacional de saúde mental”, que faz o governo voltar a investir nos manicômios privados e no objetivo de aprisionar pessoas com algum nível de sofrimento mental ou uso de drogas. Ou seja, de “nova” a política não tem nada.

Para Miriam, o principal problema será o enorme repasse financeiro para as comunidades terapêuticas. Essas comunidades são geralmente religiosas e trabalham com a internação de pessoas envolvidas com álcool e outras drogas. O método usado, na opinião da psiquiatra, é o mesmo do hospício: forçar a abstinência e o aprisionamento, mesmo contra a vontade do indivíduo.

A única fiscalização feita até hoje no país, pelo Conselho Federal de Psicologia em 2011, encontrou violações de direitos nas sete instituições visitadas em Minas Gerais. Segundo o documento, os internos sofrem violência, falta de atendimento médico e psicológico, são proibidos de fazer contato com o mundo externo e algumas entidades não tinham sequer fichas dos usuários. Foram relatados também trabalho forçado e desrespeito à orientação sexual.

As denúncias estão aumentando, mas o financiamento das comunidades não diminui. Em abril o governo federal anunciou R$ 87 milhões para um novo projeto nacional. Inicialmente, seriam R$ 37 milhões do Ministério da Justiça, com a adesão dos Ministérios da Saúde e do Desenvolvimento Social agregou-se mais R$ 50 milhões. O repasse mensal por vaga para as comunidades terapêuticas aumentou de R$ 1 mil para R$ 1.172,88.

Entidades que lutam pelo atendimento em liberdade analisam que a portaria traz também o retorno dos ambulatórios, dos manicômios, retira a ênfase na reabilitação psicossocial e aumenta o número de leitos psiquiátricos em hospitais em geral, com meta de ocupação mínima de 80%.

Internação em Minas

O governo de Minas Gerais tentou contribuir com o repasse às entidades de internação de usuários de álcool e outras drogas. Em junho de 2017, lançou um edital que atenderia a 53 comunidades terapêuticas, no valor de R$ 8 milhões. Os movimentos antimanicomiais conseguiram anular o edital, por enquanto.

Sem SUS, não tem tratamento em liberdade

O segundo grande desfalque na saúde mental será a Emenda Complementar 95. A regra diminui drasticamente o orçamento do Sistema Único de Saúde (SUS) para os próximos anos e irá causar uma verdadeira destruição do sistema. Toda a Rede de Saúde Mental funciona gratuitamente pelo SUS.

A psiquiatra Ana Marta, do Movimento de Trabalhadores da Rede de Saúde Mental de BH, conta que os serviços da capital mineira já começam a sentir a falta de verbas. Há sobrecarga de trabalho nos profissionais, falta manutenção e material. “A rede é ótima, mas se não cuidar e não plantar, a colheita não é boa”.


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