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29 de abril de 2018
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12:59

‘A vida inteira eu fui uma coisa e, no único momento em que isso me ajudaria, não fui reconhecido’

Por
Luís Gomes
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Luan teve a matrícula na UFRGS rejeitada após comissão de aferição de cotas raciais contestar sua autodeclaração | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Luís Eduardo Gomes

Depois de quase dois meses esperando uma decisão sobre sua matrícula no curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), no último 18 de abril, a estudante Aline da Silva Witt recebeu um parecer assinado pelo reitor Rui Vicente Oppermann decidindo que a instituição não irá homologar a sua autodeclaração racial e, portanto, ela irá perder a vaga. O mesmo já havia acontecido com Luan Myque da Silva Figueira, que teve rejeitada a matrícula no curso de História.

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As rejeições das auto-declarações raciais só foram possíveis porque, a partir do processo de vestibular e de ingresso deste ano, a UFRGS passou a submeter todos os aprovados para cotas raciais a uma comissão de aferição com poderes para decidir se eles estavam aptos ou não a ocupar as vagas destinadas a pretos e pardos. O objetivo era barrar as fraudes que vinham sendo fartamente denunciadas por coletivos de estudantes negros e movimentos sociais. O problema, no caso dos dois, é que, após serem rejeitados pela comissão, eles apresentaram ampla documentação para justificar o porquê de terem se autodeclarado negros — o edital da universidade não separa as categorias pretos e pardos, coloca ambas sob negros — e de sempre terem se apresentado como tal, mas reclamam que essa documentação não foi levada em conta pela universidade.

Não tem um branco na família

Luan, 21 anos, veio de Chapecó (SC) a Porto Alegre em fevereiro para se matricular no curso de História. Contudo, ainda em fevereiro, teve a matrícula não homologada após recomendação da comissão de aferição de autodeclarações. Luan então entrou com um recurso.

Mesmo sem nenhuma garantia de matrícula e sem poder usar de benefícios concedidos aos demais estudantes — como acesso ao restaurante universitário, à biblioteca, entre outros — por não ter permissão para fazer o cartão de aluno da universidade, ele começou a acompanhar as aulas, iniciadas em 5 de março, por acreditar que a decisão pudesse ser revertida após apresentar documentos que, para ele, iriam confirmar o porquê de sua autodeclaração. Contudo, diz perceber que há uma pressão da universidade para que os professores não permitam que alunos na mesma situação que ele frequentem as aulas.

Em seu recurso, ele anexou ao processo uma série de fotos suas, de documentos do pai, da mãe e de outros parentes que demonstrariam ascendência negra e indígena. Também alegou no recurso possuir o formato dos lábios, do nariz e o cabelo característicos da população negra — segundo a UFRGS, os chamados fenótipos do negro são levados em conta durante a aferição — e argumentou que enfrenta cotidianamente situações de racismo. “Em toda a minha família, não tem uma pessoa que tu diga que é branca”, afirma o estudante, que se declara pardo.

Luan diz que, além de perder a vaga, a decisão lhe causa um constrangimento, pois o fez passar por uma “crise de identidade”. “A vida inteira eu fui uma coisa e, no único momento em que isso me ajudaria, não fui reconhecido”.

Luan diz que nenhum membro de sua família se identifica como branco | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Ele diz não questionar a legitimidade da comissão, mas a maneira como foi avaliado e como o processo transcorreu. Luan afirma até que, após ter a matrícula rejeitada — foi indeferida definitivamente no final de março –, conversou com diversas pessoas na universidade, inclusive com representantes do movimento negro, e não achou nenhum que concordasse com a decisão da comissão.

O estudante entrou com uma ação judicial para reconquistar a vaga no dia 3 de abril e, no último dia 24, a justiça federal deu um prazo de 30 dias para a universidade apresentar a sua defesa no caso. Luan conta que conversou com um defensor público que o está representando na ação judicial e avalia que tem boas chances no processo.

O jovem atualmente está morando em um pensão de estudantes e, além de seguir indo às aulas, está procurando emprego. Contudo, lamenta ainda mais a possibilidade de perder a vaga definitivamente porque, em Chapecó, ajudava a família com um trabalho em um frigorífico do qual teve que sair “com uma mão na frente e outra atrás”, pois pediu demissão para vir estudar na Capital e sequer teve acesso ao FGTS.

No passado sim, agora não

O caso de Aline talvez seja o mais emblemático de como as comissões de aferição caminham em uma linha tênue. Quando ingressou na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), em 2012, para cursar Jornalismo, o fez como cotista racial. O mesmo ocorreu com suas duas irmãs, ambas cotistas raciais em universidades públicas. Sua mãe também foi aprovada como cotista racial de dois concurso públicos para professor estadual realizados em 2012 e 2013, tendo sido nomeada em 2012 e 2014, respectivamente. O pai também já prestou concurso público como cotista racial. Ainda assim, ao passar pela comissão de aferição da UFRGS em março, já com as aulas em andamento, teve a matrícula não homologada.

Aline questiona o fato de que decisão de duas linhas não explicou o motivo de sua documentação ter sido rejeitada | Foto: Reprodução

Em seu recurso após a rejeição inicial pela comissão, ela justifica sua decisão de se declarar parda ao afirmar que sua descendência étnico-racial é composta por negros, pardos e um branco, a avô paterno, sendo o pai pardo e a mãe negra. Ela anexou fotos de familiares e documentos para embasar a sua justificativa. Mas, mais uma vez, teve o recurso negado. Contudo, no dia 9 de abril, ela foi aprovada como cotista parda pelo banca do concurso público do Conselho Regional de Biblioteconomia.

Aline preferiu não tirar fotos ou enviar fotos de arquivo pessoal, mas em imagens que a reportagem teve acesso é possível verificar que o seu tom de pele é mais claro que o das irmãs, ainda que ela apresente características semelhantes, especialmente boca e nariz. “Eu sei o que está estabelecido em edital, que a avaliação era pelo fenótipo. Mas, no meu caso, obviamente não foi isso que eles analisaram. E isso é extremamente injusto, já que a reserva pra cotas raciais é pra negros e pardos. Eu acho que até o pessoal da comissão fica sem saber lidar com os pardos”.

A estudante reconhece a importância de existir uma comissão além da auto-declaração e diz entender que a questão do pardo é complicada, tendo sido explorada por muitos brancos para ingressar em universidades públicas via cotas raciais. Mas ela lamenta que os seus argumentos sequer tenham sido contestados na decisão final que indeferiu sua matrícula. “Tive como resposta só um ‘a comissão recomenda o indeferimento do pedido'”, diz. “Eu não sei nem dizer o que eles acabaram levando em conta por não ter recebido nenhuma justificativa pros indeferimentos”.

Para ela, o processo demonstraria que UFRGS não se importa com os alunos. “Já faz mais de mês que as aulas começaram e três semanas de matrícula provisória, colocar alguém lá dentro depois desse tempo todo é muito errado. Eu tô me sentindo extremamente prejudicada e os professores não têm nenhum plano de recuperação pra essas aulas que a gente já perdeu”, diz.

Aline se reuniu com um advogado no dia 26 e deve entrar com uma ação na Justiça para tentar reverter a decisão da universidade. No mesmo dia, ela também se reuniu com representantes da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa que tomaram conhecimento do caso e se dispuseram a mediar a situação junto a universidade.

Enquanto isso, diz que ainda não sabe se continuará frequentando as aulas ou não. “Acredito que ainda dá pra ir nas aulas já que a matrícula provisória ainda está valendo, mas também parece meio inútil já que, teoricamente, a gente não vai terminar o semestre”, diz. Ao contrário de Luan, ela conseguiu acompanhar as aulas normalmente por ter sido beneficiada por uma ação judicial que obrigou a UFRGS a matricular provisoriamente alunos que estavam em situação semelhante.

Professor José Carlos dos Anjos |  Foto: Guilherme Santos/Sul21

Cotas para vítimas de racismo

Professor do Departamento de Sociologia da UFRGS, José Carlos dos Anjos destaca que a política de cotas não é voltada para quem se define como negro e pardo, mas para estudantes cujas vivências são marcadas por um cotidiano racista, sendo justamente o papel da comissão de aferição averiguar se encaixam-se na situação de vítimas de racismo.

“Na maior parte dos casos de pessoas que são filhas de pardo com branco, numa sociedade como a brasileira, não tende a configurar uma situação em que a pessoa possa ser vítima de racismo, o que não impede que a pessoa possa afirmar uma identidade negra, mas a opção da instituição é por pessoas que conseguem encenar que são vítimas de racismo cotidiano”, diz.

Contudo, ele destaca que caberia à comissão, apesar da exigência de possuir critérios consistentes, ser uma oportunidade de diálogo para que os estudantes possam argumentar seus casos, o que não houve na edição desse ano. “Essa é uma carência, uma falta de maturidade institucional da comissão, que tende, para escapar do estigma de tribunal racial, a não provocar o diálogo, mas precisa ser uma situação dialógica. Acho que é um defeito no sistema”, afirma.

A reportagem entrou em contato com a UFRGS e fez uma série de questionamentos sobre o processo de indeferimento de matrículas e de aferição de cotas, mas foi informada apenas que este processo segue em andamento e a análise da situação de estudantes com matrícula precária ainda não foi concluída.


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