Luís Eduardo Gomes
Cerca de 50 estudantes ligados a movimentos negros da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) ocuparam na noite de quarta-feira (7) a Reitoria da instituição como protesto contra o que estão considerando ser a “destruição” da política de cotas da universidade. Em portaria promulgada em fevereiro deste ano, a universidade definiu que poderão ter acesso às vagas destinadas para negros (pretos e pardos) alunos que comprovarem por meio de documentação ascendência negra até a geração dos avós. O movimento considera a decisão equivocada, uma vez que defende que apenas estudantes que apresentem características fenotípicas do negro devem ter acesso a essas vagas, e um retrocesso na construção das políticas de ação afirmativa da universidade.
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Esta é a segunda vez que a Reitoria da UFRGS é ocupada por estudantes negros em protesto contra mudanças na política de cotas. Em setembro de 2016, sob coordenação do coletivo Balanta, criado para reunir os diversos movimentos negros da universidade, estudantes “akilombaram” o prédio para protestar contra uma resolução que exigia que candidatos que se inscrevessem no vestibular escolhessem disputar as vagas de acesso universal ou as reservadas para cotistas, o que eles consideravam que ia reduzir o ingresso de negros e criaria uma cota para estudantes de escolas particulares, uma vez que desestimularia postulantes a cotas raciais de tentarem o acesso universal.
Contudo, por recomendação do Ministério Público Federal, a UFRGS decidiu instituir uma comissão de recursos que passou a considerar válidas autodeclarações baseadas em descendência de pessoa negra e de características de pessoas pardas. Para o movimento negro, isso significa uma autorização para que pessoas brancas possam ingressar via cotas raciais.
Na segunda-feira (5), quando as aulas da UFRGS foram retomadas, foi realizado um ato cultural diante da Faculdade de Educação (Faced) contra a mudança. Na tarde desta quarta, ocorreu uma aula pública intitulada “Cotas na UFRGS é para valer! Para quem?”, com a presença de professores da universidade e representantes do movimento negro. Ao final da aula, que iniciou às 14h e se estendeu até por volta das 17h30, os participantes do ato se deslocaram em “cortejo” para a entrada da Reitoria, cantando palavras de ordem como “Pisa ligeiro, pisa ligeiro, quem não pode com o quilombo, não atiça os seus guerreiros”, “nenhum cotista a menos” e “não tem arrego, você tira as minhas cotas que eu tiro o seu sossego”. Simultaneamente ocorria uma reunião entre o reitor Rui Vicente Oppermann e representantes da comissão de aferição, que inclui representantes do movimento negro. Como a reunião não trouxe nenhuma novidade, os estudantes decidiram ocupar a Reitoria.
Racismo é pela cor de pele
Um dos palestrantes da aula pública, o professor do Departamento de Sociologia José Carlos dos Anjos destaca que a revolta com a portaria se dá porque ela significa a “destruição da política de cotas” em sua motivação principal, a reparação contra a exclusão do negro das universidades. “Nós vivemos em uma sociedade que produz sistematicamente o banimento do fenótipo negro. O racismo brasileiro não visa pessoas com ancestralidade negra, que tenham uma avó ou bisavó negra, ele visa diretamente o fenótipo negro. A polícia não pergunta para o jovem da periferia se ele tem um avô negro, vê o seu fenótipo e o toma como possível bandido. Então, nesse sentido, a contribuição maior que a universidade poderia dar é incisivamente trabalhar para projeção de pessoas com fenótipo negro nos quadros institucionais superiores do País, formar uma massa de pessoas visivelmente negras para que ocupem postos para dar visibilidade para a fenotipia negra”, afirma.
Originalmente, a criação especial de aferição tinha justamente esse sentido, mas, segundo José Carlos, a política acabou mudando de foco quando foi instituída a comissão recursal, que passou a ser a instância determinante sem ter a presença de representantes da primeira comissão. O professor também questiona o fato de que a portaria abriu a possibilidade de pessoas que pudessem, além da ancestralidade, comprovar vínculos culturais com a população negra, ingressassem na universidade pelas cotas raciais. “Isso acaba destruindo todo o sentido da política, porque a partir daí as pessoas visivelmente negra vão continuar disputando de forma desvantajosa com pessoas que têm fenótipo branco e vamos continuar reproduzindo um tipo de sociedade onde pessoas com fenótipo negro são, à primeira impressão, vistas como desqualificadas”, afirma.
A socióloga Reginete Bispo, coordenadora do Instituto Akanni e que também participou da aula pública, avalia que a decisão da UFRGS é mais uma tentativa de “branquear” a universidade. “A política de cotas foi uma ação idealizada pelo movimento social negro como uma política reparatória aos quase quatro séculos de escravidão. E ela vem sendo, ao longo dos anos, distorcida. Há uma tentativa permanente de branquear a política de cotas. No Brasil, qualquer coisa que é construída para negros é permanentemente ameaçada, porque está dentro das pessoas essa lógica de branquear e desqualificar intelectualmente o negro. Aqui ficou visível essa tentativa quando o reitor puxa para si, de uma forma muito aristocrática, a decisão final, recursal, de quem pode ou não. Ou seja, tu, homem branco, se vai recorrer, não passou na comissão de aferição, vai pra comissão recursal, eles vão dar três pareceres, que vão para o reitor e ele monocraticamente vai decidir se pode ou não pode. E o reitor, em declaração pública, diz que, se comprovar descendência negra, ele vai ratificar uma decisão favorável ao branco”, critica.
Carla, que é estudante de Direito, destaca que, até janeiro, aparentemente a Reitoria e o movimento negro tinham uma posição comum, o que mudou com a instituição da comissão recursal. “A comissão de aferição foi montada com pessoas que têm expertise em questões raciais e, portanto, teriam condições de responder a um recurso com maior objetividade. Mas a Reitoria optou por colocar pessoas da confiança dela, que o movimento nem sabe quem são”, diz.
A estudante ainda destaca que há uma preocupação de que a mudança na política possa “legitimar” os fraudadores, não só da UFRGS, mas também de outras universidades. “Eu convivo diretamente com colegas brancos que ingressaram pela cota racial e eles não têm nenhum medo, porque sabem que isso é normal, que é uma prática reiterada. É só tu entrar nas faculdades de difícil acesso como Direito e Medicina que tu não vê as pessoas que deveriam estar lá. Quem está no lugar dos negros são brancos fraudando as cotas. É muito importante que as pessoas se alertem porque isso pode ser usado como jurisprudência para todas as outras federais e em qualquer concurso ou política de ação afirmativa que tenha vaga destinada para essa população”, afirma.
No final da manhã desta quinta, a reitoria da UFRGS emitiu nota dizendo que estava encerrando o diálogo com os movimentos em razão da ocupação.
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