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29 de dezembro de 2019
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10:08

‘Juntos somos mais fortes’: rede de contatos mantém comunidade senegalesa unida em Porto Alegre

Migrantes vindos de países como o Senegal estão entre os que mais chegam a Porto Alegre nessa 3º onda. Foto: Guilherme Santos/Sul21)
Migrantes vindos de países como o Senegal estão entre os que mais chegam a Porto Alegre nessa 3º onda. Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Débora Fogliatto

Nos últimos cinco anos, em algumas regiões da cidade de Porto Alegre, tem sido possível observar o aumento do número de imigrantes vendedores ambulantes. Em sua maioria, para além dos brasileiros, os homens que vendem suas mercadorias no Centro da cidade são senegaleses. Óculos de sol, relógios, roupas e acessórios como colares e anéis estão entre os itens mais vendidos pelos imigrantes. 

Apesar de a falta de oportunidades de emprego com carteira assinada ser um dos motivos pelos quais os imigrantes recorrem ao comércio informal, não é o único. Inclusive, em outros países onde houve migração senegalesa em massa, como França, Estados Unidos e Argentina, também é possível encontrar “camelôs” oriundos do pequeno país no oeste africano. Enquanto os brasileiros muitas vezes pensam se tratar de haitianos, em sua grande maioria esses comerciantes são senegaleses, e em alguns casos de outros países africanos. 

“Como no Senegal não tem muitos empregos, a maioria das pessoas vira comerciante. Isso existe muito lá mesmo, quase 70% da população trabalham com comércio no Senegal. Então a gente tem essa experiência e é fácil se adaptar a vender aqui”, resume Omar Mourid, vice-presidente da Associação dos Senegaleses de Porto Alegre e ele próprio comerciante. 

Do Senegal migram para o Brasil principalmente homens jovens que enviam dinheiro para suas famílias

A pesquisadora Ana Julia Guilherme, que em sua dissertação de mestrado em Sociologia estudou as estratégias de trabalho de imigrantes haitianos e senegaleses em Porto Alegre, também menciona os aspectos culturais do comércio ambulante. “A venda ambulante é um dos principais trabalhos dos senegaleses em mobilidade, como já mostram estudos destes fluxos desde a década de 1980 na Espanha. Por um lado, aspectos culturais estão sim por trás do comércio ambulante desenvolvido por senegaleses. E um dos fatores que mais influencia as estratégias de venda dos senegaleses é a rede de contatos entre eles, pela criação de associações e confrarias muçulmanas, o que não encontramos em outras nacionalidades”, explica. 

Ou seja, tanto o fato de se tornarem vendedores ambulantes quanto a grande união da comunidade senegalesa encontrada em Porto Alegre são, em geral, explicados por fatores referentes à cultura do país de origem. A principal expressão dessa rede de apoio criada pelos senegaleses é a Associação, que existe na capital gaúcha e em todas as outras cidades onde há uma comunidade expressiva oriunda do país. 

“Pelos relatos das entrevistas, a associação facilita a inserção laboral e social dos senegaleses, principalmente auxílio aos imigrantes recém-chegados à nova sociedade. Também, a partir das falas dos senegaleses, observei que a rede de contatos auxilia na dinâmica do comércio ambulante, em que há um revezamento de compras em grupo”, constatou Ana Julia em sua pesquisa, realizada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 

Para os senegaleses, é função da própria comunidade auxiliar aqueles que migram, assim como proporcionar diálogo com as autoridades brasileiras. “Juntos somos mais fortes. A gente tem muito a educação de permanecer juntos e de compartilhamento. Se não, fica ruim sozinho. A gente sempre mantém nossa força, e nossa força é estar juntos sempre. Se estivéssemos separados seria bem mais difícil. Por isso, a gente já orienta e ajuda todo senegalês que chega aqui”, afirma Omar. 

Omar é vice-presidente da Associação dos Senegaleses de Porto Alegre. Foto: Arquivo Pessoal

Em Porto Alegre, a Associação foi criada pela primeira leva de imigrantes que chegou à cidade, ao perceberem que havia cada vez mais senegaleses na Capital e diante da necessidade de orientá-los. “Era nossa obrigação nos organizar de alguma forma, para eles se apoiarem”, afirma Omar, que foi um dos fundadores da entidade. Ele vive no Rio Grande do Sul desde 2013, inicialmente em Caxias do Sul, outra cidade com grande quantidade de senegaleses. Ao vir visitar Porto Alegre, gostou mais da Capital e decidiu se mudar. 

Assim como a maioria dos senegaleses, Omar veio sozinho para o Brasil. Em geral, a imigração senegalesa se difere de outros grupos, como haitianos e venezuelanos, justamente por ser um projeto familiar no qual apenas um homem jovem migra, enquanto os oriundos de outros países costumam ter como plano mudar-se com toda a família. Na cultura senegalesa, normalmente cada um tem o seu papel dentro da família. 

“Algumas mulheres vêm, acompanhar os maridos ou não. Mas a gente não tem o costume de viajar com a família inteira, temos uma cultura diferente nesse sentido. Por exemplo, se o homem é casado, a mulher deve cuidar das crianças e o homem dá o sustento da casa. Elas podem trabalhar, não quer dizer que não trabalhem. Mas são responsáveis pela casa, e muitas preferem ficar em casa. Então homens migram e elas permanecem cuidando da família”, diz o imigrante. 

Assim, aqui muitos deles vivem em apartamentos alugados, em sua maioria no Centro de Porto Alegre, divididos entre vários imigrantes. O objetivo é sempre conseguir enviar dinheiro para suas famílias que permaneceram no Senegal. “Se não conseguirmos enviar, não adianta ficar aqui”, constata Omar. Em 2017, cerca de 10% do PIB do país foi composto pelas remessas enviadas pelos migrantes, segundo dados do Banco Mundial. 

O comércio ambulante é um desafio para os migrantes na Capital. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Apesar de o comércio ambulante ser uma constante na cultura dos migrantes, eles enfrentam desafios para permanecer no mercado informal. Nas entrevistas realizadas para sua pesquisa, Ana Júlia constatou alguns deles: “há diversos relatos de senegaleses sobre as más condições de trabalho no comércio ambulante, principalmente sobre o clima – não conseguem vender em períodos de chuva e de muito calor –, sobre a fiscalização da SMIC, além de possíveis situações de agressão e de ameaça nas rua”, conta.

Ana Julia finalizou a dissertação em 2017, e atualmente a antiga Secretaria Municipal de Indústria e Comércio (SMIC) se chama Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico (SMDE), mas os problemas enfrentados pelos senegaleses nas ruas seguem os mesmos, segundo Omar. O imigrante relata que os senegaleses em várias partes do mundo estão acostumados com a fiscalização. “A fiscalização, sabemos que existe em todos os países, é normal, só que a gente prefere que aconteça de acordo com as leis e de forma respeitosa”, aponta.

O maior problema, segundo ele, é quando acontecem abordagens que “incomodam” os vendedores ou quando não conseguem reaver os produtos levados pela fiscalização. “Antigamente, a gente conseguia reaver, mas ultimamente eles não devolvem mais as mercadorias”, lamenta. Ele destaca que a época próxima ao Natal, durante o mês de dezembro, é um dos períodos em que a fiscalização se intensifica. 

De acordo com a assessoria de imprensa da SMDE, a possibilidade de recuperar os produtos depende da sua procedência. “Todos os produtos apreendidos são ensacados e lacrados, e o dono do produto, o comerciante, recebe o contra lacre para poder reivindicar seu produto depois. Isso vai para o depósito e fica lá por dois dias”, explicam. O que ocorre, porém, é que quando a mercadoria é ilegal, não é possível reavê-la. “Em geral, no caso de mercadoria sem procedência, seria necessário apresentar notas fiscais ou pagar multas para que sejam regularizadas”, afirma o órgão.

Apreensões de produtos são frequentes em Porto Alegre. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Omar relata que os fiscais da Prefeitura alegam que os produtos vendidos por eles são ilegais, o que os senegaleses contestam. “As mercadorias que vendemos aqui na rua são todas compradas dentro do Brasil e nada é ilegal. A gente compra das lojas de atacado. Então a mercadoria em si não é ilegal, ou se for, deveriam apreender das lojas que vendem, não de nós. Mas as coisas mudam quando é na rua ou na loja. Isso não está certo”, acredita. 

Estes problemas encontrados no comércio ambulante motivam alguns senegaleses a migrarem para outras cidades brasileiras ou para outros países, conforme constatam Omar e Ana Julia. “Pelos relatos dos senegaleses, observamos que as más condições do comércio ambulante não os estimulam a continuarem aqui, uma vez que a apreensão tira toda a renda que o imigrante poderia ter e seu dinheiro investido para as compras das mercadorias. Constatando isso, além da falta de oportunidades no mercado formal, alguns senegaleses optam por voltar ao seu país ou migram para outro local”, observa a pesquisadora. 

Mesmo que a venda informal seja uma questão cultural comum para os senegaleses, muitos prefeririam trabalhar de carteira assinada, de acordo com Ana Julia, mas nem sempre têm a oportunidade de se inserir no mercado. “Muitos senegaleses afirmam preferir um trabalho formal, porém, às vezes, o comércio ambulante é a única alternativa de sustento. Como a faixa salarial que costumam receber em empregos formais é de R$1.000, no trabalho informal podem tentar um salário maior, uma vez que quase todos enviam remessas para seu país de origem e para enviar US$ 100 são necessários mais de R$ 400”, explica. 

Outra característica marcante da comunidade senegalesa é a religião, a qual está diretamente conectada à cultura de vendas nas ruas. A ordem muçulmana chamada Mouridismo é a religião seguida pela maioria dos cidadãos do Senegal, irmandade fundada no século 19 pelo marabuto Amadou Bamba. “As principais ocupações de trabalho dos Mourides se concentram historicamente no comércio, desde os pequenos vendedores até os grandes empresários, e esta característica contribui para a integração do imigrante na nova sociedade, visto que o sujeito já tem contatos que o ajudam a conseguir um trabalho, moradia e tudo o que necessita no local de destino”, explica Ana Julia. 

Todos os anos, os senegaleses mourides comemoram a festa intitulada Grand Magal de Touba, que no seu país de origem é celebrada com uma peregrinação à cidade de Touba, cidade-natal de Bamba. Nas cidades com população expressiva de imigrantes, as festas são realizadas conforme as possibilidades do local, sempre mantendo a tradição de os anfitriões forneceram comida e bebida aos convidados. 

Mesquita da Capital. Foto: Maia Rubim/Sul21

Em Porto Alegre, a última celebração foi realizada no dia 16 de outubro, com uma caminhada e uma festa no Gigantinho, promovidas pela Associação de Senegaleses. “Gastamos R$ 40 mil na festa, arrecadados da comunidade. Foi toda de graça para quem foi participar, fornecemos café da manhã, almoço e janta”, conta Omar. 

A Associação também realizou, em 2019 e 2018, festivais para promover integração entre as culturas senegalesa e brasileira. “Fazemos um papel cultural também, e social. A gente organiza várias coisas nesse sentido, e se acontecer algo com um senegalês a gente ajuda”, relata. Em casos extremos, como quando um imigrante morre no Brasil, a comunidade de todo o país arrecada dinheiro para enviar o corpo de volta ao Senegal. “Fazemos isso sem ajuda dos governos, a comunidade senegalesa que tira do seu bolso para enviar o corpo para lá. Mas temos conexão com o Brasil inteiro, tem uma confederação de senegaleses”, relata Omar. 

Dentre a comunidade na capital gaúcha, muitos senegaleses frequentam a mesquita da cidade e seguem as tradições do islamismo. Inclusive, muitos falam árabe, além do francês, língua oficial do país, e de suas línguas nativas, das quais a maior é a wolof. Omar é formado em língua árabe em seu país, e relata que é comum os senegaleses saberem mais de quatro idiomas. “Lá, às vezes se aprende também inglês, espanhol, português, alemão. Quem quer sair do país, tem que estar preparado para falar a língua do país para onde for”, aponta ele, que aprendeu português sozinho. 

Questionado se os imigrantes foram bem recebidos na mesquita porto-alegrense, Omar explica que, no islamismo, não existe a questão de ser recebidos ou não, e sim que o local sagrado é aberto para todos que ali desejem professar sua fé. Contrariando os estereótipos que muitas vezes são promovidos a respeito da religião, Omar relata: “Não tem preconceito de cor, nacionalidade, nada. Quando entra ali para rezar, nos consideramos como irmãos. Não tem diferença. Para ser um bom muçulmano, tem que ter coração aberto, com todo mundo, mesmo com as pessoas que não são da mesma religião”. 


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