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25 de dezembro de 2019
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11:53

Porto Alegre entra na rota das migrações Sul-Sul com a chegada de haitianos, africanos e venezuelanos

Os migrantes que chegam ao Rio Grande do Sul nos últimos dez anos fazem parte do chamado boom de migrações. Foto: Guilherme Santos/Sul21
Os migrantes que chegam ao Rio Grande do Sul nos últimos dez anos fazem parte do chamado boom de migrações. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Débora Fogliatto

Kadi chegou a Porto Alegre há dez anos. Yolene, há dois. Gonzalo mora em Canoas, na região metropolitana, há nove meses. Os três migrantes vieram respectivamente de Benin, Haiti e Venezuela para o Rio Grande do Sul com o mesmo objetivo de outras milhares de pessoas: buscar uma vida melhor para si e sua família.

Vindos de países do Sul global, dentre eles nações na África, Ásia, América Latina e Caribe, os migrantes que chegam ao Rio Grande do Sul nos últimos dez anos fazem parte do chamado boom de migrações que se iniciou no século 21. Alguns entram por terra, em geral pelo norte do país, especialmente por Roraima, que faz fronteira com Venezuela e Guiana; outros chegam de avião, diretamente para o Brasil ou param em algum país vizinho, como Paraguai, Argentina e Equador.

Atualmente, segundo levantamento feito pelo Núcleo de Pesquisas em Migração do Cibai – Centro Ítalo-Brasileiro de Assistência e Instrução aos Migrantes, existem cerca de 95 mil migrantes no Rio Grande do Sul, o que representa 0,84% da população do Estado. Destes, 38% estão na região metropolitana de Porto Alegre.

Conforme explica o professor Jurandir Zamberlan, coordenador do Núcleo, as migrações recentes para o Estado são analisadas a partir da existência de três grandes fluxos: o primeiro ocorreu após a Segunda Guerra Mundial, quando o RS recebeu imigrantes europeus, especialmente italianos – já havia, desde o século 19, uma expressiva população descendente de italianos e alemães no Estado –, mesma época em que o Cibai se constituiu. Em seguida, a partir da década de 1970, inicia-se o segundo fluxo, com a chegada de sul-americanos provocada pelas ditaduras nos países vizinhos, especialmente Uruguai e Argentina.

Atualmente, vive-se o terceiro fluxo, iniciado no atual século e intitulado de “novos rostos da migração” pelo Cibai. Os principais países de origem destes migrantes são os caribenhos, do norte da América do Sul (Colômbia, Bolívia, Peru e Venezuela) e africanos de língua francesa e inglesa. Em menor número, há ainda pessoas oriundas da Ásia meridional (indianos, paquistaneses, afegãos, filipinos). Estes “novos rostos” representam 1/3 da população migratória do Estado, segundo indica o Núcleo.

O Cibai recebe e encaminha doações para os migrantes que chegam à Capital. Foto: Luiza Castro/Sul21

De acordo com o mais recente relatório do Observatório de Migrações Internacionais (OBMigra), entidade ligada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, o Rio Grande do Sul ficou em segundo lugar dentre os estados brasileiros a conceder mais autorizações de residência a imigrantes em 2018, representando 35% de todas as autorizações concedidas no país. À frente, ficou apenas o Distrito Federal, e em terceiro lugar está São Paulo.

Como uma das principais instituições que oferece acolhimento e auxílio para os migrantes no Estado, o Cibai já havia atendido, entre o início de janeiro e o final de agosto de 2019, 6.726 migrantes. Nos últimos dez anos, foram cadastradas na entidade pessoas vindas especialmente de Haiti (35,7%), Uruguai (14,3%), Senegal (9,9%), Argentina (7,7%), Peru (4,9%), Venezuela (3,2%) e Bolívia (1,1%).

Os grupos que compõem as novas migrações têm características distintas entre si. Os haitianos vêm para escapar de fome, pobreza e falta de trabalho, situação que se agravou no país após ser atingido por terremotos e furacões – em 2016, o furacão Matthews afetou cerca de 1,3 milhão de haitianos, segundo a Unicef, enquanto em 2010 um terremoto vitimou entre 100 mil e 200 mil pessoas na região da capital Porto Príncipe. “Infelizmente desde o terremoto a situação do Haiti vem piorando, está muito difícil”, resume Joseph Presnoir, que vive em Porto Alegre há cinco anos.

Já os senegaleses chegam ao Brasil em busca de emprego, motivados pela imagem positiva do país no início da década de 2010, época de crescimento econômico e da Copa do Mundo. Desde 2017, se tornam a principal nacionalidade a receber autorizações de residência concedidas pelo Conselho Nacional de Imigração. Naquele ano, foram 2.285, e mais 1.365 em 2018.

A migração senegalesa é composta majoritariamente por homens jovens que migram sozinhos e enviam dinheiro para suas famílias no país de origem, diferentemente da haitiana e venezuelana, nas quais há presença de mulheres e crianças. Tanto os haitianos quanto os senegaleses são bastante religiosos: os primeiros são cristãos, em sua maioria evangélicos, enquanto os senegaleses são muçulmanos.

O padre Anderson Hammes dirige o Cibai. Foto: Luiza Castro/Sul21

Dentre os venezuelanos, muitos vêm como refugiados, mas nem todos, como aponta o padre Anderson Hammes, diretor do Cibai. “Eles saem como refugiados, mas alguns entram de forma indocumentada e aqui começam a fazer toda a tramitação legal, como os outros”, explica. A família Guevara, que recentemente abriu o restaurante Santa Arepa, em Porto Alegre, representa um caso de venezuelanos que não vieram como refugiados, e sim como migrantes que posteriormente regularizaram sua situação na Polícia Federal.

O Cibai iniciou seus trabalhos em 1958, sendo registrado legalmente em 1959. Desde então, consolidou-se como um “oásis” para os migrantes, segundo definição própria. “O nosso trabalho começou com a migração italiana, por isso no nome está ‘Centro ítalo-brasileiro’. A entidade surgiu por uma necessidade de atender os migrantes, e desde então nunca paramos”, conta Anderson.

Ligado à Igreja Católica, o Cibai realiza atendimentos em Porto Alegre junto à Igreja da Pompéia, na rua Barros Cassal. Mas os migrantes acolhidos pela instituição são de diversas religiões: a instituição não promove e não tolera discriminações. “Aqui todos são bem-vindos, sem distinção de raça, religião, cor, classe social, ou identidade de gênero. Ajudamos porque são seres humanos, nem perguntamos se são cristãos ou não. Quando a religião te limita, já não é religião, isso iria contra o cristianismo e contra o Deus em que eu acredito”, afirma o diretor do Centro.

 

Migrantes vindos de países como o Senegal estão entre os que mais chegam a Porto Alegre nessa 3º onda. Foto: Guilherme Santos/Sul21)

 

Sendo assim, o Cibai não tem como objetivo catequizar, e sim auxiliar os migrantes, especialmente os que chegam ao país sem saber a língua e sem outros tipos de suporte. A instituição promove cursos profissionalizantes, dentre os quais o de língua portuguesa, frequentado por cem alunos atualmente, em duas turmas. Também são oferecidos cursos de corte e costura; faxina industrial; garçom/garçonete; e afazeres domésticos como fazer faxina e passar roupa. Anderson pretende, para 2020, instaurar também um curso de informática, e já tem um espaço definido para colocar os computadores.

Para auxiliar as crianças e grávidas, o Cibai fornece leite, fraldas e kits de higiene. Atualmente, são cerca de 500 crianças cadastradas na instituição que recebem o auxílio. “Seria muito interessante conseguirmos fazer um trabalho específico com elas, mas falta recurso, falta pessoal”, lamenta o diretor da instituição.

Anderson também menciona as dificuldades específicas encontradas pelas mulheres que migram. Vindas principalmente do Haiti e Venezuela, elas em geral chegam ao Brasil sem falar português e muitas vezes ficam em casa com os filhos em idade pré-escolar. “Elas estão em casa com essas crianças, e não aprendem português. Então eu penso em conseguir smartphones para doar para as mulheres e providenciar aulas de português online, enquanto estão em casa cuidando dos filhos. Para algum dia ao menos saberem se defender, é muito difícil viver num país sem saber falar o idioma”, comenta Anderson. Este, por enquanto, ainda é um plano para o futuro que não começou a se concretizar.

A demora para que os migrantes consigam marcar um atendimento na Polícia Federal também é um fator negativo apontado por Anderson. Mesmo que a Lei de Migrações sancionada em 2017 tenha facilitado a chegada e permanência de estrangeiros, o padre afirma que ainda há demora e burocracia para que eles consigam regularizar sua situação no país. “O Brasil abriu as fronteiras, mas não abriu as portas da facilidade, é muito burocrático nas leis. Hoje em dia demora de seis a oito meses para marcar agendamento na Polícia Federal para que se tenha documentação. Mas o que o migrante faz nesses 6 a 8 meses sem carteira de trabalho, sem documentação regularizada?”, questiona.

A maior parte do trabalho realizados pelo Cibai, como as aulas e os atendimentos, são feitos por voluntários. No time da entidade, há brasileiros e migrantes que buscam ajudar aqueles que chegam em situações vulneráveis. Ainda, a entidade realiza agendamento de horários na Polícia Federal e fornece entre 250 a 300 cestas básicas para os recém-chegados, por três meses. Além de ajudar os imigrantes, a instituição religiosa também doa alimentos e roupas para pessoas em situação de rua. “Tudo isso acontece graças às pessoas de boa vontade que doam”, comemora Anderson.

 

Loúá, que chegou a Porto Alegre vindo da Costa do Marfim, será um dos migrantes que contaremos a história nas próximas reportagens. Foto: Luiza Castro/Sul21

Ao longo desta semana, o Sul21 publica uma série de matérias sobre os “novos rostos da migração” em Porto Alegre. Oriundos de Haiti, Venezuela, Senegal, Benin e Costa do Marfim, os migrantes retratados nas matérias vieram para o Brasil por motivos diversos: estudos, trabalho, família. Também chegaram em épocas diferentes: enquanto alguns já estão estabelecidos há anos e são fluentes em português, outros ainda estão se acostumando com a cidade, seu clima e cultura. Em sua maioria, agradecem a hospitalidade que encontraram no Rio Grande do Sul, mas relatam sentir falta de seus países de origem. Alguns têm filhos brasileiros, dentre os quais o pequeno David, nascido no início do mês de dezembro, e Francesco, que já completa oito anos. Conheça nas próximas reportagens os migrantes que, por um motivo ou outro, fizeram de Porto Alegre seu lar.


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