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26 de dezembro de 2019
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12:15

Com lojas de roupas típicas, africanos empreendem e abrem as portas de suas culturas em Porto Alegre

Loúá é proprietário da Sankofabutik, na Av João Pessoa. Foto: Luiza Castro/Sul21
Loúá é proprietário da Sankofabutik, na Av João Pessoa. Foto: Luiza Castro/Sul21

Débora Fogliatto

Nem Kadi nem Loúá tinham como objetivo se tornar empreendedores ou comerciantes quando chegaram ao Brasil. Atualmente, cada um deles é dono de uma loja de roupas africanas em Porto Alegre. Assim como diversos imigrantes que abrem negócios relacionados a suas culturas – como historicamente existem no Brasil os restaurantes chineses e árabes – os dois veem as roupas e tecidos que vendem como uma forma de compartilhar a cultura de seus países de origem com o país onde moram.

Agossou Djosse Ignace Kokoye, mais conhecido como Kadi, chegou a Porto Alegre vindo de Benin há dez anos. Ele veio como estudante, cursar Agronomia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a partir de uma bolsa de estudos fornecida pelo seu país natal. Ao terminar o curso, concluiu ainda um mestrado em Desenvolvimento Rural, também na UFRGS, antes de passar a se dedicar à loja Consone, a qual abriu no ano passado.

KAdi veio do Benin para Porto Alegre há dez anos. Foto: Luiza Castro/Sul21

Questionado acerca da escolha pelo Brasil, Kadi é direto: “vim por causa da zoeira”, conta, em português fluente, mas com sotaque. O beninense relata ter assistido a um documentário a respeito do carnaval e do samba e ter ficado encantado com as escolas de samba e com as praias do Rio de Janeiro. “Quis vir também pela diversidade, porque sabia que aqui tem gente de diferentes etnias, tipos, cores”, afirma.

A sua ideia inicial, porém, era morar em uma cidade com praia, realidade com a qual estava acostumado em seu país, que fica no oeste africano. “Eu tinha que escolher três opções de universidade. Escolhi Rio de Janeiro, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Eu não sabia nada sobre o RS, vi ‘Rio’ no nome e associei com Rio de Janeiro, então marquei como opção”, diz. O governo brasileiro determinou para qual das opções Kadi iria, e ele acabou na única cidade sem praia das três selecionadas.

Ele conta que o empreendimento começou por acaso, ao ir para o Benin e retornar com roupas típicas. Foto: Luiza Castro/Sul21

Bem-humorado, Kadi não se incomoda mais com o fato de não ter ido para o Rio, contando que já foi visitar a cidade e que, se conseguir seguir seu sonho de se tornar artista, pretende se mudar para lá. O beninense de 30 anos sonha em viver de cantar e dançar, e para isso considera que o ideal seria sair de Porto Alegre, onde não há tantas oportunidades. Enquanto isso não acontece, comemora o sucesso da Consone e reflete que, caso tivesse ido para o Rio de Janeiro desde o início, possivelmente não teria o mesmo sucesso profissional que tem aqui.

“Não sei se teria a fama que tenho em Porto Alegre se estivesse no Rio, porque aqui não tinha ninguém que fazia o que eu faço. Isso que a loja foi inaugurada faz só dois anos”. Ele destaca que os negócios vão muito bem, e que as pessoas “querem ser vistas usando as roupas” que ele vende. Atualmente, Kadi conta com cinco costureiros, dos quais dois são brasileiros e três senegaleses, e toca sozinho os negócios na loja, localizada em um prédio na Rua dos Andradas, no Centro de Porto Alegre.

O empreendimento começou por acaso. Ao ir para o Benin realizar pesquisa de campo do mestrado ano passado, Kadi retornou trazendo camisas típicas do país para presentear seus amigos. “As pessoas começaram a perguntar de onde era, queriam comprar. Então eu decidi criar uma loja online para ver se dava certo. Criei um perfil no Facebook e no Instagram”, conta. Atualmente, a maioria das roupas são feitas sob medida, com tecidos enviados para ele da Nigéria, Togo, Costa do Marfim e Gana, além de Benin.

‘Liguei pra minha tia, disse que a galera estava gostando e ela me mandou tecidos’, relata Loúá. Foto: Luiza Castro/Sul21

Assim como Kadi, Loúá Pácöm Öülaï também iniciou a Sankofabutik por demanda de amigos e conhecidos. Morador de Porto Alegre há mais de três anos vindo da Costa do Marfim, o imigrante é músico percussionista. Ele veio para o Brasil trabalhar, e atualmente estuda graduação em Música na UFRGS, mesmo já sendo formado na mesma área em seu país.

Aqui, já realizou projetos para dar aula de percussão nas periferias, a partir de editais da Prefeitura, experiência que ele descreve como “tri”, já familiarizado com a gíria gaúcha. “Cada vez que eu dava aula, ia de roupas africanas e sempre tinha alguém que pedia a roupa e eu dava de presente. Um dia olhei no armário e não tinha mais as roupas africanas. Liguei pra minha tia, disse que a galera estava gostando e ela me mandou tecidos”, relata. Para Loúá, foi a oportunidade que o fez se tornar um empreendedor, e rapidamente começou a vender a partir da grande demanda que existia.

Loúá se tornou também uma espécie de consultor sobre roupas africanas. Foto: Luiza Castro/Sul21

Além da venda em si, o costa-marfinense acredita na importância de explicar para os clientes os significados das estampas e de onde elas vêm, para que saibam a origem da roupa que estão comprando. Inicialmente, ele abriu um depósito no Centro, onde mantinha os tecidos, mas o local era “muito escondido” e acabou se mudando para uma loja de rua na Avenida João Pessoa em setembro deste ano. Assim como Kadi, também trabalha com costureiros africanos e brasileiros, sempre com a proposta de fazer os modelos de vestidos, túnicas, camisas e acessórios a partir do significado das estampas.

No mapa da África, Costa do Marfim (esq.) e Benin

Por ter essa preocupação, Loúá se tornou também uma espécie de consultor sobre roupas africanas, e muitas pessoas vão à loja conversar com ele a respeito dos tecidos e tirar dúvidas sobre temas como apropriação cultural. A maior parte dos clientes são brasileiros, o que o empresário comemora. “A ideia é mesmo abrir as portas da minha cultura. Quando uma pessoa sabe mais sobre a cultura da outra, isso abre portas. Se eu abro as portas da minha cultura, vou ter acesso à cultura do outro povo”, acredita.

Ambos os imigrantes colocam a adaptação ao clima como um dos principais desafios que precisaram enfrentar ao chegarem a Porto Alegre. “Aqui descobri que tenho rinite. O que queria pedir para Deus tirar da minha vida é a rinite, preferiria verão o ano todo”, brinca Kadi. Já Loúá considera o inverno uma época “horrível” e diz estar ansioso pelos próximos meses de calor. O acolhimento do povo brasileiro, por outro lado, foi citado como uma vantagem da migração. “Brasileiro é um povo acolhedor”, resume o costa-marfinense.

Kadi fala sobre os episódios de discriminação que enfrentou em Porto Alegre. Foto: Luiza Castro/Sul21

Questionado sobre racismo, Kadi aponta ter sofrido mais preconceito por sua origem, embora tenha percebido as dificuldades da falta de representação e de acesso aos estudos que afetam as pessoas negras no Brasil. “Já sofri discriminação, tanto de pessoas da mesma cor da minha quanto de cor diferente. Mas muitos dos meus melhores amigos são brancos que eu conheci na UFRGS, que me ajudaram muito e são amigos até hoje. Então eu sinto mais por ser estrangeiro, aquela ideia que algumas pessoas têm de ‘vieram roubar nosso lugar’”, conta.

Ao mesmo tempo, ele entrou na universidade em 2010, época em que havia poucos negros na UFRGS, e relata que era difícil “até namorar”.  Kadi também busca promover o empoderamento negro pela sua marca. Ele conta que o primeiro desfile de roupas da Consone contou com um elenco de modelos 100% negro.

Religioso, Kadi prefere proferir sua fé sozinho, ao invés de frequentar igrejas. Em seu país, tanto islamismo quanto cristianismo são praticados, juntamente com religiões africanas, como o voodoo. “Eu acredito em deus e respeito todas as religiões. Para mim, ter fé é ter amor a si e ao próximo, não fazer mal e dividir o que tiver quando puder. Mas rezo sozinho, e acho que tenho tido resultados”, comemora, citando os negócios: na primeira semana de dezembro, já tinha 15 encomendas de roupas, e acredita que até o final do mês deva chegar a 40 ou 50.

Enquanto aguarda para ir para o Rio ou São Paulo seguir a carreira com a qual sonha, Kadi também divide a criação do filho Martin, de três anos, com a mãe do menino, e atualmente namora uma brasileira. Para Loúá, a permanência no Brasil ainda é incerta: “A gente vive um dia de cada vez. Pretendo voltar algum dia para meu país para passar adiante um pouco do que eu sei, porque estudei de graça na universidade lá e quero retribuir. Mas por enquanto estou aqui no Brasil, esperando o verão”.

Foto: Luiza Castro/Sul21
Foto: Luiza Castro/Sul21
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