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8 de março de 2020
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11:34

Petronilha: Educação que vem de berço e faz história

Por
Luís Gomes
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Professora Petronilha recebeu o Sul21 em sua casa, no bairro Rio Branco. Foto: Luiza Castro/Sul21
Professora Petronilha recebeu o Sul21 em sua casa, no bairro Rio Branco. Foto: Luiza Castro/Sul21

Toda vida é uma história, mas algumas tomam caminhos diferentes e ajudam a contar os rumos de um país. Esse é o caso da professora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, 77 anos, quase 60 dedicados à educação no Brasil. Essa história começa em Porto Alegre, no dia 29 de junho de 1942, em uma casa na rua que hoje é conhecida como Miguel Tostes, mas, à época, chamava-se Rua Esperança. Era o coração do bairro Colônia Africana. Hoje, Rio Branco. É, também, uma história que acompanha o branqueamento das regiões centrais de Porto Alegre.

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Petronilha é filha única da professora Regina e do pedreiro João Antônio, que morreu quando ela ainda era criança e, por isso, as memórias são escassas. “Eu tenho mais a lembrança dele assim calado. Não era muito de contar histórias”. Já a mãe seria a principal influência na vida dela. “Como ela era professora, a nossa casa sempre foi uma casa de livros.”

Quando criança, Petronilha e uma prima, com quem regulava de idade, costumavam ganhar um livro novo após a conclusão de cada período de provas no colégio. Um livro podia não ser muito, mas, somados com a das amigas de infância que também ganhavam, era uma festa. “Os livros circulavam. Quem ganhava um livro novo e terminava, passava para a outra começar a leitura.”

A lembrança que ela tem da mãe dos tempos de menina é de que era uma professora exigente mesmo dentro de casa. Tinha fama de braba no bairro. “Quando eu fui para o terceiro ano do primário, ela comprou um dicionário, que eu tenho até hoje. E, a partir de então, se eu não sabia o significado de uma palavra, não adiantava eu perguntar que ela não me dizia, eu tinha que ir no dicionário. Se eu não entendesse o dicionário, o que não era raro, aí sim ela explicava.” Regina, falecida em 1999, aos 80 anos, era dessas mulheres que se costuma dizer que estão à frente de seu tempo. O caminho percorrido por Petronilha na educação básica é um reflexo disso.

Após concluir o primário, em 1953, Petronilha passou em um exame de admissão para o Instituto de Educação Flores da Cunha, na época, a escola estadual exclusiva para meninas mais prestigiada de Porto Alegre. Antes de começar o ano letivo, Regina foi convidada por uma antiga colega para uma reunião sobre um novo colégio que estava sendo criado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o Colégio de Aplicação, e estava oferecendo uma vaga na primeira turma para a sua filha, que começava pelo ginásio, o que seria equivalente à atual sexta série do Ensino Fundamental.

O Colégio de Aplicação nascia como um colégio misto, para meninos e meninas. Também não exigia uniformes. “A minha mãe foi a essa reunião e, quando voltou, ela disse: ‘Olha, eles mandaram chamar porque vão criar um colégio”. Só que Regina, apesar de braba, não era do tipo que decidia o futuro da filha sozinha. Pelo contrário, deixou a decisão a cargo da menina.

“Eu realmente não sei o que me fez decidir pelo Colégio de Aplicação, só sei que escolhi. Ela não influenciou”, diz. “O Colégio de Aplicação era diferente, de um lado porque já tinha meninos e meninas, povo de 11 e 12, não usava uniformes. Eu lembro que algumas pessoas diziam para minha mãe: ‘Que horror, não tem uniforme, e agora?’ E a minha mãe dizia: ‘Eu não vejo problema, tem que ter roupa de ir para escola e roupa de sair, tanto faz que seja uniforme e outra roupa”.

Nessa época, a família de Petronilha morava em um chalé de madeira que havia sido comprado pelo bisavô e só deixaria de ser usado como residência em 1994, quando já estava bastante deteriorado — posteriormente, foi recuperado e hoje serve de escritório para Petronilha. Do tempo da infância, diz que apenas uma amiga ainda mora no bairro, o resto das famílias da Colônia Africana se foi para outras partes da cidade. “As famílias eram grandes, morriam os mais velhos e era difícil ficar todo mundo morando junto. E a especulação imobiliária, claro”, diz.

Petronilha integrou a primeira turma do Colégio de Aplicação. Foto: Luiza Castro/Sul21

Petronilha saiu do Colégio de Aplicação para ingressar na Faculdade de Letras da UFRGS aos 18 anos. “Eu acho que nós, do Colégio de Aplicação, todos entramos na UFRGS, para diferentes carreiras, mas continuamos na UFRGS”, lembra. Naquele tempo, o curso de Letras licenciava para línguas neolatinas — português, francês, espanhol e italiano. Ela chegou a estudar essas línguas e suas literaturas. Mas, na virada do segundo para o terceiro ano de graduação, houve uma reforma universitária obrigando os estudantes a optarem por apenas uma delas. Optou pelo francês, que já havia tido aulas no Aplicação, juntamente com o inglês. “A gente não saía fluente, mas conseguia falar, conseguia ler”.

Licenciou-se em Língua e Literatura Portuguesa e Francesa em 1964, mas já havia começado a dar aulas no ano anterior, pois o Ministério da Educação (MEC) à época permitia e estimulava que graduandos assumissem turmas de escolas distantes do centro das cidades. Por isso, começou a dar aulas, aos 21 anos, na escola Antão de Faria, que na época ainda não era estadual, como é hoje, e sim fazia parte de uma campanha nacional de educandários gratuitos em comunidades carentes. A escola ficava na divisa de onde hoje se encontram a Vila Jardim e a Bom Jesus.

“Foi uma experiência interessante para começar, até porque era ginásio e tinha uma população que não tinha estudado, ou porque fosse já adulto, estava trabalhando, ou, como eu tive alunas até mais velhas do que eu, nunca tinham estudado porque os pais não queriam que pegasse o ônibus para ir até o Centro. Então, foram fazer o ginásio nessa época. Eu tinha um sala que eu tinha o pai e os filhos que estavam fazendo o ginásio”, relembra.

Ainda na graduação, também começou a dar aulas de francês para uma turma do Colégio de Aplicação, onde permaneceria lecionando por 11 anos. No Antão de Faria, daria ainda mais um ano de aulas após se formar. Nessa época, também já tinha pego algumas turmas de Português para o ginásio do tradicional colégio particular Bom Jesus Sévigné, localizado na Duque de Caxias, bem no centro. Assim, mal havia se formado e já tinha experiências em realidades totalmente distintas, na vila e no centro, em escola pública e privada. “No início eu juntava os três [colégios], mas acabei deixando as aulas na Vila Jardim, porque aí não dava para dar conta de trabalhar de manhã, de tarde e de noite”.

Esses primeiros passos na docência foram combinados com uma bolsa que recebeu do governo francês para aperfeiçoar seus conhecimentos em Literatura Francesa na Universidade de Nice.

Petronilha deixou a Antão, mas, em 1966, voltou para o Estado, na escola Souza Lobo, localiza na Av. Bahia, bairro São Geraldo, onde os contratos eram renovados anualmente. Nesse período abriu um concurso para professora no colégio Júlio de Castilhos, que à época escolhia seus docentes em processos seletivos separados das demais escolas, para Português e Francês. “Fiquei em sexto lugar nos dois, mas optei por ficar só em Português porque era muita coisa”.

Petronilha era tão jovem quando ingressou no corpo docente da escola que um dia foi para aula com uma japona que usava desde os tempos do colégio e foi barrada por uma funcionária que veio lhe cobrar por não estar vestindo o uniforme. “Ela disse: ‘Com esta saia não pode entrar’”, recorda.

Como professora do Julinho, acompanhou a transição da democracia para a ditadura e o recrudescimento do regime militar. “Foi muito espantoso. As coisas foram lentas, foram piorando. No primeiro ano, elas ainda não eram tão terríveis. Acho que tinha uma transição que não dava para perceber bem onde as coisas chegariam”, diz.

Aos poucos, começou a ver professores se aposentando ou partindo para o exílio. Ela recorda de um colega em especial, o professor Ernani Ricci, um italiano, que havia chegado ao Brasil fugido da Segunda Guerra Mundial. No tradicional colégio estadual da João Pessoa, dava aulas de italiano. A história conta que uma noite Ricci estava em casa e foi avisado de que a polícia militar iria invadir o centro acadêmico para reprimir os estudantes que realizavam debates políticos no local.

“Ele se adiantou e, quando a polícia chegou disse: ‘não, os estudantes não estão fazendo nada de errado, estão discutindo as ideias deles e ninguém tem que intervir’. A gente dizia: ‘Mas como o professor Ricci? Ele é muito mais conservador’. Mas ele era um homem honesto. Podia não compartilhar as posições políticas dos estudantes, mas ele garantia o direito de os estudantes debaterem”, recorda. O italiano acabou aposentado, o que, à época, era considerado um “castigo menor”. “Mas para ele foi muito duro”, diz Petronilha.

Depois de dar aulas em colégios tradicionais da Capital, públicos e privados, a professora ingressou na gestão. Foto: Luiza Castro/Sul21

Petronilha seguiu conciliando as aulas no Colégio de Aplicação, no Julinho e no Sévigné, onde também assumiu uma função de coordenação pedagógica, até o início dos anos 1970. “Eu tive experiência com alunos de diferentes grupos sociais. O Sévigné era uma escola só de meninas e meninas de classe alta, em geral. Pelo menos, se não eram pessoas de dinheiro, os pais eram professores universitários. Também foi uma experiência riquíssima”, diz. Por um período curto, chegou a acumular ainda uma quarta escola, o colégio Inácio Montanha, no bairro Santana, após passar em um concurso estadual.

Era 1972 quando começou a perceber que os problemas educacionais com os quais convivia em sala de aula não poderiam ser resolvidos apenas do ponto de vida pedagógico. “Eu fui me dando conta que era insuficiente, que havia questões que precisavam ser pensadas no macroplanejamento da educação do estado, porque não se restringiam à responsabilidade do professor em sala de aula, na relação professor e aluno”, diz.

Essa inquietação a levou, em 1976, ao mestrado, mais uma vez retornando à UFRGS, que apenas recentemente havia aberto seus cursos de pós-graduação para pessoas de fora do corpo docente da instituição. A pesquisa foi desenvolvida no campo do Macroplanejamento da Educação, o que lhe valeu um convite para trabalhar no gabinete de planejamento da Secretaria de Educação (Seduc), onde integrou a equipe responsável pelo segundo plano estadual de educação do Rio Grande do Sul.

Durante o trabalho na Secretaria, tirou férias na Europa com a mãe e amigas que também tinham estudado por lá. Certo dia, em Paris, visitou o Instituto Internacional de Planejamento da Educação na Unesco. Buscava outras informações, mas descobriu que havia um curso disponível na área de planejamento em educação para professores de países em desenvolvimento. O entrave era que o ingresso estava condicionado a uma carta de indicação assinada pelo ministro da Educação. Petronilha sabia que o ministro provavelmente não lhe ajudaria, mas resolveu tentar a sorte com o secretário estadual de Educação, com quem trabalhava no gabinete e que tinha sido seu colega no Julinho. O pedido foi aceito e Petronilha recebeu a bolsa.

Como define, era um curso “dos ricos para os pobres”. Tinha colegas de países da África, da Ásia e de vizinhos como Peru, Venezuela e Colômbia. Os únicos europeus vinham de Portugal e da Bulgária, historicamente considerados “primos pobres” do continente. Como parte da formação do curso, conheceu sistemas escolares na França, na Inglaterra e na antiga Alemanha Oriental. Além de todo o aprendizado adquirido, brinca que o curso valeu muito a pena por causa da bolsa. “Era riquíssima, pagava dentista, médico, foi uma bolsa financeiramente muito boa. Usei o dinheiro da bolsa e ainda fiz poupança, depois consegui viajar. A gente também não gastava tanto”, ri.

Quando retornou à secretaria, por ser da área de Letras, foi encarregada de redigir o plano estadual a partir do trabalho que seus colegas vinham desenvolvendo. Concluída essa etapa, foi convidada para fazer parte da assessoria técnica do Conselho Estadual da Educação, onde ficaria por três anos até ingressar no Doutorado, mais uma vez na UFRGS, em 1983.

Sua tese de Doutorado é considerada pioneira no campo. Foto: Luiza Castro/Sul21

Petronilha conta que o engajamento nas lutas do povo negro veio do berço, mas que a participação em movimentos organizados só viria com a maturidade. Recorda que foi a partir de 1983 que passou a se envolver mais diretamente, especialmente com a questão educacional. Mais recentemente, Petronilha tem sido uma voz importante na temática do feminismo negro, mas pontua que, nos anos 1980, isso ainda estava distante. “A gente não distinguia ‘isso é um movimento feminista’. Isso vem mais tarde, embora a questão da mulher negra sempre estivesse posta. Mulher negra, mãe negra, na educação das crianças, dos jovens. A gente fez muitos trabalhos para as mulheres”.

Um marco de seu envolvimento com a questão racial foi sua tese de Doutorado, trabalho não só pioneiro no seu campo como, 18 anos depois da defesa, responsável por ajudar a comunidade negra do Limoeiro a ser reconhecida pelo Incra como um território quilombola. Sem nenhum outro estudo antropológico sobre a região, a população local acabou usando a tese de Petronilha para subsidiar a luta junto ao governo federal pelo reconhecimento do território. “Eu tenho muita facilidade de me adaptar, felizmente. Eu tinha um amigo que dizia: ‘Tu é de extremos, ou tu te mete lá num fundão que a gente não sabe onde é ou vai para Paris’. Eu digo: ‘É isso mesmo’.”

A pesquisa, na época, foi desenvolvida depois de Petronilha ser enviada pela UFRGS para passar um mês em uma escola de meio rural de difícil acesso no município de Palmares do Sul. “Eu fiquei contente porque tinha me chamado a atenção que todas as professoras eram negras nessa comunidade. Todas eram três”. A escolinha tinha duas turmas, uma de primeiro e segundo anos e outra de terceiro e quarto. “Todas as crianças eram negras, com exceção de um menino de terceira e quarta e de uma menina de primeiro e segundo. Aí me chamou a atenção”, relembra.

Depois das escolas, foi a a vez de Petronilha se dedicar a dar aulas no ensino superior. Foto: Luiza Castro/Sul21

A carreira universitária de Petronilha começara em 1974, como professora do curso de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), tendo dividido a atividade com o trabalho no Estado. Ficaria na universidade até 1989, quando foi aprovada em concurso para professora do Departamento de Metodologia do Ensino da Universidade Federal de São Carlos (UFScar), no interior de São Paulo.

A relação com a UFScar, no entanto, havia começado a ser moldada três anos antes, 1986, quando foi convidada para participar de uma reunião da Fundação Carlos Chagas que discutiu a educação da comunidade negra em São Paulo — até hoje considerado um dos mais importantes encontros sobre o tema no Brasil –, que reuniu educadores e ativistas de todo o País. Na época, foi convidada para atuar como professora visitante na UFScar. Contudo, a universidade do interior paulista estava com as contratações temporariamente suspensas, e o convite acabou não podendo se concretizar.

Passados três anos, soube que havia um concurso aberto em São Carlos. Ficou em segundo lugar, mas seria chamada, porque o departamento precisava de duas vagas. “Para mim foi bom, porque eu tinha que me aposentar de um cargo do Estado e me exonerar de outro, tinha que sair da PUCRS e não podia dizer ‘vou-me embora’, tinha que terminar o semestre”.

Foi professora titular em São Carlos até 2012, dois dias antes de completar 70 anos, quando seria “aposentada compulsoriamente”. Voltou para Porto Alegre e, desde então, tem alternado períodos na UFScar, na UFRGS e na Universidade Federal do Paraná (UFPR). “Eu disse que nunca mais ia me institucionalizar. Eu colaboro se as pessoas me convidam”, diz, destacando que já não tem mais interesse em cumprir exigências de produção acadêmica e que a liberdade permite fazer coisas que não tinha anteriormente, como passar uma temporada em Moçambique ao lado de outros docentes ligados ao movimento negro, como a ex-ministra da Igualdade Racial Nilma Lino Gomes, em 2019. “Eu vejo colegas sofrendo com as exigências da Capes. Se eu posso ficar fora, porque vou ficar dentro?”.

Dos primeiros estágios até os cursos que ministra hoje de forma esporádica em universidades federais, lá se vão 58 anos de sala de aula para Petronilha. Mas não é possível falar sobre a sua vida sem lembrar o fato pelo qual seu nome ficará para sempre marcado na história da educação brasileira: ser relatora das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da História Afro-Brasileira e Africana (2004).

Essa história começa justamente por sua ligação com os movimentos negros nacionais a partir da década de 80 e da pesquisa na área das Relações Étnico-Raciais e Educação que desenvolveu na UFScar. Até hoje, Petronilha não sabe ao certo quem foi o responsável pela indicação, mas em 2002 foi convidada para participar do Conselho Nacional de Educação ocupando uma vaga que estava sendo criada para ser reservada ao movimento negro.

Ela lembra que retornava a São Carlos depois de participar de um evento e ligou a secretária-eletrônica para ouvir seus recados. O primeiro era de uma colega do tempo da graduação lhe parabenizando. “Eu pensei: ‘mas o que deu na Lia? Ela sabe que o meu aniversário não é agora’. Não entendi”. Na sequência, recebeu uma ligação de um colega da UFScar, que também lhe parabenizou. Mas, dessa vez, explicou que a congratulação era pela vaga no “conselho de educação”.

Ela foi a primeira mulher negra a integrar o Conselho Nacional de Educação. Foto: Luiza Castro/Sul21

Petronilha entendeu menos ainda. De fato, o seu nome havia sido discutido para ocupar uma vaga em um conselho que havia sido criado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso para decidir sobre estudantes negros que receberiam bolsas de estudo para o Itamaraty, mas havia desistido pelos compromissos com a universidade.

— Não, não é esse, eu estou falando do Conselho Nacional de Educação — disse o colega.

Petronilha não sabia, mas a sua indicação já havia saído no Diário Oficial da União e até na Zero Hora, onde sua colega de faculdade havia lido. Era a primeira mulher negra a participar do Conselho Nacional de Educação (CNE).

O CNE se reunia uma vez por mês em Brasília. Petronilha logo percebeu que questões étnico-raciais não estavam entre as principais discussões do órgão. Por isso, decidiu aproveitar as viagens mensais que fazia à capital federal e se reunir também com outras lideranças do movimento negro que atuavam em Brasília.

“O Ivair Augusto dos Santos estava no Ministério da Justiça. A Zélia Amador de Deus estava no Ministério da Agricultura. A Jeruse Romão estava na Unesco. A Rachel de Oliveira estava na Educação, que tinha também a Maria Auxiliadora, uma funcionária de carreira. Cada um de uma parte do Brasil”.

Esse time passou a discutir as necessidades da população negra para que Petronilha levasse posteriormente para as reuniões do CNE. A indicação da elaboração de diretrizes nacionais para as relações étnico-raciais foi apresentada em novembro ao conselho, sendo aprovada por unanimidade. Concomitantemente, tramitava no Congresso uma proposta de lei de autoria da bancada do PT que alterava a Lei de Diretrizes Básicas da Educação para incluir o ensino de temáticas africanas e afro-brasileiras na educação básica. A proposta viria a ser sancionada como lei 10.639 em janeiro de 2003, logo após Lula tomar posse como presidente do Brasil.

Coube então ao CNE regulamentar a Lei 10.639 e explicar o que exatamente significava a história e a cultura africana sobre as quais os alunos brasileiros deveriam passar a aprender. A relatoria do texto da regulamentação da lei ficou a cargo de Petronilha. Ela conta que, ao longo de 2003, diversas audiências públicas foram realizadas para discutir o tema. Além disso, o grupo que reunia expoentes do movimento negro chegou à conclusão de que eles próprios precisavam estudar sobre a história e a cultura africana.

“Eu lembro que uma colega passou pelo meu gabinete em São Carlos e falou: ‘Mas que tanto tu escreve?’ Eu disse para ela: ‘Estou escrevendo a minha segunda tese. Com uma diferença, a primeira foi muito maior, tinha mais de 200 páginas e uma banca pequena, seis pessoas, agora eu vou ter umas 10 páginas e era o Conselho inteiro, uma banca muito maior.” O texto foi concluído em março de 2004, sendo aprovado por unanimidade no CNE.

Petronilha prefere não dizer que esse é o grande legado de sua trajetória, diz apenas que foi porta-voz de um legado do movimento negro e de um trabalho no conselho, que também contribuiria para a aprovação das cotas raciais no ensino superior. “Coube a mim sistematizar uma demanda do movimento negro que atravessa o século XX, mas não é um legado meu pessoal. Se eu tivesse um legado, seria a discussão na pesquisa em educação da questão racial”, afirma.

Ela ressalta que os avanços conquistados pelo movimento negro não podem ser atribuídos apenas às pessoas que estiveram presentes em momentos de assinatura, pois, diz, os textos legais, como a Lei 10.639, só se tornaram realidade porque houve quem os precedesse ao longo de todo o século 20, como a própria professora Regina, sua mãe.

“Muitas vezes, as professoras sozinhas, individualmente ou ao se juntarem com amigas de diferentes escolas, tinham esse cuidado com os seus alunos. Não é uma coisa que nasce sozinha do movimento negro. Eram professoras ligadas a movimentos sociais ou não”.


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