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10 de março de 2020
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11:06

Luana: Um corpo político contra a gordofobia

Por
Annie Castro
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A modelo Luana Carvalho se tornou referência para meninas e mulheres gordas do país. Foto: Luiza Castro/Sul21
A modelo Luana Carvalho se tornou referência para meninas e mulheres gordas do país. Foto: Luiza Castro/Sul21

Quando adolescente, Luana Carvalho queria encontrar na internet outras mulheres negras e gordas com quem se identificasse. Hoje, aos 20 anos, a modelo moradora da Vila Ipiranga, na Zona Norte de Porto Alegre, se tornou uma referência para meninas e mulheres gordas das mais distintas idades e das mais diferentes partes do país. Com um discurso acessível, ela é um dos rostos do movimento contra a gordofobia nas redes sociais.

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Luana sempre foi uma pessoa gorda, mas nem sempre soube o que era a gordofobia. Só quando adolescente descobriu que as humilhações que sofria por seu peso eram, na realidade, uma forma de preconceito. Vinda de uma família acolhedora, que nunca questionou e nem oprimiu seu corpo, quando criança não conseguia entender porque fora de casa recebia um tratamento diferente por parte da sociedade. “O meu conflito maior não era porque eu me achava feia, mas sim o questionamento de ‘por que eu era tratada de outro jeito e excluída quando ia para a rua, se a minha família, meu maior exemplo de amor, dizia que estava tudo bem comigo e com meu corpo?’”

A exclusão das brincadeiras e atividades esportivas na escola e as piadas sobre seu peso eram frequentes. Todas as maiores humilhações que sofreu ao longo da vida, fosse no âmbito virtual ou em espaços públicos, diziam respeito ao seu corpo. Luana explica que “por ser negra, mas ter a pele mais clara e um cabelo que não é tão crespo”, acaba não sendo vítima de casos tão explícitos de racismo quanto outras pessoas negras na sociedade. “Eu sofria mais aquele racismo velado, que sempre sofri e vou sofrer até o resto da vida, mas o que eu mais sofri de humilhação explícita foi por causa do meu corpo”, relata.

Aos 20 anos, Luana busca compartilhar conteúdos acessíveis sobre o movimento anti-gordofobia. Foto: Luiza Castro/Sul21

Na época, Luana sentia apenas que o tratamento que recebia não estava certo. O primeiro contato com a expressão gordofobia e com o significado do termo só aconteceu quando ela tinha em torno de 17 anos. Luana descobriu que o que vivia era uma forma de discriminação por meio do movimento anti-gordofobia que existe na internet e é propagado por influenciadoras nas redes sociais.

Essa descoberta foi uma consequência da necessidade que tinha na época de encontrar pessoas com quem se identificasse, ou seja, mulheres negras e gordas, que não fossem de classes altas e tivessem padrões e trajetórias de vida parecidos com o seu. “Enquanto pessoa negra, eu conseguia achar representatividade nas redes ou na cultura, mas eu não sou, por exemplo, uma Taís Araújo ou uma Iza, eu sou completamente diferente delas”, diz Luana. Embora encontrasse referências negras, Luana não conseguia se enxergar nelas devido às diferença de corpo e biotipo.

Por carregar consigo tantas lembranças de sofrimento ocasionado pelas humilhações que sofreu enquanto mulher gorda, Luana não se sentia plenamente representada pelo movimento negro e anti-racista. “Eu sentia que metade de minha existência era apagada dentro do movimento negro”.

Por ser negra, Luana não se sentia contemplada pelo movimento anti-gordofóbico. Foto: Luiza Castro/Sul21

Passou então a procurar nas redes sociais novas referências de mulheres que fossem negras e gordas, que tivessem vivências parecidas com as suas, a fim de encontrar um espaço onde se sentisse representada por inteiro. Foi quando que descobriu o que era gordofobia e o movimento anti-gordofóbico que existe nas redes sociais. Mas Luana também não conseguiu encontrar ali a representatividade que procurava.

“Quando comecei a ter contato com o movimento anti-gordofóbico, eu percebi que ele é branco demais, elitizado demais. Se dentro do movimento negro eu sentia que metade da minha existência era apagada, dentro do movimento anti-gordofobia eu também sentia isso, porque minha vivência enquanto negra não era falada porque é extremamente branco, classista e racista esse movimento”, conta.

Muitas das reivindicações do movimento anti-gordofobia, segundo Luana, são pautadas de um lugar privilegiado na sociedade. Ela cita como exemplo constantes reclamações sobre a ausência de cadeiras acessíveis para pessoas gordas em cinemas, teatros e aviões. “Quantas pessoas gordas no Brasil tem dinheiro para frequentar esses espaços?”, questiona. Segundo ela, embora sejam reclamações válidas, são questões que não representam a comunidade gorda do Brasil, já que a maioria da população é pobre.

Foto: Luiza Castro/Sul21

“Existem pessoas sendo demitidas ou não sendo contratadas por serem gordas. Se a gente tem um problema de mercado de trabalho para pessoas gordas, por que exatamente estamos reclamando sobre poltrona de avião? É como se todas as pessoas gordas fossem brancas, tivessem dinheiro e ocupassem um lugar de privilégio na sociedade e sofressem da mesma forma”, diz. Luana relata que muitas das pessoas gordas brasileiras querem apenas poder “ir numa loja de departamento e comprar uma blusa de R$ 29,90, porque não têm dinheiro para comprar uma roupa de 200 reais que caiba nelas”.

Como uma tentativa de escurecer o movimento anti-gordofóbico, deixando-o mais condizente com a realidade do país e mais acessível a pessoas parecidas com ela, Luana acabou se tornando a representatividade que tanto buscava: uma mulher negra e gorda. Também se tornou uma militante que aborda em seu discurso questões de corpo, de raça e de classe.

Hoje, com mais de 10 mil seguidores no Instagram e no Twitter, Luana produz e compartilha conteúdos acessíveis e didáticos, que alcançam pessoas gordas que não fazem parte das classes altas. Ela também busca transformar textos e pensamentos acadêmicos, que costumam ser divulgados no meio anti-gordofóbico, em narrativas fáceis e com uma linguagem simples de entender. “Alguém tem que fazer o trabalho de base, e eu fico muito feliz de fazê-lo e de estar preocupada em atingir mais pessoas”, diz.

Foto: Luiza Castro/Sul21

Em junho de 2019, Luana foi convidada para fazer parte do Coletivo Gordoridade, criado pelo Fórum de Combate à Gordofobia do Rio Grande do Sul, e que tem como objetivo desenvolver ações que tornem maior a acessibilidade para a comunidade gorda no Estado. Além de conversar com a população por meio de palestras, debates, seminários, ou panfletagens, o Coletivo também dialoga com políticos de diferentes vertentes e com as iniciativas governamentais, a fim de buscar apoio para as ações que desenvolve e conseguir políticas públicas de acessibilidade.

Embora o alcance que as redes sociais geram para os movimento anti-gordofóbico seja grande, Luana afirma “combate à gordofobia não se faz só dentro de internet, não se faz só em roda de conversa, mas é preciso alcançar a iniciativa política também”. “A partir do momento em que há a exclusão de uma determinada população, a gente precisa de políticas públicas”, pontua.

Além da participação no Coletivo Gordoridade, no verão deste ano Luana, juntamente com a amiga Gabriella Morais,  criou a campanha ‘Carnaval Sem Gordofobia‘. A iniciativa teve como objetivo reunir pessoas gordas para curtirem um bloco de rua do Rio de Janeiro. “O objetivo mesmo era juntar essas pessoas gordas, que tinham tantas experiências ruins quanto a gente ou que nunca tinham ido em um bloco para se divertir”, relata Luana.

Foto: Luiza Castro/Sul21

Antes disso, a única vez em que Luana tinha ido em um bloco de carnaval havia sido em 2017, em Porto Alegre, quando vivenciou diversos episódios explícitos de gordofobia. “Eu ouvia comentários das pessoas ‘nossa, olha lá aquela gorda dançando’, ‘como é que ela não tem vergonha?’, e eu sabia que era para mim. Eu fiquei o bloco inteiro ouvindo isso. Depois disso, fomos para um samba na Zona Sul, e eu ouvia os mesmos comentários”, conta.

Na época, existia ainda uma rede social de perguntas anônimas. Ao chegar em casa, após os episódios no bloco e no samba, a caixa de mensagem de Luana na rede social estava cheia de xingamentos. “Tinha mensagens, todas anônimas, que diziam coisas como ‘tu parecia uma almôndega dançando’, ‘como tu tem coragem de sair de casa’. Depois disso, eu nunca mais fui em bloco nenhum”. Para evitar que pessoas gordas deixassem de aproveitar o carnaval e criar um ambiente acolhedor para que elas pudessem apenas se divertir em um bloco de rua, Luana e a amiga decidiram criar a campanha. “Foi uma experiência completamente diferente da que eu tinha vivido em 2017”, diz.

Por falar para diferentes pessoas que a seguem, inclusive para meninas que são menores de idade, Luana ressalta que precisa ser muito responsável com o conteúdo que compartilha nas redes sociais. Diferentemente de como era no inicio de sua militância na internet, hoje ela reflete mais antes de postar determinado assunto ou abordagem. “Tenho responsabilidade com essas pessoas, porque elas se inspiram na minha vida e no que eu falo. Afinal, esse é o meu trabalho”.

Questionada sobre como se sente por ser uma referência para outras mulheres, Luana desabafa que existe um lado bom e outro ruim. O bom, explica, é se sentir feliz e ter entendido “o que eu vim fazer nesse mundo, que é falar sobre essas questões”. Também entra nessa definição, segundo ela, as mensagens positivas que recebe de seguidoras. “Todos os dias eu recebo mensagens, principalmente de mulheres negras e adolescentes, dizendo que depois que começaram a me seguir passaram a se olhar no espelho melhor, a gostar do que elas veem e também a entender o lugar em que elas vivem e a se enxergar enquanto um corpo político”, relata.

Fotos pro especial 8M. Foto: Luiza Castro/Sul21

Já o lado ruim, conta, são situações como a desumanização, pela sociedade, de quem é ativista de alguma causa, a quantidade de haters e mensagens de ódio que recebe constantemente em seus posts e a enxurrada de textos tristes que recebe das seguidoras – e que muitas vezes são gatilhos para ela. “É muito solitário”, resume Luana. “As pessoas adoram o que eu falo, adoram o que eu tô fazendo, mas não estão ali comigo. É um negócio muito cansativo, porque é muito ódio que eu recebo. Eu já tive inúmeras crises de ansiedade por causa disso”.

Como ferramentas para cuidar de sua saúde mental, Luana de vez em quando fecha a caixa de mensagens nas redes sociais e pede para o namorado excluir das redes dela os posts com maior número de ataques. “Não posso também ficar apagando sempre, porque sempre vai ter gente fazendo isso. Quanto mais eu crescer, mais isso vai acontecer. Mas tem dias que não tem como, eu sou humana e tem dias que não consigo segurar a barra, então, prefiro ter paz”, afirma.


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