8M|z_Areazero
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9 de março de 2020
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10:48

Guaneci: Terra fértil para aprender, ouvido alerta para escutar

Por
Ana Ávila
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Guaneci de Ávila, liderança da Restinga na luta em defesa das mulheres vítimas de violência. Foto: Luiza Castro/Sul21
Guaneci de Ávila, liderança da Restinga na luta em defesa das mulheres vítimas de violência. Foto: Luiza Castro/Sul21

“A minha vida toda foi cuidar das pessoas”. Maria Guaneci de Ávila lembra que, aos 12 anos, quando ainda morava em sua cidade natal, São Luiz Gonzaga, era designada para pernoitar no hospital, acompanhando mulheres que haviam acabado de dar à luz. Desde então, ela está ao lado das mulheres, especialmente daquelas vítimas de violência. Aos 62 anos, é referência na sua comunidade, a Restinga, e nas instâncias que atendem mulheres em Porto Alegre. “Se tu for no centro de referência das mulheres municipal, se tu for na delegacia da mulher, se tu for na vara da violência, se tu for na Brigada Militar, aqui, ali, todo mundo conhece a Guaneci porque, em algum momento, eu me envolvi em determinada situação para ajudar uma mulher”.

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Guaneci chegou à Restinga em 1987. Com ela, levava um filho de 6 anos e outro de poucos meses, que necessitavam de escola e creche para que ela pudesse trabalhar como empregada doméstica. Logo percebeu que precisaria se envolver na vida em comunidade para fazer avançar os serviços dos quais ela mesma dependia. Foi se unindo a outras mulheres, participando da associação do bairro e lutando, desde o princípio, para que a escola onde estudaria o mais velho fosse concluída e a primeira creche pública chegasse ao bairro. “Quando meu filho entrou na escola, fui a primeira presidenta do Clube de Pais e Mestres”, lembra com orgulho.

O perfil de liderança já despontava nessa rotina. Era procurada quando uma mulher vítima de violência precisava de ajuda para deixar a casa dividida com o agressor, quando, sem outra renda, precisava que os vizinhos se unissem para garantir a cesta básica ou para comprar uma passagem e retornar a algum município do interior, em busca de apoio familiar. “Quando morria uma pessoa, iam lá em casa, eu fazia uma lista, ia atrás de apoio. Se uma pessoa ia no posto de saúde e não era atendida, me procurava ‘quem sabe tu vai comigo, tu fala melhor’. Eu sempre disse pras mulheres: eu não falo melhor, eu só tenho um pouco mais de coragem”, ela conta.

Junto da coragem, Guaneci lembra trazer com ela, desde a juventude, um senso de justiça que a impelia a ir adiante. Em 1994, quando a ONG Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos chegou à comunidade em busca de mulheres para participarem de seu primeiro curso de formação de Promotoras Legais Populares (PLPs), ela viu uma oportunidade. Guaneci relembra que soube do curso na paróquia, onde era catequista. “Pensei, nossa, agora eu vou ser advogada”. Ela estava enganada, não seria advogada, mas não precisaria do curso de Direito para trabalhar por justiça social e estar ao lado das mulheres.

“Eu sempre me incomodei muito com a violência que estava ao meu redor, até por ter vindo de uma família grande, de origem indígena, do interior, tinha muitas dificuldades. É uma coisa que está dentro de mim, eu não aceito injustiça, não aceito violação de direitos. O que a Themis fez foi me fortalecer, me empoderar com conhecimento”, afirma.

Trajetória na Themis marca a história de vida de Guaneci. Foto: Luiza Castro/Sul21

O programa de formação das PLPs, criado pela Themis em 1993, é um instrumento de afirmação e disseminação dos direitos humanos das mulheres, particularmente em relação à violência doméstica e aos direitos sexuais e reprodutivos. Começou na capital gaúcha, e, 20 anos depois, está implementado em 14 municípios do Estado do Rio Grande do Sul e em 11 estados brasileiros. As Promotoras Legais Populares são lideranças comunitárias capacitadas em noções básicas de Direito, direitos humanos das mulheres, organização do Estado e do Poder Judiciário para atuar voluntariamente em suas comunidades na defesa (orientação e triagem de demandas de violação de direitos), na prevenção de violações (educação sociocomunitária em mutirões e oficinas) e na promoção de direitos (participação e representação em conselhos, conferências, comissões e fóruns).  Por sua atuação, a Themis fez parte do consórcio que escreveu a Lei Maria da Penha em 2006. Guaneci explica que muito do que está na lei foi escrito em função do trabalho das PLPs nas comunidades

A formação proporcionada pela Themis seria semente na terra já fértil que era Guaneci. Dali em diante, ela atuaria como conselheira tutelar, conselheira da assistência social, e se envolveria cada vez mais em demandas da comunidade. “Deixava os filhos na creche, ia trabalhar, chegava de tardezinha, pegava eles e ia pras reuniões, levava junto, sempre comigo”. O exemplo garantiu à mãe dois filhos que a enchem de orgulho. “Ter dois filhos que nunca puderam escolher um tênis, uma camisa, era o que eu podia dar… e ter os filhos que eu tenho hoje… eu sempre digo, eu sou a mãe mais feliz do mundo porque criar esses dois filhos com essa ideia de respeito às pessoas, às mulheres, principalmente, pra mim, não tem preço. Fico pensando: onde foi que eu acertei, porque eu acertei”.

Guaneci é só orgulho pelo filhos, mas é também a maior ídola deles. Nas histórias que guarda na memória, uma carta escrita por um deles para uma vaga de emprego contando a trajetória dela e o cuidado do outro com a esposa e a filha dão o tom dos laços que unem essa família. Mas, se a infância dos dois rapazes não foi fácil, muito menos foi a da mãe. Aos 7 anos ela já trabalhava em casas de família, e assim foi até 1998. Depois do curso da Themis, acabaria se envolvendo em diferentes projetos que, aos poucos, mudariam o rumo da sua vida.

Em 2000 ela conta que a necessidade de voltar a estudar bateu forte. Tinha, até então, a terceira série do ensino fundamental e “já tinha sido conselheira de tudo que era coisa”, ri. Guaneci lembra que começou a sentir vergonha de dividir a mesa de seminários com juízes, promotores, psicólogos enquanto ela era “a Guaneci da Restinga”. Em 2002 voltou à escola e conclui os ensinos fundamental e médio. Com ela, levou outras mulheres da comunidade. Guaneci, mais uma vez, era exemplo. “O mais bacana de tudo isso, além de hoje eu poder dizer que sou uma técnica, que estudei um pouco, foi ter trazido comigo várias e várias mulheres, que como eu não tinham estudo e, hoje, tem pedagogas, tem advogadas, tem outras assistentes sociais, a gente conseguiu motivar várias mulheres para que elas também estudassem. É possível”.

Junto com ela, Guaneci levou outras mulheres para que retomassem os estudos e tivessem outras oportunidades. Foto: Luiza Castro/Sul21

Possível é. Em 2005 Guaneci prestou vestibular na Ulbra, em Canoas. Em 2012, formou-se assistente social. Em 2014, concluiu uma pós-graduação em gestão de pessoas. Mas nunca foi fácil. “Sabe o que são seis anos da Restinga a Canoas?”, pergunta bem-humorada. Mais de duas horas pra ir e outras duas pra voltar, mas essa dificuldade ela tiraria de letra. Em 31 de dezembro de 2007, ainda nos primeiros anos de faculdade, ela enfrentou uma situação ainda mais árdua. Após 30 anos de casamento, Guaneci juntou suas coisas e foi embora. “Ele nunca aceitou o tipo de vida que eu tinha, nunca concordou. Só quando aparecia na TV, ele ficava todo, todo, mas no restante do tempo, ele me desdenhava”. Com os filhos mais crescidos e começando uma nova fase na vida, ela achou que era hora de seguir em frente.

Como em tantos relatos que escuta ao auxiliar outras mulheres, Guaneci deixou o casamento com “uma mão na frente e outra atrás”, como relembra. Para trás ficou o que ela tinha construído em três décadas de união. “As minhas amigas da Themis diziam ‘Guaneci, tu é louca’. Quando elas viram onde eu fui morar, numa maloquinha caindo aos pedaços, ficaram loucas comigo”. Ela conta que valeu a pena. “Hoje eu tenho uma casa maravilhosa, trabalhei muito, muito, muito e construí uma casa maravilhosa, que eu gosto muito, uma casa simples, mas com minhas folhagens, tudo organizado, tudo lindo, maravilhoso”.

Pergunto se a vivência desse relacionamento a ajuda a lidar com as situações de violência que escuta diariamente: “Eu sempre digo, a gente tem que escutar as mulheres porque tem várias situações que impedem uma mulher de se separar. Tem a parte afetiva, porque quando eu escolhi alguém eu não escolhi porque me maltratava, eu escolhi porque eu estava apaixonada, tem os filhos e tem também, às vezes, o único bem…”.

Guaneci explica que cada caso é um caso. “O importante é a gente escutar e pensar junto: o que é que você quer fazer pra tua vida e no que eu posso te ajudar. Essa é a melhor estratégia, ela sentir que tu está do lado dela, sentir que tu pode acolher. Sempre que uma mulher me procura, eu digo: ‘tudo que tu me falar agora, eu só quero te dizer uma coisa, já faz mais de 20 anos que eu escuto mulheres vítimas de violência, de todas as formas que tu puder imaginar, então, qualquer coisa que tu possa me trazer, a gente vai poder construir juntas uma saída’. Elas respiram, tem alguém pra quem podem falar”.

Depois da graduação, Guaneci estava há poucos meses trabalhando na equipe técnica da Themis, responsável pelo acolhimento de mulheres vítimas de violência, articulação de redes e cursos de formação de PLPs, quando foi procurada para disputar uma vaga de assistente social em um Centro de Assistência Psicossocial (CAPS) da Restinga. Foi selecionada e, depois de apenas três meses de trabalho, quando ainda organizava o processo de chegada do CAPS na comunidade, o coordenador foi embora para outro Estado e ela foi convidada a assumir a coordenação, com uma equipe de mais de 30 pessoas. Atualmente, ela desfruta de suas primeiras férias na função.

Hoje, depois de quase 40 anos de luta, Guaneci diz que, às vezes, ainda tem a sensação de que não fez nada. Pergunto o que mudou, entre aquela mulher que chegou à Restinga nos anos 80, e essa, de hoje. “Conhecimento”, responde de pronto. “Porque a gente sempre teve muita boa vontade e disponibilidade, mas não tinha conhecimento, não sabia onde procurar, o que fazer, como fazer. Hoje é diferente. Claro que a gente nunca sabe tudo, eu ainda tenho muito o que aprender e busco todos os dias aprender alguma coisa”. Nos planos para breve, voltar aos estudos. “Alguma coisa na área da Psicologia”, diz. “Eu já percebia que quando eu acolhia as mulheres faltava um conhecimento técnico pra entender alguma coisa a mais, estou pensando ainda, é o próximo desafio”.

Guaneci já tem planos para breve: ‘alguma coisa na área da Psicologia’, diz. Foto: Luiza Castro/Sul21

Mas ela sabe que o conhecimento acumulado não vem só dos bancos escolares. Diz que, no trabalho, se formou enquanto pessoa, enquanto mulher, enquanto sujeito. “Não foi só estudando, mas participando. Eu penso que quando tu participa de fato dos movimentos, das lutas é que tu aprende. As estratégias, as articulações, a escola não ensina”. Na universidade, ela relembra que os professores explicavam as teorias: “eu escutava, debatia, mas na comunidade, o que é a correlação de forças, o que é a estratégia de sobrevivência em meio a todos os conflitos e fragilidades?”, pondera.

Hoje no CAPS, Guaneci diz que o atendimento é voltado especialmente a homens, mas, como boa feminista, ela não deixa de pensar em como atender as mulheres com problemas de saúde mental ou dependência química. Embora dos 12 leitos sete sejam destinados a homens e cinco a mulheres, diz estar sempre atenta e na busca ativa pelas mulheres da comunidade que conhece tão bem. Como não poderia deixar de ser, percebe o cruzamento entre a dependência de álcool e drogas e as violências que essas mulheres sofrem e, com o faro apurado de quem lida com o tema há décadas, entende a dificuldade que é para essas mulheres procurar ajuda. “Elas dizem ‘como eu vou ficar aqui? E a minha casa, quando eu voltar não tenho mais casa. E os meus filhos? Vão dizer que eu abandonei os meus filhos’”. Mais uma vez, ela pensa formas de cuidar dessas mulheres.

Pergunto como ela faz para não esmorecer ouvindo e acompanhando tantas histórias difíceis. Guaneci, primeiro, faz um apelo. Deseja ver na mídia histórias de mulheres que superaram episódios de violência, foram estudar, trabalhar, tocar suas vidas. Ela acredita que seria um incentivo para que outras mulheres procurassem ajuda. Para Guaneci, é preciso dizer que sempre há uma saída. De onde vem tanto otimismo: “Eu ainda acredito numa sociedade mais justa e acredito numa rede articulada. Eu ainda acredito numa justiça que seja para todos, que as pessoas tenham direitos iguais. Eu ainda acredito e talvez vá acreditar até o último dia da minha vida, que é possível a gente viver numa sociedade justa e igualitária”. O que faz de Guaneci uma mulher especial é que ela não só acredita. Ela trabalha, todos os dias, por essa sociedade que defende.

E o próximo plano? “Tenho muita vontade de escrever um livro. Quem sabe”.


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