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17 de novembro de 2020
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21:16

Karen Santos: de um movimento que cabia num elevador a vereadora mais votada de Porto Alegre

Por
Luís Gomes
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Karen Santos (PSOL) foi a vereadora mais votada na cidade de Porto Alegre no último domingo | Foto: Luiza Castro/Sul21
Karen Santos (PSOL) foi a vereadora mais votada na cidade de Porto Alegre no último domingo | Foto: Luiza Castro/Sul21

“A minha história não tem nada demais. É uma trajetória individual como qualquer outra”. É assim que a vereadora mais votada de Porto Alegre, com 15.702 votos, começa a conversa por chamada de vídeo na manhã desta terça-feira (17). Karen Santos, 32 anos, ainda está um pouco cansada da campanha, mas diz que só precisa de uns dias de fôlego para entrar na disputa por Manuela D’Ávila (PCdoB), no segundo turno à Prefeitura de Porto Alegre.

De fato, a campanha de Karen era uma entre 866 que disputaram uma cadeira na Câmara de Vereadores. Mas é a única que, passado o domingo, pode dizer que está entre as quatro mais votadas da história da cidade, atrás apenas de José Fortunati, em 2000, que, ainda no PT, fez 39.989 votos, Maria do Rosário (PT), que conquistou 20.838 votos em 1996, e João Dib (PPB), que fez 16.530 votos em 2000.

Karen também é apenas a segunda mulher negra a assumir, como titular, uma cadeira na Câmara. Após ficar na suplência da disputa em 2016, ela herdou a vaga que Fernanda Melchionna (PSOL) deixou em 2019 para assumir o mandato de deputada federal em Brasília.

Mas o que Karen quer dizer, ao tentar minimizar sua trajetória pessoal, é que os 15.702 votos não são fruto de um esforço individual, mas de uma construção coletiva.

Nascida e criada em Porto Alegre, primeiro no bairro Camaquã, na zona sul, e depois no Partenon, na zona leste, Karen conta que começou a atuar na militância organizada depois de entrar na Escola Superior de Educação Física (Esef) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em 2007. Contudo, ressalva que sua formação já vinha desde antes.

“Eu cresci na Floresta Aurora, cresci dentro da escola de samba, cresci dentro de terreiro, mas isso não é concebido como espaço político pela esquerda. É o movimento estudantil, o movimento sindical e o movimento popular, como associação de moradores”, diz.

A organização, de fato, vem a partir da luta pela construção do Restaurante Universitário da Esef, inaugurado em novembro de 2008. Ela então passa a militar junto a movimentos de esquerda que pregavam a construção de ideais revolucionários dentro da Esef, fazendo parte do Diretório Acadêmico da Educação Física (DAEF).

Era um grupo de pessoas que se juntavam para discutir obras como “Greve de massas, partido e sindicatos”, da Rosa de Luxemburgo. Alguns com vinculação partidária, filiados ao PSOL e ao PSTU, e outros independentes, como ela. É como independente que ela participa das jornadas de junho de 2013, quando o movimento percebe que é preciso organizar sua militância.

“Para nós, a militância de partido não fazia muito parte da concepção política. A gente sempre partiu daquilo que a gente conseguiu organizar de debate. Junho nos ajudou a ter essa análise de que não podíamos mais ficar a reboque da conjuntura, que a gente precisava se constituir como uma força social nas cidades onde a Educação Física tinha influência, que era aqui em Porto Alegre e em Santa Maria”, diz.

É nessa esteira que surge o Alicerce, movimento pelo qual passou a militar. “A nossa primeira reunião foi numa salinha dentro do Sindisprev. Tem um amigo nosso que diz que a gente cabia dentro de um elevador”.

Em 2014, Karen já estava formada em Educação Física e havia passado em um concurso para dar aulas na rede estadual de ensino, da qual está licenciada atualmente. Segundo ela, nesse período, o coletivo buscava compreender qual espaço ocupar na política e de que maneira, mas partindo de uma posição da esquerda radical.

“Qual a importância do materialismo histórico e dialético? De uma esquerda radical? Do debate da atualidade da revolução? Coisas que ficaram lá no passado da esquerda. A gente fez muito balanço sobre o que foi o petismo, o programa democrático popular, a cooptação dos quadros, a vinculação com o Estado, a perda de autonomia dos movimentos. Tudo isso foi o que possibilitou enxergar a prática eleitoral e constituir a política do Alicerce”, explica.

O fortalecimento do movimento o encaminhou para a via institucional, o que resulta em seu ingresso no PSOL, em 2016. Karen conta que, por decisão coletiva, foi escolhida para representar o Alicerce como candidata à vereadora naquele ano.

“A gente sempre se colocou a tarefa de entender quem era o povo batalhador, quem é o povo brasileiro, quem é a classe trabalhadora brasileira. Porque, também em junho, a gente percebeu que toda aquela discussão da vanguarda, do proletariado, se tu fizer uma análise mais econômica da nossa cadeia produtiva, vai ver que o proletariado inglês e norte-americano é muito diferente do perfil do brasileiro. Um trabalhador precarizado, restrito de direitos desde a abolição e isso tem muito impacto na forma como as pessoas pensam política, se relacionam com o Estado, como os partidos se relacionam com o povo. Então, era um debate para conhecer o perfil da classe trabalhadora brasileira, aí vieram mulheres negras, batalhadoras, ganhando até um salário mínimo e meio. Esse é o perfil. E eu, por ser uma mulher negra, professora, fiquei com a tarefa”, diz.

Mesmo com uma campanha praticamente sem recursos — conta que recebeu mil panfletos do partido –, Karen fez 2.642 votos, ficando na 64º posição geral e na primeira suplência do PSOL, o que a credenciaria a assumir o mandato em 2019. Em 2018, Karen concorreu a deputada federal, fazendo 16.438 votos, o que lhe garantiu a 62ª posição geral e, mais uma vez, a suplência da cadeira conquistada por Melchionna.

Para este domingo, a previsão era de que dobrasse a votação conquistada em 2016. Errou feio. Foram quase seis vezes mais.

 

Karen conta que fez uma campanha de rua, distribuindo panfletos e visitando a casa de eleitores | Foto: Luiza Castro/Sul21
Karen conta que fez uma campanha de rua, distribuindo panfletos e visitando a casa de eleitores | Foto: Luiza Castro/Sul21

Karen também não quer saber de assumir sozinha os méritos pela votação recorde. Para ela, o resultado passa muito pelo trabalho dos panfleteiros que acordavam às 5h da manhã para distribuir o material de campanha em bairros como Restinga, Lomba do Pinheiro, Rubem Berta, Cascata, no Centro e nos terminais São Jorge e Triângulo. Ela diz que, somente no Centro, era um trabalho que ia das “7 às 7”. “A gente tem os dois melhores panfleteiros, comunicadores, tribunos do povo”, diz, referindo-se aos apoiadores Douglas e Jordão.

Segundo ela, a dupla é a melhor em comunicar aos trabalhadores as conexões entre os problemas que sofrem em suas comunidades e os problemas estruturais da cidade. “As pessoas sabem os seus problemas, mas não denunciam. É a crítica pela crítica, a aparência problema, a aparência do fenômeno. A gente quer constituir a essência, tem a ver com o sistema, tem a ver com o Estado, tem a ver com o momento histórico. Não tem a ver com um problema de gestão. A esquerda acha que o problema do Brasil é um problema de gestão. A gente não acha que é um problema de gestão, é a lógica”.

Dessa vez, foram 500 mil panfletos distribuídos. Um material que buscava combinar as propostas da candidata com mensagens simples e diretas, como: “chega de sufoco”, “direitos já”, “vocês vão ter que nos respeitar”, “o povo tem a força e precisa se unir”. “A ideia do panfleto é conseguir pegar o pessoal cedinho de manhã, indo trabalhar, dá assunto para a pessoa ir lendo no ônibus”, diz, explicando ainda que foram 13 panfletos diferentes, abordando problemas específicos das comunidades da Restinga, Lomba do Pinheiro e Rincão, onde a campanha tinha uma atuação mais consolidada, com temas como racismo e território, transporte público, saúde, terceirizações, educação, violência contra as mulheres, entre outros.

Em 2016, Karen recebeu apenas R$ 150 da direção estadual do PSOL para fazer a sua campanha, segundo informa o portal Divulga Cand do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), e contou com doações individuais que somaram R$ 18.210,00. Respaldada pelas boas votações e pela decisão do partido de apostar forte nas campanhas a vereadores de Porto Alegre, Karen teve uma campanha melhor financiada em 2020.

Segundo consta no Divulga Cand, a sua campanha registrou até agora receitas de R$ 162.168,36, dos quais R$ 97,4 mil vieram da direção municipal do PSOL e R$ 8 mil do diretório estadual. Apesar de mais recursos, Karen avalia que a aposta da campanha foi a mesma de quatro anos atrás, focada na distribuição de panfletos e na conversa cara a cara, dela e de apoiadores, com as pessoas. Segundo ela, foram mais de 200 visitas de meia hora, uma hora e até seis horas a casas de eleitores.

Até o momento, o portal do TSE registra despesas de campanha da ordem de R$ 42.486,59, dos quais 70% foram destinados para a publicidade em material gráfico impresso.

O resultado dessa campanha não foi apenas uma votação expressiva, mas o fato de ter sido bem votada em todas as regiões da cidade. Seus melhores índices foram registrados nas zonas 0001, 2.243 votos, e 0002, 2.450, que englobam o Centro, a Cidade Baixa, a região das ilhas e parte do 4º Distrito. Contudo, Karen fez mais de mil votos em todas as zonas eleitorais da cidade, com exceção da 0158 (na zona norte), em que fez 884.

 

Karen faz mais de mil votos em todas as regiões da cidade, com exceção da zona eleitoral 0158 | Foto: Luiza Castro/Sul21
Karen faz mais de mil votos em todas as regiões da cidade, com exceção da zona eleitoral 0158 | Foto: Luiza Castro/Sul21

Karen Santos tem perfil brigador. Para alguns, tem fama de braba, o que ela vê como uma classificação errada de sua atuação. A postura que diz ter, e defende, é de quem se posiciona e trava combates por aquilo em que acredita.

Ao assumir o mandato em 2019, ela conta que encontrou uma Câmara com pouco espaço para posturas combativas da oposição, uma vez que as duas vereadoras que mais subiam à tribuna para fazer o enfrentamento com a base aliada do governo Marchezan eram Melchionna, que migrou para Brasília, e Sofia Cavedon (PT), eleita deputada estadual.

“Para minha formação como parlamentar, isso deixou um vácuo gigante, porque, toda a vez que eu ia para a tribuna, eram cinco ou seis para me desconstituir. Daí tu vai ficando com receio de subir lá para se posicionar. E eu olhava e era um receio generalizado, de pessoas que tinham três mandatos e não subiam para se posicionar. Tanto é que renovou tanto. O povo cobra. Tem que se posicionar, tem que ir para cima, as pessoas estão querendo um perfil mais combativo e eu acho que, com essa nova composição, vai ser mais tranquilo subir na tribuna, fazer os enfrentamentos. Vai ter uma retaguarda”, diz.

A retaguarda à qual Karen se refere é a bancada fortalecida daquele que foi (ainda é) oposição ao governo Marchezan, formada por PSOL e PT. O primeiro aumentou a representação de três para quatro vereadores, com a chegada de Matheus Gomes, também oriundo da luta estudantil e do movimento negro. O segundo manteve os quatro parlamentares, mas com três caras novas, incluindo uma mulher negra, Laura Sito. A eles, somam-se as duas mulheres negras — Bruna Rodrigues e Daiana Santos — eleitas vereadoras pelo PCdoB, que não tem bancada na atual legislatura.

Para ela, o primeiro desafio de seu novo mandato e dessa nova bancada de esquerda, independente de quem vencer o segundo turno das eleições municipais, será o de trazer os problemas que afetam as comunidades e a questão racial para dentro das discussões do Plano Diretor, o principal instrumento de planejamento urbano da cidade e que deveria ter passado por uma revisão na atual gestão, o que acabou não ocorrendo.

“O Plano Diretor vai ser fundamental para a gente discutir os quilombos urbanos, as casas de terreiro, as escolas de samba, as aldeias indígenas, as retomadas que a gente tem aqui desde a Ponta do Arado, o debate de mobilidade urbana, no perfil de construção. A gente vai ter que fazer uma baita de uma frente e conseguir colocar o debate racial dentro do debate de cidade. A cidade é segregada, mas o que predomina aqui é o mito da democracia racial. Não existe racismo, ‘todos temos sangue de índio, negro e português’. Então, aqui é muito difícil debater o racismo, vamos ter que debatê-lo combinado com a lógica excludente da cidade”, afirma.

Antes disso, contudo, tem pela frente o enfrentamento do segundo turno em Porto Alegre. “Nós vamos fazer uma baita de uma campanha. A gente tem uma reunião do Alicerce, já vamos tirar panfleto e voltar para a rua de novo”.

 

Karen promete adotar um perfil combativo na próxima legislatura | Foto: Luiza Castro/Sul21
Karen promete adotar um perfil combativo na próxima legislatura | Foto: Luiza Castro/Sul21

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