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7 de abril de 2019
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12:00

Mostra conta história de opressão e luta por direitos dos povos indígenas no RS

Por
Annie Castro
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'Índios no Rio Grande: uma História de lutas, dificuldades e resistência', está em cartaz de 9 de abril e 31 de maio, no Memorial do RS. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
'Índios no Rio Grande: uma História de lutas, dificuldades e resistência', está em cartaz de 9 de abril e 31 de maio, no Memorial do RS. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

No Brasil colônia, uma mulher indígena foi retirada de sua aldeia por um europeu e levada para outra cidade. Lá, após ser obrigada a casar com ele, acabou tendo filhos. Esse é um cenário que se repetiu diversas vezes na formação do país: indígenas retiradas de suas etnias para casarem com homens brancos. É também a história da tataravó de Carlos Eduardo da Silva Perereira, nascido em Guaíba, que durante a infância descobriu sua descendência indígena. “Ela foi uma índia retirada de seu local de nascimento e levada por um europeu para Cerro Grande do Sul, no interior do Rio Grande do Sul”, conta. Apesar de descobrir a origem de sua família, Eduardo não sabe detalhes sobre a vida de sua tataravó antes do casamento forçado: “Existe literalmente um rompimento dessa existência, não existem registros sobre a vida anterior dessas mulheres que foram retiradas de suas aldeias e acabaram sendo casadas à força, que é o caso da minha família”.

Esse apagamento da verdadeira história dos povos originários do Rio Grande do Sul, marcada por opressões, silenciamentos e retirada de direitos, é o tema do Abril Indígena no Memorial do Rio Grande do Sul, uma edição especial do projeto Mês a Mês na História, criado pelo Arquivo Histórico do RS. Carlos Eduardo, que é graduando em história, integra a equipe que realizou a produção e a curadoria de documentos e fotografias que compõem a exposição ‘Índios no Rio Grande: uma História de lutas, dificuldades e resistência’, em cartaz entre os dias 09 de abril e 31 de maio, no primeiro andar do Memorial.

Historiógrafa Rejane Penna Martins, do Arquivo Histórico do RS. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Trechos de cartas ou anotações, mapas, arquivo de matrícula, fotos, ilustrações e concessões de sesmarias em territórios indígenas, são algumas das documentações que estão presentes na mostra. “Nós reunimos um pouco de documentos históricos que falam sobre aldeamentos, catequeses e histórias de cotidiano justamente para mostrar essa opressão, não diria nem um embate cultural porque não existe uma igualdade nele, é literalmente opressão. Uma cultura branca europeia submetendo a cultura indígena a determinados costumes”, explica Carlos Eduardo.

Nenhum dos documentos é escrito pelos indígenas que viviam na região, uma vez que não existem esses arquivos. “Quando se trabalha com categorias que sofreram opressões, como negros, índios, crianças, tu não consegue encontrar um documento que seja a própria voz deles”, explica a historiógrafa Rejane Penna Martins, que desde 2004 integra o Arquivo Histórico do RS. Nesse contexto, os curadores procuraram na fala “daqueles que dominaram e escravizaram” os povos indígenas relatos que contassem mais sobre a história dos índios.

Rejane, que não tinha o costume de pesquisar a causa indígena, conta que sempre recusou “o coitadismo do índio”, expressão utilizada para falar que os povos originários estão se fazendo de coitados ao exigir suas terras ou lutar por seus direitos, mas que essa ideia mudou a partir da leitura que fez de todos os documentos que narram a relação dos povos colonizadores com os índios. “Tu não precisa buscar relatos horrorosos, eles [colonizadores] denotam um desprezo pelos índios. Se percebe que quando eles dizem que compreendem a cultura indígena ou sobre as tentativas de entender ela, como quando falam de aprendizado da língua, não é no sentido de compreender realmente essa cultura, mas sim para utilizá-la no sentido utilitário, para poder mandar melhor, poder controlar melhor”, conta Rejane.

Carlos Eduardo da Silva Pereira, graduando em história, descobriu descendência indígena na infância. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Segundo a historiógrafa, no relato dos colonizadores também fica evidente como foi criada a visão pejorativa que ainda se tem hoje em dia acerca dos índios. “É uma visão de que eles eram preguiçosos, ferozes, feios. Mas eles eram preguiçosos porque não queria trabalhar no modelo europeu, né. A mulher indígena era vista como uma mulher sem moral”, conta. Para Rejane, os europeus enxergavam os índios somente de duas formas: como inconvenientes ou como utilitários, mas nunca como “um ser humano pleno”. Ainda, os documentos mostram que não havia nenhuma tentativa em esconder essa visão, pois os europeus a assumiam como a verdade absoluta a respeito daqueles povos.

Um exemplo disso é o texto escrito pelo diretor de um aldeamento. “Não havendo força nos aldeamentos nada pode prosperar, não há quem os faça trabalhar, quem os contenha em respeito, quem os prive de andar em magotes pelos matos na antiga vida ociosa e preguiçosa”, diz um trecho do documento.

Dentre os arquivos presente na mostra, Rejane e Carlos Eduardo destacam alguns que resumem mais claramente o cenário vivido pelos povos originários no Rio Grande de Sul. Um deles é um livro de registros, datado de 1768, utilizado pelo comandante da cavalaria da época para cadastrar os índios. Porém, eles eram registrados pelo seu nome de nascença, mas abaixo dele era escrito o nome europeu pelo qual deveriam ser chamados. “Até o nome eles tiveram que trocar, é uma colonização completa”, pontua Rejane”. Outros são um documento sobre as terras de um aldeamento que foi transferido para virar colônia européia, um sobre as incursões militares para exterminar os índios na fronteira do Rio da Prata e outro sobre o trabalho compulsório na coleta da erva mate.

Ainda, um mapa de 1757, que mostra uma parte do Rio Grande do Sul, na divisa com o Uruguai, representa a importância que os povos indígenas possuem na construção do Estado e do que se conhece sobre ele. “A criação desse mapa só foi possível com a tecnologia que os europeus tinham na época e com os auxílio dos índios, porque eram os indígenas que conheciam o território. Então, a configuração cartográfica do Rio Grande do Sul foi feita por intermédio do auxílio dos indígenas, assim como as nossas principais estradas. Tudo isso foi descoberto antes pelos índios, que eram os grandes conhecedores das terras”, afirma Rejane. De acordo com ela, os povos originários foram muito presentes em todos episódios do Estado até por volta de 1800. “Depois desse período, o extermínio já tinha sido tão grande, que o índio já estava circunscrito a determinados espaços”, explica.

 

Foto: Guilherme Santos/Sul21

“As pessoas não reconhecerem a cultura e os direitos indígenas porque é um processo que está muito envolto dentro de uma questão cultural da população brasileira”, afirma Carlos Eduardo sobre o desconhecimento que há sobre a história dos povos originários, que ao longo dos anos foi distorcida pela visão colonizadora acerca dessas pessoas. Para ele, esses espaços que dão o lugar de fala para o povo que foi oprimido podem contribuir para que haja um maior respeito a esses povos. “Essa exposição mesmo é uma forma de resistência a essa ideia que surge hoje de ir contra a maré, que era antes era justamente reconhecer o direito desses povos, já hoje é relativizar o direito dessas etnias. Então ela entra como um espaço de resistência porque trazer essas fontes documentais é contar a história desse povo, dessas etnias, é mostrar o seu papel dentro da história”, afirma. Para o estudante, o acesso a esses documentos também pode gerar um entendimento maior para a população à respeito do trabalho e da legitimidade dos historiadores, categoria que ele enxerga como sendo “cada vez mais relativizada e atacada”.

Para Rejane, a história dos povos indígenas não pode aparecer somente em uma situação pontual, como uma exposição ou em um único dia do ano. “Estudar o índio não pode ser só em um mês no ensino médio ou com as crianças e depois ser esquecido. Tem que ser algo incorporado a nossa história no dia a dia. Hoje vemos os índios na Rua da Praia vendendo artesanato, todos em uma condição bastante precária, e todo mundo se compadece ou acha curioso, mas aquilo ali é o resultado de um longo processo de não aceitação de uma cultura e de retirada de terras”, pontua a historiógrafa.

Em um contexto político de ataques cada vez maiores aos direitos indígenas, à Fundação Nacional do Índio (Funai) e de aumento da discussão sobre as reservas indígenas no país, Rejane afirma o quão urgente se faz entender a história indígena. “O que tu conhece é mais difícil de ignorar e de aniquilar. E eu acho mais do que nunca importante que a história do índio junto ao branco seja mais discutida para que o índio seja mais respeitado. Porque hoje o índio ainda não é respeitado, ele é tolerado, no máximo”, diz.  

Além da mostra, a edição especial também irá ter projeções dos documentários apresentados na III Mostra Tela Indígena, que aconteceu em Porto Alegre, em setembro de 2018, e com debates sobre o tema. É possível acompanhar a programação na página do Memorial.

Foto: Guilherme Santos/Sul21
Foto: Guilherme Santos/Sul21
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