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16 de setembro de 2018
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23:10

Mostra gratuita exibe produções feitas por cineastas indígenas de quatro países diferentes

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Sul 21
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Abertura da III Mostra Tela Indígena aconteceu na última quinta-feira (13), na Cinemateca Capitólio. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Por Annie Castro 

“Eu recebi um recado através das rezas e dos ventos. O Nhanderú me pediu pra te dar um aviso: essa oficina tem que ter um resultado que possa nos ajudar, um resultado que possa se mostrar a nosso favor”. Em 2016, o rezador da reserva Tekoha Guaiviry, no Mato Grosso do Sul, fez esse alerta sobre o Programa de Extensão Imagem Canto Palavra no Território Guarani e Kaiowa, que formou oito pessoas em cinema e resultou nos documentários ‘Ava Marangatu’ e ‘Ava Yvy Vera – A Terra do Povo do Raio’. O último foi exibido em Porto Alegre na quinta-feira (13), durante a sessão de abertura da III Mostra Tela Indígena, evento que se estende até a próxima terça-feira (18), com a exibição de 27 filmes realizados por indígenas, ou com essa temática, de quatro países diferentes – Brasil, Argentina, México e Canadá.

Criada em 2016 por estudantes do mestrado em Antropologia e da graduação em Ciências Sociais, ambos cursos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a Tela Indígena surgiu da vontade de levar para além do meio acadêmico exibições de filmes que abordam temáticas da vida e cultura dos povos indígenas. A antropóloga Ana Letícia, integrante do núcleo de pesquisa de Antropologia das Sociedades Indígenas e Tradicionais e uma das cinco idealizadoras da Tela Indígena, explica que desde 2014 eram realizadas exibições de filmes e palestras sobre o tema no Campus do Vale. “Nós notávamos que ia pouca gente e sempre os mesmos interessados. Conversamos muito com os estudantes indígenas sobre como mostrar as pautas deles e como poder popularizar isso, então a gente teve a ideia de fazer uma mostra”, conta.

Nas duas primeiras edições, em 2016 e 2017, as exibições aconteciam uma única vez por mês, na Sala Redenção, e tinham o apoio do programa de Pós Graduação da Antropologia. Ao todo, 12 filmes foram exibidos na forma de cine debate. “Nós trazíamos lideranças locais porque a gente não tinha recursos para trazer alguém de fora de Porto Alegre, fazíamos vaquinha e tudo. Vinham pesquisadores, antropólogos, arqueólogos, historiadores e cineastas que trabalham com essa temática”, lembra Ana Letícia.

Para a edição deste ano, a Tela Indígena conseguiu um financiamento do Ministério da Cultura e, com isso, ganhou um novo formato. Agora, o evento acontece na Cinemateca Capitólio Petrobras e tem duração de uma semana. Além das exibições em forma de cine debate, às 19h30, ocorrem ainda duas exposições artísticas, venda de artesanato e rodas de conversa, organizadas todos os dias às 17h30 para debater temas como política, artes e música. Ao todo, 20 convidados – cineastas, artistas, pesquisadores, lideranças indígenas – de diversas partes do Brasil, irão participar das exibições e das rodas de conversa. Todas as atividades são gratuitas e abertas ao público.

Uma das convidadas desta edição é a cineasta Guarani-Kaiowa Jhonn Nara Gomes, de 17 anos, da reserva Tekoha Guaiviry, no Mato Grosso do Sul, que veio pela primeira vez para o sul do país somente para participar da Mostra. “De todos os lugares que eu já fui e que o filme passou, acho que esse é o melhor pra ele ser exibido, pra gente dialogar e fazer uma troca de experiências. Quando eu cheguei no aeroporto e me veio o vento fresquinho eu falei ‘esse é o lugar perfeito, é diferente de todos que eu já fui'”.

A cineasta Jhonn Nara Gomes, participou da abertura da III Mostra Tela Indígena. Foto: Arquivo Pessoal

Jhonn é co-diretora do documentário ‘Ava Yvy Vera – A Terra do Povo do Raio’, exibido na sessão de abertura do evento, e produzido juntamente com Genito Gomes, Valmir Gonçalves Cabreira, Jhonatan Gomes, Edina Ximenez, Dulcídio Gomes, Sarah Brites e Joilson Brites. O curta, que foi um dos cerca de 90 inscritos para participar da seleção para exibição na Mostra, aborda a luta de retomada territorial do povo Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul. A cineasta explica ainda que ele fala do que aquela comunidade vive no dia a dia e dos desejos que seu avô Nísio Gomes, assassinado por 45 pistoleiros em 2011, teve em vida. “O sonho dele sempre foi voltar a morar na suas terras, ter de novo a casa de reza, manter a língua, que as netas e os netos dele deixassem a cultura viva e firme, e tudo isso aconteceu. O Nísio morto, mas a gente está lá, mantendo sempre firme tudo isso, e na espiritualidade ele está mais forte do que nunca porque o sonho dele está vivo”, diz.

Para Jhonn, o documentário é uma forma de “contar para o mundo uma história que é realidade”. O mesmo ela pensa sobre o cinema em geral. Apesar desse universo não ser uma novidade para ela e sua família, seu primeiro contato com a profissão cineasta foi durante o curso que aconteceu na reserva. Durante um mês, eles aprenderam a montar roteiro, gravar e editar. “A única coisa que foi um desafio pra nós foi o que a gente aprendeu. A gente já conhecia o que era cinema, mas a gente só precisava de orientação pra poder pegar essa arma e usar pro nosso direito, do nosso lado. A gente já sabia, mas não tinha instrumento. Ganhamos desse projeto notebook, câmera e agora a gente está aí, produzindo mais e mais”. Além de Porto Alegre, ‘Ava Yvy Vera’ já foi exibido no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Salvador e irá passar na Alemanha. O filme ainda recebeu os prêmios de melhor documentário no Cine Kurumin (2017), CachoeiraDoc (2017) por Júri popular e pelo Júri Oficial e Inovação da Narrativa Fotográfica – 9ª semana dos realizadores (2017).

Sobre as premiações, Jhonn reforça que elas não são o foco principal para quem o produziu. “Pra nós, o importante é que o filme continua passando de lugar pra lugar, pra que as pessoas possam nos olhar com olhares diferentes. Às vezes, uma pessoa julga porque não conhece a história. Talvez eles falem tudo que falam por causa de um sentimento alimentado pelo que veem na televisão, que o índio é ladrão de terra, é sujo, é malvado”. Ainda, segundo ela, o documentário acaba servindo de exemplo para outras reservas no Estado em que vive e no resto do Brasil. “Esse filme é uma chance de a gente se entender melhor também”, afirma.

Uma das proposta da Tela Indígena é levar comunidades indígenas do entorno de Porto Alegre para assistir às exibições e aos debates. Escolas também irão participar das atividades. Com a mudança do local do evento para o Capitólio, na região central da cidade, a organizadora Ana Letícia espera que a mostra consiga atingir um público maior e mais diversificado. “Estamos experimentando uma outra forma de fazer, saindo um pouco da academia e tentando ir pra esses outros espaços, já que a ideia é fazer as pessoas terem acesso tanto ao que é de fora, ao que é diferente, quanto conhecer a própria realidade, já que, às vezes, nem sabem que existem comunidades indígenas aqui”, explica Ana Letícia.

Outro diferencial do evento neste ano é a busca por ser o mais acessível possível. No dia 18, por exemplo, acontece às 14h uma exibição do documentário ‘Bicicletas do Nhanderú’ com legenda audiodescritiva  – todas as outras sessões possuem legendas em português, uma vez que os filmes estão na língua original dos povos indígenas. Neste dia, durante o debate com o diretor do filme, haverá também tradução em libras.

Clique para conferir a programação completa do evento. 

Foto: Guilherme Santos/Sul21
Foto: Guilherme Santos/Sul21
Foto: Guilherme Santos/Sul21

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