Últimas Notícias > Geral > Areazero
|
28 de julho de 2018
|
17:07

Lei da Alienação Parental: ‘O sistema não acolhe, ele revitimiza crianças que sofrem abuso’

Por
Sul 21
[email protected]
Lei da Alienação Parental: ‘O sistema não acolhe, ele revitimiza crianças que sofrem abuso’
Lei da Alienação Parental: ‘O sistema não acolhe, ele revitimiza crianças que sofrem abuso’
Ato pede revogação na Lei de Alienação Parental, em setembro de 2017. Foto: Maia Rubim/Sul21

Giovana Fleck

No início de julho de 2018, uma sessão da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos (CCDH) foi aberta para escutar denúncias de mães que perderam a guarda dos filhos, ou correm esse risco. Sentada em uma das cadeiras para ouvintes, Catarina* questiona se contará sua história. Ela presta atenção nos relatos das outras mulheres. Muitas falam sobre o descaso dos órgãos competentes com seus filhos que foram vítimas de violência. Algumas narram histórias permeadas por ameaças, extorsão e medo. No entanto, todas falam sobre como se sentem desprotegidas, temendo mais as consequências da ação da Justiça do que a omissão.

Catarina se levanta e toma seu lugar entre as mulheres na mesa. “Deputado, se for possível, mais uma mãe gostaria de dar seu depoimento”, diz a advogada Rúbia Abs ao deputado estadual Jeferson Fernandes (PT), presidente da comissão. Catarina pega o microfone.

“A minha filha tinha 3 anos quando voltou de uma visita à casa do pai irritada, chorona. A gente levou ela para casa. Ela estava meio adormecida, cansada. Mas, como ela tinha um gênio forte, não desconfiamos. Achamos que estava tudo bem. Perguntamos para o pai se algo tinha acontecido, mas ele disse que não”, ela inicia.

Horas depois, já em casa, ela acordou. Pediu para ir ao banheiro. Começou a chorar, colocando as mãos no bumbum. “Fomos olhar e ela estava bem machucada. Eram várias lacerações e marcas, como quando tu arranha o joelho e fica com gotinhas de sangue seco no machucado.” A menina foi imediatamente levada para um hospital particular no município onde moravam. Catarina e o então namorado, hoje marido, saíram de pijama, às pressas. Lá, a ginecologista de plantão identificou que aquilo não era um assadura. “Abuso”, ela escreveu no prontuário, e Catarina lembra da sensação de pânico. A médica chamou a Brigada Militar e o Conselho Tutelar.

A família foi encaminhada para a delegacia local, onde registraram um boletim de ocorrência. A partir disso, foram orientados a ir ao Departamento Médico-Legal (DML) em Porto Alegre. Mas era domingo à noite. Quando chegaram com o ofício da delegacia que pedia cinco tipos de exames e coleta de material, a recepcionista informou que não haveria como fazê-los naquele horário. Esperaram algum tempo. Perceberam que o perito foi acordado para fazer os exames. “E ele se negou. Disse que não ia fazer nada. Ele olhou a minha filha, pediu para que eu só baixasse a calça dela. Olhou ela de uma distância de cerca de um metro e disse que não era nada.”

Disse que eu deveria levar ela para casa. Que era relaxamento. Que era só dar um banho nela que ela iria melhorar.

Catarina

Saíram. Dali, foram direto para o Hospital Presidente Vargas. “Eu acho que foi preconceito. Fomos todos pegos de surpresa. Eu saí com a roupa que eu estava no corpo. De crocs no pé, calça de abrigo e camiseta. Eu vi que quando cheguei fui olhada dos pés à cabeça. Além do horário, a gente sabe que abuso de criança é complicado. A gente percebe uma certa resistência… Até onde eles puderem evitar se confrontar com a realidade, se que de fato aconteceu um abuso… Isso é comum.”

Desde que Catarina fez a denúncia formalmente, ela convive com o descrédito de outras pessoas em torno do abuso da filha e de sua própria posição como mãe. Não só isso, ela corre o risco de perder a guarda da menina. Seu ex-companheiro a acusou de ser alienadora. Catarina foi processada a partir da Lei de Alienação Parental (LAP) (12.318/10), criada com o objetivo de impedir que, em casos de divórcio, um cônjuge sabote a relação do outro com os filhos.

“Quando tu percebe que a tua filha foi abusada, tu acha que aquele foi o pior momento.” A voz de Catarina é baixa, embargada. “A partir dali, tu vai com ela pra algum lugar, onde tu acredita que vai ser protegida. Só que não é o que acontece. O sistema não acolhe, o sistema revitimiza.”

Especialidade compulsória

Todas as mães acusadas de alienação parental se tornam especialistas na própria lei. “É necessário”, diz Catarina. Ela coloca sobre a mesa uma cópia da pesquisa de Richard Gardner, compilada no livro The parental alienation syndrome: a guide for mental health and legal professionals. As mais de 300 páginas pesam sobre a mesa, que Catarina diz ter conseguido adquirir através de um amigo, que pagou menos de U$ 2,00. “É isso o tanto que ele vale lá fora.”

Gardner criou o conceito da síndrome de alienação parental (SAP) na década de 1980. O médico fez carreira como psiquiatra forense, tendo atuado em mais de 400 casos de divórcio litigioso. Por si só, esse fato leva à primeira crítica à sua teoria: ele teria criado a SAP para figurar como arma de defesa nos processos em que trabalhava.

Além de elaborar a teoria da síndrome, o psiquiatra norte-americano estabeleceu um conjunto de ferramentas para combatê-la. A isso, deu o nome de “terapia da ameaça”. Através dela, são impostos tratamentos pela Justiça para o alienador, além de métodos que contradizem premissas básicas do código de ética de profissionais da saúde, como a suspensão do sigilo entre paciente e psicólogo e o livre acesso do juiz aos dados do tratamento. Prevê, ainda, punições como inversão de guarda, privação total de contato entre o genitor “alienador” e a criança e, até, encarceramento.

A SAP não demorou para começar a circular entre os tribunais europeus e americanos. Discutida internacionalmente por anos, no entanto, chegou à instâncias superiores especialmente na América Latina. Ainda assim, frentes de mães em países como o México já se mobilizaram para revogar a legislação.

Para a advogada e coordenadora nacional do Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM), Rúbia Abs, as premissas que nortearam a Lei da alienação parental estão equivocadas. “Gardner “pensava” e “escrevia” como um pedófilo. Hoje em dia, isso tanto é verdade que seus seguidores têm falado somente em alienação parental, sem falar mais em síndrome. Mas isso não muda a base tendenciosa dessa criação.”

Existe muita permissividade à negligência paterna dentro do Judiciário.

Rúbia Abs, advogada

Rúbia acompanha tanto o caso de Catarina quanto o de outras dezenas de mulheres. “Os escritos de Gardner e o testemunho de especialistas costumam beneficiar os acusados de violentar as crianças, ao invés de proteger as crianças envolvidas nesses casos”, completa.

A síndrome nunca foi reconhecida pela Associação Americana de Psiquiatria nem pela Associação Médica Americana. Gardner se suicidou em 2003, mas deixou seu legado vivo em deputados brasileiros. Em 2010, a Lei de Alienação Parental foi aprovada após incessante defesa de seu autor, o Partido Social Cristão (PSC) – o mesmo de Marco Feliciano, Pastor Everaldo e outros membros da bancada evangélica.

“É claro que casos de alienação podem, de fato, acontecer. Ninguém questiona isso. Mas da forma como a lei está sendo aplicada no Brasil, não é isso que se discute. Por que tanto interesse em criminalizar as mães que buscam proteger seus filhos?”, questiona Rúbia.

Laura* conhece a lei de cor. Não só isso: virou parte de sua rotina gravar todas as suas ligações e documentar suas ações. Tudo pode ser uma prova a seu favor ou contra seu caso.

Ela lembra dos sete meses que viveu com a filha e o ex-companheiro com tristeza. “Brigávamos muito. Até que pedi para sair.” Eles combinaram amigavelmente como seriam as visitas. Ela ficaria com a guarda da menina. Ele aceitou.

Ele se esqueceu, desapareceu por um tempo. Não pagou mais a pensão. Laura comunicou o Conselho Tutelar. Ela ganhou a guarda unilateral.

Quando ele retornou, se dizendo culpado e disposto a se reconectar com a menina, a justiça permitiu que ele voltasse a vê-la. Após a primeira visita, no entanto, Laura observou que a filha havia ficado o dia sem comer. “Ele passou a me ameaçar. Ter a guarda dela passou a ser o objetivo dele.” O ex-companheiro lançou mão da Lei de Alienação Parental.

Laura desacreditou da possibilidade de perder a guarda. “É muita maluquice, provas não faltam do quanto ele não foi presente.” Mas não é. Laura passou a ser mais uma entre o que acredita ser mais de uma centena de mães brasileiras que estão sujeitas ao que chama de “roteiro”.

O roteiro começa no divórcio, passando pelo abandono paterno, a volta repentina, o arrependimento, o convencimento em Corte de que o pai deve estar presenta na vida dos filhos, a reaproximação, o novo afastamento e, por fim, a acusação de que a mãe é a culpada por tudo isso através da alienação parental.

Desdobramentos

Na quarta-feira (25), Rúbia foi para Brasília em uma reunião com o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda). O Conanda foi previsto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente como o principal órgão do sistema de garantia de direitos. Por meio da gestão compartilhada, governo e sociedade civil definem, no âmbito do Conselho, as diretrizes para a Política Nacional de Promoção, Proteção e Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes.

Junto com Rúbia, foram representantes de grupos de mães de todas as partes do Brasil, além de psicólogas. Essa foi a primeira vez que o Conselho foi notificado sobre problemas envolvendo a legislação de alienação parental, além de ser um marco na luta das mulheres pela revogação de artigos que pode culminar na revogação total da lei.

“A legislação foi aprovada sem consultar o Conanda, algo que não poderia ter acontecido. Mas o lobby era forte. Além disso, tem muita gente ganhando muito dinheiro em torno disso – entre psicólogos e advogados. A cada ação das mães para verem os filhos, uma petição tem que ser feita. Mesmo em caráter de urgência, elas podem demorar semanas até serem protocoladas. Isso é custoso. Os processos acabam ficando com 10 volumes de tanta petição.”

O Conanda se comprometeu a emitir uma nota técnica que será encaminhada para o Executivo, o Legislativo e o Judiciário sobre o tema. “Eles compreenderam a situação. Compreenderam que as mães são taxadas de loucas e condenadas antes do julgamento.”

Rúbia atribui essas pré-concepções tanto à cultura machista, a qual diz ver presente no cotidiano dos tribunais, quanto na percepção da criança como um objeto. “Ela vira um prêmio. Um troféu a ser conquistado.” Parte disso se deve pelo fato de processos envolvendo divórcios correrem na Vara da Família, e não na Vara da Infância e da Juventude. “Por causa disso, o juiz pode olhar a partir do ponto de vista dos pais, e não da criança.”

Soma-se a isso o fato de que é muito difícil comprovar violência sexual contra menores. “Por isso a jurisprudência brasileira é clara em valorizar a palavra da vítima em crimes sexuais”, afirma. Para a advogada, é difícil assim compreender porque profissionais que atuam nesses casos, como psicólogos, assistentes sociais, promotores de justiça e juízes são tão resistentes em aceitar esta face da realidade social. “Eles culpabilizam as mães que denunciam as suspeitas de violações”, aponta Rúbia.

Exatamente o que aconteceu com Catarina.

‘Revitimização’

No Hospital Presidente Vargas, sua filha falou para a médica que finalmente avaliaria sua condição física que: “O papai me machucou”. Na hora, a médica parou. “Isso não é para mim”, disse. O problema é que isso não foi registrado oficialmente. “Ela vomitava, por causa da dor. Foi uma noite horrível. Ela chegava a endurecer todo o corpo para tentar segurar a dor. A gente acredita que, de alguma forma, ela tenha sido dopada. No início, ela não parecia sentir tanta dor. Deu a impressão de que aquilo foi progredindo ao longo do tempo.” Mas não fizeram nem um exame de sangue para confirmar.

A partir disso, se sucederam meses de avaliações psicológicas, laudos e perícias. Comprovaram que ela tinha todos os sinais de quem sofreu um abuso físico. Mas não havia provas de quem tinha sido o abusador.

Durante esse período, Catarina confrontou seu ex-marido. Ligou para ele. “Ele dizia que não tinha acontecido nada.” Ele tinha direito a visitas livres, mas a menina passava os finais de semana na sua casa. Muito tempo depois, a história começou a mudar. “Ele começou a dizer que ela caiu do balanço. Ou seja, no dia em que pegamos ela, quando ela veio diferente, ele já tinha mentido. Enfim, mesmo que eu não pudesse provar que foi ele, ela estava sob a responsabilidade dele.”

Logo, se não foi seu ex-companheiro, ele foi omisso. “Em qualquer outra situação, um pai ia querer saber, ia dizer não fui eu e eu quero saber quem foi. Especialmente porque eu já tinha um outro companheiro. Mas ele nunca teve interesse, só negou.”

Isso foi em 2014. Catarina nunca pode abrir um inquérito contra ele, por falta de provas. Sua filha perdeu peso, entrou em depressão e perdeu a capacidade de se focar na escola enquanto continuava a visitar o pai aos finais de semana. Um dia, assistindo um filme com Catarina, sua filha colocou a mão dentro de sua calcinha. “Meu pai faz assim”, ela disse. “É cóceguinha.” Catarina diz ter desabado. Durante todo o processo, ela teve acompanhamento psicológico para se fortalecer. Mas, naquele dia, ela não aguentou. “O sistema constrói o que eles chamam de alienadora. Eles te ameaçam. Eu tive medo de falar sobre isso. É algo que poderia reverter a minha guarda.”

No entanto, ela fez uma outra denúncia. Dessa vez, fizeram exame de sangue e corpo de delito, além da avaliação psicológica. “Mas, como há a acusação de alienação parental, eles dizem que eu causo nela todos os sintomas.”

Catarina permanece com a guarda da filha, mas com medo constante de perdê-la. Na reunião da Comissão de Direitos Humanos, ela conteve a emoção ao contar a sua história. “É como se alienação parental fosse resolver todos os problemas da família. Cansei de ser taxada de louca, de maluca. E eu não sou a única. A regra, infelizmente, é essa: violentar as mulheres.”

*A pedido das entrevistadas, foram usados nomes fictícios.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora