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4 de julho de 2018
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20:55

Em reunião da Comissão de Direitos Humanos, mães denunciam “fábrica de acolhimento”

Por
Sul 21
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Reunião da CCDH com denúncias de mães que perdem a guarda dos seus filhos e filhas. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Giovana Fleck

“Mentirosas”. “Loucas”. “Malucas”. “Histéricas”. “Descontroladas”. “Desequilibradas”. Na manhã da quarta-feira (04), um grupo de mulheres esteve na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, na sessão da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos (CCDH), para denunciar a forma como órgãos oficiais vêm tratando seus casos. Todas perderam a guarda de suas filhas e filhos. Seja por sentenças permeadas pelo machismo, por processos ligados à Lei de Alienação Parental ou pela falta de recursos públicos. 12 mulheres, presentes ou representadas por suas advogadas, compartilharam histórias de violência, que culminaram no afastamento das crianças. As palavras citadas acima foram algumas das relatadas por elas para descrever o modo como foram tratadas.

Em comum, os relatos de todas elas falaram da falta de auxílio nos órgãos competentes a cada caso. O fato de esses relatos chegarem à CCDH é um indicativo de que os processos envolvendo essas mulheres não tiveram continuidade em nenhum outra instância.

Natália (*) foi a primeira a falar. Tia de uma menina de seis anos, ela conta como foi ver a sobrinha ser retirada do convívio com a família. O pai foi preso. A mãe é dependente química. Segundo ela, o Conselho Tutelar não considerou a família extensa (que se estende para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos) antes de levar a menina para uma unidade de acolhimento. “Eu só soube três dias depois”, lembra Natália, que há um ano e meio luta para reaver a guarda da sobrinha.

Ela nunca conseguiu marcar uma audiência com o juiz do caso. Para o presidente da comissão, deputado Jeferson Fernandes (PT), esse distanciamento configura um dos erros mais comuns em julgamentos como esse. “Eu sou pai adotivo. Mas o juiz que concedeu a guarda nunca nem quis saber quem eu era. Acho que o mínimo, em processos como esse, é ouvir tanto as crianças quanto os adultos envolvidos”, pontuou.

“Acho que o mínimo, em processos como esse, é ouvir tanto as crianças quanto os adultos envolvidos”, pontuou p deputado Jeferson Fernandes.Foto: Guilherme Santos/Sul21

Depois, veio Luiza (*). O genitor de seus filhos pediu para passar a virada do ano com as crianças. Mas elas nunca voltaram para o convívio com a mãe. Luiza fez Boletins de Ocorrência, procurou o Ministério Público e o Conselho Tutelar. Nada. “O processo existe, mas nada aconteceu.” Com a voz embargada, ela conta que quase chegou ao desespero. “Ele está escondendo elas.”

Gabriela de Souza, advogada, falou por uma de suas clientes. Responsável pelo escritório Advocacia Para Mulheres, ela conta que está habituada a receber relatos de violência por parte de suas clientes – e que seu maior medo é que uma delas acabasse morta. Porém, o único óbito envolvendo um de seus processos foi de uma criança. Sua cliente era mãe de uma menina de dois anos, portadora da Síndrome de Down. Gabriela conta que a menina precisou de atendimentos especiais na primeira infância. Segundo ela, por um erro médico, no entanto, acabou perdendo o movimento de uma perna e teve o pé amputado.

Por conta disso, a criança foi abrigada. O escritório de Gabriela entrou no processo, conseguindo desabrigá-la em em setembro de 2017. Ela ficou alguns meses em casa, sendo cuidada pelos pais. “Engraçado que ela foi abrigada pela primeira vez na véspera do Natal. Mas, exatamente um ano depois, ela foi abrigada de novo.” Os argumentos, desta vez, regiam sobre a necessidade de hospitalização da menina. A mãe não pode cuidar da filha durante a internação. Segundo a advogada, os laudos psicológicos teriam sido redigidos de forma a afirmar que a família era pobre, mas que tinha “muito amor e muito cuidado”. Em um procedimento que ocorreu sem o conhecimento da família, a menina faleceu, vítima de outro erro médico. “Aqui, estamos falando da criminalização da pobreza. Ela foi separada da filha por ser pobre”, explicita Gabriela.

Aqui, estamos falando da criminalização da pobreza. Ela foi separada da filha por ser pobre”, explicita Gabriela. Foto: Guilherme Santos/Sul21

“Nós temos, não só estes casos apresentados aqui, mas vários outros que apresentam indícios de que abrigos terceirizados teriam interesse monetário de aumentar a sua clientela. Tomara que eu esteja equivocado, mas o parecer técnico das casas, não só de Porto Alegre, levam certas instâncias a se posicionarem de forma que contraria toda a legislação da criança e do adolescente”, afirma o deputado Jeferson Fernandes, que também cunha o termo “fábrica de acolhimento”. Ele, também, enfatiza que foi solicitado ao Conselho Tutelar que encaminhasse uma representação para a mesa da reunião. Porém, ninguém apareceu. “E não é a primeira vez”, acrescenta o deputado.

Mais mães foram ao microfone. Denúncias da má aplicação da lei de Alienação Parental, violência doméstica, perseguição, pedofilia, abuso psicológico. “E sempre considerando que toda a mulher é louca e toda criança é mentirosa”, disse uma das mulheres.

Ao final, o deputado Pedro Ruas (PSOL) solicitou o encaminhamento para a criação de uma frente parlamentar pela revogação da Lei de Alienação Parental. “Por mais que tenha sido criada com boas intenções, o Judiciário brasileiro claramente não tem condições de executar essa lei”, explica. Além disso, também foi encaminhado pedido para a criação de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) que investigue os casos de abrigamento compulsório. A deputada Miriam Marroni (PT) reunirá os depoimentos em um livro, para que as histórias possam atingir outras mulheres. Também sugeriu que seja feito um seminário para fortalecer as trocas entre as mulheres – além de agendamento de reuniões com o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS) e o Ministério Público. “Vivemos um momento que contribui para uma visão discriminatória. A maneira mais cruel de se atingir uma mulher é por meio dos seus filhos”, disse a deputada.

(*) Os nomes foram alterados para preservar a identidade das mulheres.


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