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14 de maio de 2018
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15:23

Mário Maestri: ‘A abolição é a única revolução social vitoriosa no Brasil’

Por
Sul 21
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Mário Maestri, um dos estudiosos da escravidão no RS | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Fernanda Canofre

O professor Mário Maestri começou a estudar a escravidão no Rio Grande do Sul embalado por uma escola de pensamento que colocava abaixo a ideia da relação entre senhores e escravos como algo “patriarcal”. Ele vinha da leitura de que o sistema escravista era luta de classes. E foi das mais violentas e violadoras que a humanidade produziu. Uma visão que, segundo ele, voltou a ficar às margens da historiografia dominante, depois da queda do Muro de Berlim, em 1989.

No início da década, pediu que um aluno entrevistasse um dos últimos ex-escravos ainda vivos no país. Com mais de 100 anos de idade, Seu Mariano faleceu duas semanas depois do relato. As palavras dele, segundo Maestri, ajudam a mostrar claramente o que representou a abolição para a população escravizada. Ainda que tenha faltado políticas para depois dela, o fim da escravidão, ele diz, “é a única revolução social vitoriosa no Brasil”.

“A abolição foi arrancada dos escravistas. Foi um parto a fórceps. Os cativos, naquele momento, lutavam por o quê? Lutavam por liberdade. Quando se está numa situação dessas, tu só quer sair. Não é o 13 de maio, é a vitória da revolução abolicionista, a única que mudou a organização social do país”, afirma.

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13 de maio: Os relatos de 4 tentativas de insurreição antes da abolição da escravidão no RS

Na semana que marca os 130 anos da assinatura da Lei Áurea, que colocou um ponto final aos mais de 300 anos de escravidão no Brasil, o último país do Ocidente a abolir o sistema, Maestri, doutor em História pela Universidade de Louvain, na Bélgica, e professor da Universidade de Passo Fundo (UPF), conversou com o Sul21 sobre como ela se deu no contexto do Rio Grande do Sul:

As leis do Ventre Livre, dos Sexagenários, faziam parte do arsenal emancipacionista. Já o movimento abolicionista foi o que organizou a luta pelo fim da escravatura | Foto: Domínio Público

Sul21: No início de 1860, o movimento abolicionista estava se fortalecendo no país. Qual era o contexto do RS?

Mário Maestri: Nós tivemos duas formas de movimento políticos que lutaram contra a escravidão, empreendidos sobretudo por homens livres: o abolicionista e o emancipacionista. Não dá para confundir os dois. O emancipacionista era mais de “escravistas esclarecidos”, que procuravam manipular o movimento abolicionista. Eles não propunham o fim da escravidão, mas reformas que fossem emancipando um ou outro escravo, até que a escravidão se extinguiria naturalmente. As leis do Ventre Livre, dos Sexagenários, faziam parte desse arsenal. Já o movimento abolicionista foi o que organizou a luta pelo fim da escravatura. Ele também se dividiu em dois eixos: o conservador e o radicalizado. O primeiro aceitava a abolição com indenização para os escravistas e não queria participação dos cativos nela. O segundo eram aqueles que queria abolição sem indenização dos senhores e a queriam imediatamente. No RS, esse movimento teve menos importância. A alforria aqui, condicional, foi feita nos anos 1884, 1885, como uma esperteza do Partido Liberal, dos fazendeiros escravistas. Vendo que a pressão na fronteira era grande, que a escravidão estava chegando ao fim, a tendência era alforriar os cativos com a condição de prestação de serviço gratuito por sete, oito anos. Quem foi alforriado nessa época, nunca alcançou a liberdade assim, porque a própria [Lei Áurea] chegou antes.

Já fazia algum tempo que o Rio Grande havia se transformado num dos grandes exportadores de cativos rio-grandenses escravizados para o centro-sul cafeicultor. Em torno de 1875 começaram a introduzir nas fazendas arames liso e farpado, a dividi-las com cercas, tudo isso permite o aumento da produtividade, precisa menos mão-de-obra e termina com o gaúcho, homem do campo, que volta e meia se empregava como peão, mas vivia em campos indivisos. Quando começa essa divisão, ele tem que se transformar em peão de fato, senão, ao entrar numa fazenda, vira invasor. Nesse momento, o estado se torna um dos grandes vendedores de cativos para a cafeicultura. Muitos fazendeiros, vendiam os cativos e com o dinheiro cercavam os campos, para necessitar de menos mão-de-obra. Nos últimos anos, a escravidão ficou concentrada em Pelotas. Até o final, a charqueada trabalhou com escravos.

Sul21: No livro “Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional”, Fernando Henrique Cardoso critica o mito de “democracia racial” que se criou na historiografia gaúcha, no início do século XX, de que as relações entre escravos e senhores aqui seriam “suaves”. Como foi a escravidão aqui?

Maestri: A melhor coisa que o Fernando Henrique Cardoso fez na vida foi esse livro. Mas, mesmo assim, chamo a atenção que ele não está estudando a escravidão, mas a dificuldade do capitalismo em chegar devido à escravidão. Se for ler o livro, o trabalhador escravizado praticamente não tem papel ali. Por que a cana-de-açúcar, em outros estados, se adaptava tão bem ao trabalho escravizado? Porque com ela tu trabalhava 12 meses por ano. Aquilo era, praticamente, ininterrupto, era um mecanismo. O escravizador não era malvado por ser malvado, ele queria ganhar dinheiro. E para isso tinha que moer os cativos. Nos anos mais duros, de maior produtividade, chegava a ter rodízio de 10% da população do engenho, porque morriam, perdiam uma mão. Já o trabalho pastoril, aqui no sul, é duro, [mas tinha atenuantes]. Em comparação ao engenho, era menos duro. As relações, no entanto, entre senhores e escravos, jamais foram fraternais. Tivemos sublevações de puro cativo campeiro. Quando teve a Guerra Farroupilha, praticamente todos eles foram embora. As fazendas também eram menores. Para ter uma ideia de diferença, aqui, na fazenda pastoril, era necessário um trabalhador para cada mil hectares. A quantidade de mão-de-obra era muito menor. Por outro lado, a alimentação aqui também era melhor. Em muitas dessas fazendas, criavam gado, mas o fundamental era conseguir o couro. A carne não tinha mercado para escoá-la, então o cativo aqui comia melhor. Tudo isso na fazenda, se for ver na cidade, em Porto Alegre, era um desastre. O historiador Dante de Laitano compreendeu isso. Ele dizia que a condição de vida de um trabalhador na charqueada era diferente da fazenda, mesmo quando as duas tinham o mesmo proprietário. O trabalhador da economia pastoril era especializado, um moleque começava a ir para o campo aos 6, 7 anos, para ser peão aos 18.

Sul21: Falando nas crianças, como a lenda do “Negrinho do Pastoreio” se encaixa nisso?

Maestri: Mostra que não era doce a questão. Com 6, 7 anos a criança estava na fazenda trabalhando e não parava de trabalhar. O trabalho de peão até hoje é muito duro, mas temos que compreender a realidade e relativizar. Na fazenda, eles ainda eram melhor tratados do que aqueles que estavam na charqueada, nas olarias. O trabalhador doméstico, por exemplo, em geral, viviam mais do que os trabalhadores do campo, da roça, mas muitos trabalhavam como animais.

“O escravizador não era malvado por ser malvado, ele queria ganhar dinheiro. E para isso tinha que moer os cativos” | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Sul21: Gilberto Freyre em “Casa Grande e Senzala” retrata o regime de escravidão como “sistema social e econômico em que funcionavam passiva e mecanicamente”. Insurreições e tentativas de insurreições mostram que não era bem assim. 

Maestri: Nos anos 1930, a classe trabalhadora começava a entrar na vida política, então tinha que construir um espaço para a população negra na interpretação. Gilberto Freyre recupera o passado escravista no Brasil, mas num sentido de colaboração. Ele não diz que não tinha violência, mas que o elemento central era uma relação mais patriarcal. Isso se transforma na interpretação oficial do Estado brasileiro e é reproduzido em todos os estados. O mito fundador do Rio Grande do Sul, era e continua sendo, da “democracia pastoril”. A RBS e todo mundo continua sustentando que a fazenda era um espaço de homens livres, onde o peão era amigo do fazendeiro. Se pegar a documentação, o pessoal fala em “quebrar os quadris”, porque tinha muitos acidentes de cavalos. Não era a mesma coisa de uma fazenda açucareira, mas é claro que não tinha fraternidade entre senhores e escravos. Como não teve nem com os peões livres. Mário Quintana, que era de Alegrete, dizia: “aqui, quem não é fazendeiro é boi”.

Essa leitura começou a ser combatida nos anos 1960-1970, pelo FHC, Florestan Fernandes, historiadores de um viés marxista, como a Emilia Viotti da Costa, Alípio Goulart, Jacob Gorender, Décio Freitas, Clóvis Moura, que é um grande líder do movimento negro. Eles buscaram documentação e mostraram a violência. Minha esposa é linguista e está trabalhando com anúncios de fugas de escravos no Rio de Janeiro. Há registros de crianças com 6, 7 anos de idade fugindo, estropiados, marcados pelo castigo, sem dentes, sem dedos. É um verdadeiro pátio dos horrores. No final dos anos 1980, no contexto da queda do Muro de Berlim, essa questão muda. A historiografia, hoje, hegemônica é neopatriarcal, ela retomou essa ideia, fala que escravo negociava, tinha criatividade, que terminava dando voltas aos escravistas. Eles não querem mais saber de escravidão, mas querem saber de “histórias de sucesso”. Eu sempre brinco que isso é como se os historiadores do século XXIII fossem estudar as condições dos motoristas, usando como exemplo os motoristas da Assembleia Legislativa. Na escravidão, tem que hierarquizar [para entender]. Se tem 100 mil que vivem de um modo e mil que vivem de outro, tem que dizer qual era o dominante.

É uma coisa impressionante a quantidade de trabalhadores escravizados fugidos. Como estava dizendo Florence, minha esposa, é impressionante como tinha crianças fugindo já, numa cidade que não se sabe para onde ir, se vai encontrar comida. Então, imagina como era. O cativo, mesmo quando ele se submetia, ele resistia. Não é que todos eles vivessem sublevados, senão não funcionava, mas a principal resistência era trabalhar mal. Ele quebrava instrumentos de trabalho para ter uma pausa.

Lista de nomes de escravos processados por “crime de insurreição”, em um tentativa de levante em 1865 | Foto: Joana Berwanger/Sul21

Sul21: Esses episódios de insurreição e tentativas de levante, eles se acentuam a medida que o movimento abolicionista cresce?

Maestri: Lógico. A abolição se deveu a uma grande sublevação dos cativos. Esse livro maravilhoso “Os últimos anos da escravidão”, do Robert Conrad, mostra que já no Natal de 1887, os abolicionistas radicalizados, trabalhando clandestinos, organizam com os cativos, o abandono de 20 ou 30 fazendas cafeicultoras. Mas falha. Os cativos compreenderam que se abandonassem todos ao mesmo tempo, a repressão seria enorme. Ainda assim, a partir dali, começam a abandonar fazendas cada vez em maior número. Isso se transforma em uma maré. Em meados do fim de 1887, a cafeicultura estava convulsionada. Havia fazendas que não tinham mais escravos. A desordem é tão grande que os cafeicultores dizem que não dá mais, querem acabar com isso e começam a chamar os italianos. Quando chega maio de 1888, não tinha mais escravidão no Brasil, tinha uma escravidão residual. Mas foram os cativos que abandonaram, que fizeram luta, teve gente que morreu, abolicionistas que organizavam quilombos urbanos. No Porto de Santos, os cativos fugiam para esses quilombos e arrumavam ali trabalhos, tanto que a estiva ficou tradicionalmente um trabalho de população negra.

Sul21: Numa das tentativas de levante que antecederam a abolição, aqui no RS, em Nossa Senhora da Aldeia, um dos escravos que fugiu diz que a ideia seria esperar até setembro de 1863, porque a “Rainha viria gritar liberdade”. Ou seja, eles viviam nessa esperança. 

Maestri: Para ver a elaboração que fizeram sobre uma Princesa que era uma negreira. Ela sancionou a lei, a lei foi votada no Parlamento. Ela não tinha poder para acabar com isso, nem escolha.

Sul21: O que determinou o insucesso da maioria dessas insurreições?

Maestri: Nós estudamos a resistência, mas estudamos menos a coesão da produção escravista. Por que o Brasil foi a última nação do Ocidente, do escravismo colonial, a abolir? É uma coisa bastante complexa. A gente pensa, por que não houve uma sublevação de cativos em todo o Brasil? Porque, de certo modo, não existia Brasil nessa época. Isso aqui era um conglomerado de regiões praticamente isoladas, que eram administradas por um poder central. O Brasil era uma reunião de estados, que quase não tinham contato. Mais ainda: a população escravizada ficava mais no campo, quase sem contato entre as diversas fazendas. Segundo, sempre existiu, durante muito tempo, uma rotatividade muito grande dos cativos. Teve um estudo nos anos 1980, que dizia que a média de vida dos escravos, por volta de 1870, era de 27 anos. Por isso, sempre se despejavam novos cativos, o que diluía o processo de consciência. Aqui chegavam homens e mulheres do continente africano de regiões absolutamente diversas, tinha toda uma dificuldade linguística. E essa gente passava a vida trabalhando, esmagado pelo trabalho. Outro problema, havia uma grande população livre, mesmo que fosse livre e pobre, que jamais se identificou com essa comunidade. O trabalhador escravizado lutou sozinho pela sua liberdade. Ele não tinha consciência de lutar por uma liberdade geral, porque nem saberiam o que colocar ao redor disso. Eles lutavam pela sua liberdade. Depois, tinha um Estado repressivo, organizado, centralizado. A Guarda Nacional era muito bem pensada. Em três horas, reuniam 100, 200 homens armados. Imagina essa população desarmada, que não sabia ler, escrever, um não falando a língua do outro, morrendo cedo, com variações entre ela mesma. Tinha ainda questões como, os cativos domésticos, próximos do senhor, em geral, não queriam nada com o cativo do campo, muitas vezes [quando se tentava uma insurreição], alguém denunciava. Um cativo que queria liberdade ou a população. Tem um conto muito bonito do Machado de Assis, “Pai Contra Mãe” (1906), ele conta sobre um homem pobre, livre, que não tem como sustentar o filho e recorta os anúncios de escravos fugidos, procura pela cidade se encontra algum para ganhar a recompensa. Tinha toda uma população livre contra essa gente.

“O trabalhador escravizado lutou sozinho pela sua liberdade. Depois, tinha um Estado repressivo, organizado, centralizado” | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Sul21: O Uruguai aboliu a escravidão em 1842, quase meio século antes do Brasil. Isso teve um impacto no Rio Grande do Sul. Pode comentar?

Maestri: Quem conseguia fugir – e teve alguns que conseguiram chegar ao Peru, Bolívia – era considerado homem livre. Tenho um orientando que fez o mestrado sobre a banda norte do Uruguai, a tese chamada Tierra esclavizada e é sobre esse território que vem desde o Rio Negro até a fronteira com o Rio Grande do Sul. Essa metade norte era, praticamente, toda ela ocupada por estancieiros do Rio Grande do Sul e todos eles tinham escravos. Então, abolição mesmo, naquela região, vai terminar em 1880, junto com o Brasil. Agora, tinha outra coisa, se um cativo fugisse do Rio Grande do Sul para lá, ele era um homem livre e conseguia se empregar nas fazendas, em troca de um pagamento. Alguns trabalhavam como tropeiros, domadores, o pessoal ficava lá, comia, tinha mate, tinha fumo. Porque o fazendeiro precisava de mão-de-obra. O pessoal briga comigo, mas o Rio Grande nunca foi terra de gaúcho. A terra de gaúcho era o Uruguai, Entre Ríos, Corrientes. Aqui era terra de cativo campeiro, tanto que a Guerra Farroupilha precisou libertar os cativos para ter exército. A economia pastoril no Rio Grande do Sul foi, quase toda ela, sustentada por cativos campeiros. Tinha um ou outro homem livre, que quando queria podia ir embora, mas para manter o peão, tinha que ser o cativo.

Sul21: Qual a avaliação fazes da Lei Áurea? O senhor acha que ela foi produto de mobilização popular ou esgotamento de um sistema? Porque foi o país que tentou manter isso ao máximo. 

Maestri: Eu acho que tu pode colocar os dois elementos em contradição. Na realidade, em 1870, a escravidão já emperrava o desenvolvimento da cafeicultura. Era necessário fazer a transição para o trabalho livre, porque a população escravizada já não sustentava a expansão da cafeicultura. Sem o tráfico no Atlântico, estava cada vez mais alto o preço do cativo. Agora, o fazendeiro que tinha 150 escravos, não queria abolição, porque aqueles estavam trabalhando de graça. Ele queria espremer até onde pudesse. Quem resolve essa contradição são os próprios escravos, em colaboração com o movimento abolicionista radicalizado. Eles dão o golpe final. Se esses cativos não tivessem fugido, a escravidão poderia ter durado por mais alguns anos.

Sul21: Como o senhor avalia o texto da lei?

Maestri: Essa é uma discussão que eu tenho com um pessoal do movimento negro mais romântico, que diz que a abolição foi uma farsa. Eu publiquei dois depoimentos de ex-escravos, uma entrevistada nos anos 1960, outro em 1980. Um deles, o Seu Mariano, na fala dele, mostra que ele não tinha consciência de “abolição”, ele falava de quando “gritaram libertação”. Ele fala da festa que foi, de como depois da escravidão viveu na glória. Ele teve uma vida miserável de trabalho, mas dizia que era “quer trabalhar, trabalha, quer comer, come, quer dormir, dorme”. É consciência da obtenção de um elemento básico dos direitos civis: a liberdade. 

Quem nunca foi cativo, romantiza. Eu estive preso durante 10 dias, pela ditadura, foi pouco, mas tu não sabe o que é sair pela porta. Então, imagina o que era aquilo. A abolição foi arrancada dos escravistas, foi um parto a fórceps. Os cativos, naquele momento, lutavam por o quê? Lutavam por liberdade. Quando se está numa situação dessas, tu só quer sair.

“O abolicionismo foi um projeto de modernização do país. Ele não queria só o fim da escravidão, mas a reforma eleitoral, reforma educacional, distribuição de terra” | Foto: Domínio Público

A abolição é a única revolução social vitoriosa no Brasil. Não é o 13 de maio, é a vitória da revolução abolicionista, que foi a única que mudou a organização social do país. Durante 300 anos, dominava a produção escravista. Depois do 13 de maio, não tinha mais escravidão, se unifica a classe trabalhadora. Há um antes e um depois. Essa abolição poderia ter sido feita em condições melhores para os trabalhadores escravizados. Por que não foi assim? Porque o escravo que estava concentrado na cafeicultura não tinha relação com a terra. Em outras regiões, ele tinha pequenas hortas, que iam passando de pai pra filho. Muitos reivindicaram essas terras. Robert Conrad mostra que o abolicionismo foi um projeto de modernização do país. Ele não queria só o fim da escravidão, mas a reforma eleitoral, reforma educacional, distribuição de terra. Tanto que, quando os liberais ganham o governo, a última fala do trono de D. Pedro é propor desapropriar terras ao longo das ferrovias, para dar aos emancipados. Quando cai a escravidão, cai o sentido da monarquia e cai o sentido do centralismo. As grandes reivindicações das classes dominantes nas províncias afloram. Vamos ter uma República que, na realidade, é um contra-golpe. A República, no Brasil, não foi democrática, nem popular, ela foi oligárquica e federalista. Ela acaba com o centralismo e entrega o poder para as oligarquias das províncias.

Sul21: Em 1890, Rui Barbosa publicou um decreto para que todos os arquivos nacionais relacionados à escravidão fossem destruídos. Como a memória que temos hoje desse período nos influencia como sociedade?

Maestri: Rui Barbosa era um homem muito sério, ele era um progressista, dentro das possibilidades da época. Foi grande amigo do Castro Alves, que foi o poeta da revolução abolicionista, a expressão mais elevada do primeiro abolicionismo radical, destruído após a Guerra do Paraguai. Ele cantava o escravo que matava o senhor, no “Bandido Negro”. O Rui Barbosa defendeu a memória dele e era um abolicionista contra a indenização do que ele chamava de “lavoura andrajosa”, que só tinha terras gastas e uma porção de cativos, por quem reivindicava indenização. Como ele era ministro da Fazenda, nessa época, ele queria acabar com a prova de propriedade, que permitisse que essas pessoas cobrassem esses valores. Foi uma coisa retórica. O governo chegou a reservar dinheiro para indenizar os proprietários. 

O problema é que vivemos numa sociedade de classes. A escravidão, o racismo, sempre foi o setor mais atrasado da classe trabalhadora. Eles eram operários não-especializados, a família escravizada era muito frágil, os laços são uma forma de capital não-monetário. Para o trabalhador escravizado, o trabalho era uma alienação, só cansava. Isso não foi superado, ele se mantém de forma duríssima.


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