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13 de maio de 2018
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17:28

13 de maio: Os relatos de 4 tentativas de insurreição antes da abolição da escravidão no RS

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Sul 21
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A realeza brasileira, com a Princesa Isabel ao centro, durante missa campal celebrando a abolição da escravatura, em 17 de maio de 1888. Detalhe da foto, em que é possível ver Princesa Isabel, Conde D’Eu e Machado de Assis | Foto: Antonio Luiz Ferreira/Brasiliana Fotográfica/Domínio Público

Fernanda Canofre

Talvez você nunca tenha estudado isso na escola, mas na segunda metade do século XIX, depois da Guerra dos Farrapos (1835-1845), o Rio Grande do Sul viveu uma série de tentativas de insurreição de trabalhadores que seguiam escravizados. A proibição do tráfico no Atlântico e o crescimento do movimento abolicionista faziam com que os próprios escravos passassem a pressionar por liberdade.

Assim como acontece com boa parte da memória da escravidão no Brasil, esses episódios caíram em esquecimento. Eles ajudam a mostrar, porém, que ao contrário do que se cultivou por boa parte da historiografia brasileira, a escravidão aqui não foi menos violenta do que em outros países, tampouco os escravos foram mais submissos ao sistema. O livro de processos crimes envolvendo escravos do Arquivo Público do Rio Grande do Sul mostra isso. Há uma série de processos por homicídio, alguns deles por trabalhadores cativos que se revoltaram por não aguentar maus-tratos dos senhores. Em outros tantos, os réus respondem por “reduzir à escravidão” pessoas que deveriam estar livres. Sem acesso fácil a novos escravos, muitos usavam manobras para adiar a alforria dos que estavam em casa.

Num país que se construiu dependente do cativeiro negro, a caminhada até a assinatura da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, foi lenta. O tráfico transatlântico de pessoas tiradas da África só terminou aqui em 1850, depois de pressão do Reino Unido. Sem novos escravos chegando, a mão-de-obra se tornou mais cara do que os fazendeiros estavam acostumados e o sistema foi perdendo seu sentido econômico. Nos 300 anos em que se manteve, 5 milhões de pessoas foram trazidas à força para o maior porto negreiro das Américas.

A resposta do Império vinha em forma de leis graduais, que tentavam adiar a decisão de por fim à escravidão de vez. Todas elas esbarravam na prática. A Lei do Ventre Livre, por exemplo, primeira lei abolicionista, que libertava as crianças nascidas a partir de 28 de setembro de 1871, determinava que a criança seria criada pelo senhor de sua mãe até os 8 anos. Depois, a mãe poderia pedir a indenização do Estado – e mandar o filho embora – ou aceitar que ele servisse na casa até os 21 anos, em troca do teto.

Quem vivia ainda com senhor, ia perdendo a paciência de esperar. E vinham as tentativas de fuga e insurreição, que iam se tornando mais comuns a partir de 1860. O historiador Mário Maestri, professor da Universidade de Passo Fundo (UPF), descobriu alguns dos casos quando preparava sua tese de doutorado, em 1980. O tema era a escravidão no Estado.

“Sempre foi muito pouco o interesse nas formas de resistência dos trabalhadores cativos. Tem sempre uma visão procurando mitigar a violência. Se estuda muito mais as alforrias, os movimentos de acumulação de capital, algo para sugerir um cenário cor-de-rosa. Essas coisas, que são impressionantes, não se dá destaque”, diz ele.

Para recontar algumas das tentativas de insurreições que ocorreram no Rio Grande do Sul, o Sul21 fez pesquisas no Arquivo Público do Estado e num artigo publicado por Maestri. Conheça algumas delas:

A fuga de Nossa Senhora da Aldeia

Esquecidos pela História, casos estão guardados nos processos do Arquivo Público | Foto: Joana Berwanger/Sul21

Em agosto de 1863, um dos planos mais ousados de insurreição do Estado morreu na fuga dos primeiros sete escravos. O caso aconteceu em Nossa Senhora da Aldeia, um distrito da Aldeia dos Anjos, em Gravataí, criado para abrigar guaranis missioneiros vindos das Missões. No século XIX, porém, sua população maior era de quem vivia nas fazendas da região.

Segundo o depoimento de um dos escravos, Antonio, “nascido no Congo e marcado na fazenda de Francisco Maciel, no Butiá”, identificado como “velho Antonio”, tudo começou quando uma peça de charque, carne e milho foram furtados da casa do seu senhor. Filhos e herdeiros foram chamados para “tocar os escravos” e descobrir o culpado. Na segunda ou terça-feira, ele não recordava bem, uma partida chegou ao local. Desconfiados que seria para castigar os escravos, eles decidiram fugir para o mato e se juntar a Alexandre, escravo de outra fazenda, que já falava de um levante. Questionado porque fugiu, Antonio respondeu: “De medo”.

O professor Mário Maestri, em seu artigo, conta a história de maneira um pouco diferente. A partida seria um grupo chefiado pelo chefe de Polícia da região que, ao ser comunicado sobre um possível movimento conspiratório envolvendo escravos de várias fazendas da região, foi ao local averiguar o que acontecia. Chegando lá, encontrou ainda diligências da Guarda Nacional, também avisadas pelo comandante do distrito. Segundo eles, os escravos fugiram assim que as forças se aproximaram.

Luís, que no processo aparece como nascido em Moçambique, com aparência de 35 anos, marcado na casa de seu senhor, conta que não queria fugir, mas os rumores que corriam era de que “na Aldeia estavam pegando os escravos a torto e a direito”. Ele foi convencido que não tinha escolha. Apesar de seus companheiros estarem armados com trabuco, espingarda de dois canos e uma pistola comum, ele foi o único encontrado sem armas, na captura.

No início, os fugidos pensavam em ir para o Pinhal recrutar mais gente. Pensavam que em Passo Grande e Figueira, muitos outros cativos também estariam prontos para um levante. Outro escravo que não participou da fuga, Adriano, 60 anos, contou que há semanas os integrantes vinham convidando para o levante nas fazendas. Um deles dizia aos escravos que não precisavam mais trabalhar “porque estavam todos para ficarem forros”. Eles tinham todo um plano montado de um exército de escravos, uma parte ocuparia a infantaria, enquanto outra ficaria com a cavalaria. Seriam resistência, exigindo a liberdade nem que tivessem de usar a força.

Feliciano, outro escravo a depor, contou que foi avisado sobre “um ajuntamento para gritar liberdade”. Pediram que ele pegasse os melhores cavalos do seu senhor, para ajudar. “Seus companheiros lhe disseram que a Rainha, em meados de setembro, vinha a Porto Alegre e havia gritos de liberdade e se em vista disso não dessem, iam brigar”, diz um dos documentos do caso.

O aviso seria dado por Nazário, segundo José, escravo de Inocente Maciel. Todos deveriam se juntar então na Costa da Serra, onde pediriam juntos por liberdade. “Quando os brancos não quisessem dar, então brigariam até morrerem todos”.

Os três dias que passaram escondidos, até serem encontrados por um capitão do mato, readequaram os sonhos dos escravos fugidos à realidade. O plano mudou para seguirem para a Campanha ou nadar pelos rios até as Missões. Falaram em se separar e cada um continuar por conta própria, procurar “padrinhos”, que os aceitassem em suas fazendas.

Num domingo, foram recapturados. Nazário morreu ali mesmo. Os interrogados disseram não saber quem o matou. Manoel Capitão faleceu dentro da cadeia, por diarreia. Os que foram considerados “menos envolvidos” levaram castigos corporais no açoite, com a permissão de seus donos. O delegado concluiu o relatório dizendo que a “tranquilidade” estava restabelecida.

Nas peças de acusação dos líderes, que foram processados, aponta-se como crimes: “cometeram o delito faltando ao respeito com seus senhores”; “com premeditação, sabendo mais de 24 horas antes”, queriam “liberdade por meio de força”.

A quase insurreição de Taquari

Caso está entre os processos crimes do Arquivo Público, como “tentativa de insurreição” | Foto: Joana Berwanger/Sul21

No dia 20 de novembro de 1864, o juiz José Alves de Azevedo Magalhães enviou um ofício ao presidente da Província relatando seus interrogatórios em Taquari. A notícia que se tinha era de que um liberto estava tentando reunir escravos de fazendas da região para saquear a vila e fugirem todos para o Uruguai. No país vizinho, não só a abolição já tinha 22 anos, mas uma guerra civil ainda garantia trabalho em algum dos lados. E as fazendas por ali chegavam a 800 cativos.

O plano de Boaventura, Domingos, Carlos, Bento, João e Joaquim, os homens convocados pelo liberto João Marçal, começava com um encontro no cemitério. Dali, marchariam para a vila, onde buscariam armas e dinheiro nas casas. Depois, seguiriam para o Uruguai, como ouviram dizer que outros haviam feito antes deles. Mas, a ideia não teve tempo de se criar. A denúncia de uma escrava entregou tudo à polícia.

Cinco dias depois do ofício do juiz, seis escravos foram denunciados pelo crime de insurreição, ainda que ela tenha morrido na tentativa. Aqueles que tiveram menor envolvimento foram os menos açoitados.

No ano seguinte, o presidente da Província, João Marcelino, escreveria em seu relatório que “houve um estremecimento geral proveniente de suspeitas da existência de um plano de insurreição servil”. Ele mitigou o episódio dizendo não acreditar ser “um plano combinado” e repreendendo as autoridades locais por acionarem “ostensivamente” a polícia. No entanto, ele reconhecia que tinha medo da participação de blancos uruguaios em novas tentativas.

Os fitas brancas de Piratini

Parte do processo que terminou com 3 réus, mas prendeu 33 escravos | Foto: Joana Berwanger/Sul21

O Uruguai estava dividido em uma guerra civil, entre blancos e colorados, em fevereiro de 1865, quando Piratini teve uma tentativa de insurreição. Os primeiros tinham o apoio do Paraguai, os outros do Império brasileiro e da Argentina. Um jornal local, no início de fevereiro, porém, dizia que a vila no Rio Grande do Sul estava “em alarme, não por medo dos blancos, mas pela escravatura e emigrados”.

Poucos dias antes, o Capitão Querubim Cândido, que passava pela região com uma banda de presos da guerra uruguaia, ouviu de um homem que havia “indícios” de uma “haitiada” por ali. Os documentos não esclarecem quem seria ele, acredita-se que fosse um uruguaio, preso poucas semanas antes. À noite, o senhor de um escravo chamado Cassemiro o entregou como um dos líderes do movimento. E ele reconheceu que era sim o encarregado de convidar outros escravos da parte sul da vila ao levante. Tomé, o “cabeça” de fato, ficaria com a parte norte.

A imprensa, que falava do “perigo” de se repetir uma tragédia como a de “Spartacus em Roma e Tossaint-Louventure em São Domingos”, seguiu colocando Cassemiro, de 26 anos, com o mentor da insurreição. Os autos apontam que ele teria recrutado 11 homens. Um deles, José, contou que já havia sido contatado por um uruguaio chamado Ambrózio, algum tempo antes. A promessa era de que ele seria levado ao Estado Oriental, “livre do cativeiro e que seu senhor não poderia ir buscá-lo.”

O plano deles, parecido com o de Taquari, era tomar de assalto a vila numa noite de domingo para roubar armas, roupas e “moças brancas”. No dia marcado para o encontro, todos deveriam estar “com uma fita branca no chapéu para serem reconhecidos”. A cor era uma referência ao partido para o qual pediriam apoio no Uruguai.

Dos 33 presos, houve quem pegou um dia de prisão e houve quem ficou nela por 24 dias. Três viraram réus. André, Cassemiro e Tomé. Os três nascidos e criados na vila, tidos por seus senhores como “bons escravos”. Os outros réus, no interrogatório, alegaram que não queriam participar da revolta porque “viviam bem” com seus senhores, “nunca tiveram motivos para fugir” ou “que eram bem tratados”. Para Maestri, as respostas de “fidelidade aos escravizadores complacentes”, retomam o próprio discurso escravista.

Os três homens passaram quase cinco meses na prisão, até serem devolvidos aos senhores. Ficar sem trabalhadores no campo, como eles, era um golpe também para a economia das fazendas. O historiador diz que não há como saber o que aconteceu a eles, mas provavelmente foram alforriados pouco tempo depois, para irem lutar na Guerra do Paraguai. Muitas vezes, um destino pior.

O levante sabotado de Porto Alegre

Processos fazem parte da coleção do Arquivo Público do RS| Foto: Joana Berwanger/Sul21

Antes da Princesa Isabel assinar a Lei Áurea, no dia 13 de maio de 1888, houve a Guerra do Paraguai (1864-1870). Como a apresentação de voluntários não era suficiente para preencher as trincheiras, o Império fez o alistamento obrigatório. Para se livrar do serviço militar e escapar do chamado “castigo de guerra”, muitos senhores passaram a dar a libertação para seus escravos, desde que os mesmos servissem em seu lugar. Segundo o livro Brasil: Uma biografia, de Lilia Schwarcz e Heloísa Sterling, no Conselho de Estado, o parlamentar Pimenta Bueno dizia que “era preferível poupar a classe mais civilizada e mais moralizada, e não a outra que é menos”.

Em meio a guerra, no mês de junho de 1868, uma conspiração foi descoberta na Capital gaúcha. Como em muitos casos, veio da denúncia de outro escravo, que havia sido convidad0 a se juntar ao movimento. Não reportar também era crime.

O caso era que três escravos do negociante Francisco Ferreira Porto estavam preparando uma rebelião para a noite de São João. O líder do grupo, Patrício, pediu que deixassem a ideia inicial de se levantar nas festas do Espírito Santo, para evitar “desgraças desnecessárias”, já que haveria um grande número de mulheres e crianças assistindo aos fogos na praça do Palácio Piratini (hoje, da Matriz).

O grupo encomendou a outro escravo “doze dúzias de cabos de lança para neles encravar-se facas e quaisquer outros instrumentos”, para servirem de lanças. A ideia era tomar o quartel da Guarda Nacional e chegar ao “Laboratório Pirotécnico” e ao “Arsenal de Guerra”. Outro grupo, deveria libertar os presos, para que eles se juntassem ao movimento. Um grupo de presos paraguaios foi aliciado para ajudar no plano. O próximo passo seria entrar em Porto Alegre gritando “viva!” e anunciando a revolta.

O episódio também mostra os limites dos escravos, nesta época, segundo Maestri. “Em processo de queda de peso absoluto e relativo na população brasileira, tendo diante de si proprietários escravistas unificados e bem armados, sem poderem articular projeto alternativo de sociedade, em momento em que superar as fronteiras não lhe garantiriam a liberdade, pretendiam, com as armas na mão, exigir a liberdade”, escreve ele.

O plano de fuga seria o Paraguai, ainda que o país já estivesse perdendo a Guerra. O homem que denunciou a tentativa de insurreição recebeu a liberdade a promessa de não ser enviado para a frente de batalha. Medo de muitos dos escravos da época. Era comum, por exemplo, que senhores prometessem alforria, desde que o cativo servisse em seu nome. Ela também serviu como moeda de troca para quem ajudasse a denunciar insurreições.

Os escravos envolvidos na tentativa de levante não chegaram a ser presos, mas receberam castigos físicos de seus senhores. O próprio presidente da Província achou melhor deixar os eventos fora de seu relatório sobre os principais acontecimentos do ano. Como se nada tivesse ocorrido e as relações entre senhores e escravos, seguissem na ordem do sistema.


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