Opinião
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19 de fevereiro de 2019
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10:35

O transporte como direito, não como mercadoria (por Ramiro Castro)

Por
Sul 21
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Foto: Joana Berwanger/Sul21

Ramiro Castro (*)

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. “

Em 2015, a Constituição Federal passou a prever, em seu rol dos direitos sociais, o transporte, a partir da aprovação da PEC de autoria da deputada Luiza Erundina (Emenda Constitucional nº 90 de 2015). Para além da simbologia, o transporte, notadamente o transporte coletivo público, ainda que majoritariamente operado por empresas privadas através de modelos de concessão, foi revestido de importância e relevância jurídica que não detinha anteriormente, ao constar ao lado de outras áreas fundamentais como segurança, educação e saúde.

No entanto, dos direitos que constam ao lado do transporte no artigo 6º, o que menos é revestido de subsídio, o que menos é visto como um direito, o que tem menos atenção do Estado Brasileiro em todos os níveis, é o transporte PÚBLICO e seus modais. São poucas as iniciativas no país que debatam formas diferenciadas de enfrentar o problema do transporte público. Um exemplo recente e interessante é a implementação da tarifa zero no município de Maricá, através dos chamados “vermelhinhos”, ônibus da prefeitura através de sua empresa pública de transportes e que são de graça.

Seja pela péssima qualidade do serviço, a parca fiscalização, a ausência de responsabilização das empresas juridicamente, as altas tarifas, os vácuos legislativos e de regulamentação, os conflitos advindos das novidades tecnológicas no setor nos últimos anos como os aplicativos e plataformas e pelo quase inexistência de controle social sobre as planilhas tarifárias e sobre o transporte como um todo, o fato é que o transporte foi um dos desencadeadores das já antológicas jornadas de junho de 2013 (em Porto Alegre, cidade símbolo desta luta, a luta contra o aumento da tarifa ocorreu antes, em abril e maio, e depois com a ocupação da Câmara Municipal) e até hoje é um dos alvos principais de reclamação da população em todo o país.

Recentemente, para além dos memes gerados pelo prefeito Marchezan e sua “redução do aumento”, mais uma vez o debate sobre o transporte toma conta da capital. A luta pela redução da tarifa tem toda a legitimidade e importância, mas devemos questionar as bases do sistema em POA, desde o papel do COMTU até o controle social sobre o transporte através de verdadeira participação da população e das entidades no processo de construção da planilha( há cidades onde inclusive faz-se pareceres públicos), hoje nas mãos dos grupos e empresas que indicam os valores e custos de sua planilha, dando origem a discrepâncias bastante questionáveis, uma vez que não há modo de aferir a realidade dos números ali expostos. Um caso clássico da denominada captura dos reguladores pelos regulados.

Devemos debater seriamente o financiamento do transporte público, sobre o viés de DIREITO SOCIAL e SERVIÇO PÚBLICO. Estudos demonstram que impostos sobre combustíveis reduziriam a inflação e a passagem, bem como o impacto da poluição nas cidades. É necessário um debate sério sobre a CIDE e outros impostos e contribuições sobre os efeitos do transporte individual, para além do combustível, aumentando a transferência para os municípios ou municipalizando o imposto e o dever de tributar para deter impacto socioambiental, econômico e social do transporte individual pessoal e de serviço. Faz sentido os municípios serem autorizados a criar um imposto incidente sobre as vendas de gasolina e derivados no varejo, e todo o valor arrecadado ser utilizados no investimento ou custeio dos sistemas de transporte urbano. Madrid proibiu gradativamente a circulação de carros antigos e carros a diesel, por exemplo.

Em 1991 e 1992, o governo Olívio Dutra propôs, mas foi derrotado na câmara, uma taxa de transporte coletivo, a ser paga pelas empresas e estabelecimentos grandes no município. No mesmo período, o governo Luiza Erundina em São Paulo propunha um fundo público de transporte e a eliminação das tarifas, gestação de uma tarifa zero. O mundo todo subsidia o transporte, por ser um direito social. Aqui, só no lombo do trabalhador. Em POA, deveríamos debater novamente uma taxa de transporte coletivo. O VT ( Vale- Transporte) é a forma individual de financiar o transporte do trabalhador. Correta pois ninguém deve pagar para trabalhar, e os custos de alimentação e transporte devem ser supridos por aquele que literalmente compra a força de trabalho e as horas do outro. É importante ainda pois as empresas contribuem com uma limitada parte do custo do transporte. Mas as empresas têm responsabilidade com o sistema como um todo, uma vez que ele é hoje estruturado de forma a servir às empresas e o capital.

Não é a toa que os horários de pico são justamente a entrada e saída dos trabalhadores dos seus estabelecimentos ( 9h e 18h), assim como os grandes empreendimentos imobiliários e comerciais, que valorizam-se e exigem linhas e modais de transporte, mas não há contrapartida sobre isso. Ou qual o impacto da construção de um grande “bairro planejado” ou “condomínio vertical” e dos shoppings que se alastram pela cidade, para o transporte e o meio ambiente? Soluções que poderiam ser implementadas passariam por impostos sobre a folha de pagamento e taxas municipais. A França vem implementando sistema semelhante com sua Taxa de pagamento do transporte (TVT em francês) incidente sobre a folha das empresas e que hoje responde por cerca de 40% do orçamento do transporte francês.

No Congresso Nacional, já há propostas interessantes que podem ser pontos de partida dessa inversão da lógica de como é estruturado o sistema de transportes no país e que claramente, não está dando certo como a PEC 159/2017. Vale lembrar ainda que as empresas de transporte coletivo, tiveram desde 2013, o ISSQN/ISS, PIS e COFINS zerado. Iniciativas legislativas em âmbito federal e municipal desoneraram as empresas buscando responder às manifestações sem mexer na raiz dos problemas ou no lucro dos permissionários. Mesmo ainda nesta lógica, poderia ser proposto no âmbito do governo do estado a isenção do ICMS no diesel e outros produtos utilizados pelo transporte público, numa tentativa de se reduzir o impacto no bolso do cidadão do aumento das passagens anual.

Sentiram o drama? As isenções tributárias são vendidas como benefícios à população, “pois a tarifa deixará de aumentar”. Mas na verdade, ela sempre aumentou no ano seguinte! Sem transparência, ganham dos dois lados: do Governo e do povo! Ou seja, as manifestações de Junho deixaram neste caso um legado ótimo para as empresas e péssimo para os usuários e população em geral! Já o debate sobre as isenções tarifárias, revisadas pelo governo Marchezan, ao contrário de resolver o problema, o agrava. Quem pode trocar o ônibus por aplicativos ou outros meios está fazendo isso. Quem é isento, na maioria das vezes é quem não pode. A retirada da isenção e do meio passe para idosos e estudantes fará com que muitos deixem de utilizar o ônibus, não que comecem a pagar a tarifa, pois não conseguem arcar com o custo da locomoção diária, calculada em pelo menos 200 reais mensais (cálculo sobre 2 passagens apenas). Taxas como a de evasão escolar e de consultas marcadas pelo SUS que o paciente não comparece irão subir, fruto da política de massacre aos mais pobres. O debate sobre as isenções é mero sofisma e não resolverá a questão. Fechar os olhos para o problema é negar ao cidadão um direito seu, constitucionalmente garantido. Lembremos que não é por ser caro, que deixa de ser direito.

Reajuste tarifário não necessariamente é sinônimo de aumento. No entanto, atualmente é como o fosse. Afinal, nesses 10 anos, a tarifa só deixou de aumentar – provisoriamente – nas manifestações de Maio de 2013 em POA. Além disso, é um sistema que incentiva as empresas a reduzir a qualidade do serviço para cortar custos. Mas é possível fazer diferente! Não faz duas décadas que a CARRIS era a melhor empresa de transporte coletivo do país, e superavitária e a tarifa era reajusta pela inflação.

Somente em BH, desconfio que em POA deve ser semelhante ou pior, as empresas de ônibus lucraram indevidamente mais de 179 milhões de reais, literalmente quase 500 reais por passageiro por ano (contando apenas 2 passagens por dia) com a tarifa ditada unilateralmente pelas empresas que exploram o direito (sim, direito e não serviço). Estas informações foram retiradas da excelente iniciativa de auditoria popular da caixa preta das empresas de ônibus na cidade. Os movimentos que questionam a planilha tarifária em POA deveriam realizar esforço semelhante. Em Belo Horizonte os cálculos após detalhada análise de milhares de dados através da Lei de informação, descobriram que o preço da tarifa deveria ser 60 centavos menor e poderia custar ainda menos.

FONTES:

Você pode pagar menos  – https://www.vocepodepagarmenos.com.br/

Sul21Nove propostas para melhorar o transporte público de Porto Alegre

Caos Planejado5 maneiras de baixar o preço das passagens no Brasil

Senado Legis

DNCentro de Madrid vedado a partir de hoje aos carros poluentes

Gráficos retirados das páginas de facebook Meu Ônibus Lotado e Economia Pró- Gente.

(*) Ramiro Castro é advogado.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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