Opinião
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3 de dezembro de 2018
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17:18

Considerações sobre Benjamin – política e arte – a partir do texto de Tarso Genro (por Rogério Viola Coelho)

Por
Sul 21
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Considerações sobre Benjamin – política e arte – a partir do texto de Tarso Genro (por Rogério Viola Coelho)
Considerações sobre Benjamin – política e arte – a partir do texto de Tarso Genro (por Rogério Viola Coelho)
Walter Benjamin (Reprodução)

Rogério Viola Coelho (*)

“A escuridão estende-se mas não elimina o sucedâneo da estrela nas mãos.”
(Drummond de Andrade, no poema “Nosso tempo”)

1 – O artigo “A fronteira incandescente de Walter Benjamin e Bolsonaro” (Sul21 – 10/11/18) assume a forma de uma crônica literária que descreve os efeitos devastadores da marcha triunfal do capitão extremo-direitista, versando sobre as agruras do espírito dos vencidos de todos os níveis e escalões, que sofreram e sofrem diante dos blogs – em busca de mitigar a sua desesperança.

A literatura é posta em lugar das análises de conjuntura tradicionais – longos relatos lastreados habitualmente num mix de conceitos pincelados nas ciências sociais e de convicções adquiridas na luta. São aquelas peças ilustradas que abrem e animam reuniões póstumas, nos altos e baixos coletivos, sopesando obrigatoriamente a correlação de forças, para seguir em busca de causas e consequências do debacle sofrido.

2 – Para compreender e revelar o tormento que domina o espírito de tantos protagonistas, o cronista busca referência no conto que narra – pungentemente – a tragédia de Benjamin, posto objetivamente diante da avalanche nazista que varria a Europa com seus tanques. Ao estabelecer a semelhança entre as duas experiências, revela que o estado de espírito dos derrotados aqui em 2018, se aproxima daquele experimentado no setembro de 1940 pelo filósofo judeu-alemão, na sua rota de fuga da morte anunciada, ambos foram travejados pelo medo e pela desesperança.

No setembro nosso de 2018, o capitão de terra e terra (já quase presidente) defendia a eliminação sumária de todos quantos pareçam nas ruas ser bandidos, ratificava a matança de trinta mil, mais o fechamento do Congresso, e defendia a tortura dos adversários como método legítimo, glorificando o torturador-mor do Brasil no século XX. E foi assim – reiterando o seu discurso – que conquistou a maioria do povo, excitando muitos dos mais humildes seguidores com sua ferocidade.

A distância entre as duas experiências particulares aparece por contraste nos momentos díspares e no grau de dureza das duas realidades. Ao receber “cicuta” para usar no momento extremo, Benjamim já estava muito próximo dele, enquanto aqui nosso herói-exterminador do presente ainda vai assumir o poder político, e parece contido pelos poderes militares e privados que partilharão o poder com ele, dizendo-se interessados em preservar as instituições enquanto possível.

A diferença objetiva entre as situações particulares consideradas reverbera e amplifica no espírito alquebrado dos vencidos aqui em 2018 a mensagem que Benjamin recebeu de Koestler em 1940, juntamente com a “cicuta“ que seria usada no momento derradeiro do cerco nazista: “não use, ainda tem saída”.

3 – Na opção pela crônica literária, o autor deve ter considerado que as narrativas ancoradas nas ciências sociais – construídas a partir de suas armaduras conceituais compartimentadas – são reconhecidamente impotentes para desvelar completamente o real, especialmente nos eventos e contextos em que assume proeminência o desvendamento da subjetividade humana.

Esta impotência relativa do discurso científico é que abre espaço para todas as artes, em particular para a literatura, que recorre desde logo às metáforas. Elas se mostram habitualmente mais eficazes no exame de experiências humanas mais complexas, evocando outras experiências particulares que, embora sejam inteiramente outras, guardam com as primeiras semelhanças e contrastes.

Parece residir aí a astúcia da arte; em lugar de buscar “nos céus” conceitos abstratos, portadores da pretensão de universalidade, para compreender uma experiência particular atual, vai pescar, rente ao chão, um outro particular, onde a lógica e essência do fenômeno estudado aparecem com relevo maior.

4 – Alcançado o momento de voltar da literatura para análise da experiência atual, submetendo à razão crítica o fenômeno sócio político recortado, eis que decide prosseguir no espaço da arte. Ao invés de recorrer diretamente aos conceitos da sociologia e da filosofia política, ou recorrer ainda às categorias das ciências exóticas do espírito, como a psicanálise, decide prosseguir no ofício de artista da palavra.

Produz então o relato de um devaneio onírico imaginário, desvelando o tormento do espírito do próprio narrador, em busca de ideias para iluminar as sombras do processo político, ocorrido aqui, alcançando agora protagonistas do lado vencedor, onde avulta a figura do nosso capitão já coroado presidente. E vai encontrar em fragmentos do pensamento de Benjamin, identificado como filósofo da melancolia, as chaves para decifrar o real.

No primeiro fragmento descobre que pode haver a sobreposição dos fatos às convicções (e aos conceitos subjacentes) para compreender as situações difíceis – como a do sujeito acossado pela exceção na vida social – o que parece aplicável ao nosso processo político contemporâneo. No segundo fragmento, Benjamin fala da necessidade de passar pelo momento agudo da adversidade para o sujeito político crescer (chegar a mestre). Eis aí o apelo à força interior dos sujeitos políticos encurralados por aqui em 2018.

5 – No esforço derradeiro para escutar Benjamin através da vitrine – curiosamente falando em português – nosso narrador projeta sua ansiedade no questionamento aflito de um interlocutor imaginário do filósofo e, depois de penetrar no bar, escuta a metáfora decisiva do domador desarmado diante da fera. Ele – nesta peculiar correlação de forças – submete sua vontade, condicionando os próprios pensamentos, aos movimentos iminentes do adversário. Um cenário que mostra a razão curvada ante a faticidade.

Nesta atitude de espera do domador, estava contida a expectativa de que a animalidade da fera, carregada de pulsões destrutivas, a conduzissem a investidas que poderiam voltar-se contra sua própria integridade, gerando vulnerabilidades no confronto. Quando elas surgissem, iriam guiar a reação do domador, inicialmente paralisado ante sua força descomunal.

A crônica teve de esperar mais ou menos dois dias nas páginas do Sul 21, para sorrir ironicamente com a incidência da metáfora do domador na investida irracional do presidente-coroado contra os médicos cubanos.

Gerando a exclusão instantânea de mais de 8000 profissionais espalhados pelos espaços marginais do país, determinou a manifestação uniforme dos prefeitos das povoações mais distantes, pertencentes aos diversos matizes políticos, revelando que o universo atingido era de mais de 28 milhões de brasileiros pobres. E assim obrigou a imprensa a romper a clandestinidade que havia imposto ao programa “mais médicos”, ao longo de anos, revelando que ele abrange mais de sessenta milhões de brasileiros.

Um macro programa que contribuiu objetivamente para a efetivação do direito fundamental à saúde dos brasileiros pobres, compondo o ensaio de construção do estado social protagonizado no passado recente pela fragilizada e fragmentada esquerda brasileira em sua passagem efêmera pelo poder político.

6 – A irracionalidade do gesto do capitão estava na sua precipitação, uma vez que a intenção do desmonte do programa social está contido no projeto racional do ultraliberalismo triunfante. Projeto informado por uma intenção racional, de desmonte do estado social apenas iniciado. A distância que pode haver entre a intenção (o desmonte projetado tecnicamente pelos poderes privados ascendentes) e o gesto (detonado prematuramente pela ferocidade do seu autor) já tinha sido revelado pela arte, há várias décadas, na canção de Chico – Fado Tropical.

7 – A crônica, depois de desvelar o ânimo dos vencidos na avalanche eleitoral, assinala que a resistência às manifestações de ferocidade do exterminador do presente é necessária. Mas lembra que ela não seria suficiente porque ele agora é também o porta voz contingenciado dos poderes privados vitoriosos, na implementação de transformações profundas no Estado, nas instituições democráticas e na sociedade. Observa ainda que ela pode resultar fracionada em três terços: num terço de incluídos, um terço conformando um precariado margeando a pobreza absoluta e um terço de completamente excluídos, tratados como caso de polícia.

Propõe, então, que, além de resistir ao avanço do arbítrio que se anuncia, sejam contrapostas às medidas do novo governo as nossas medidas alternativas. As medidas de uma nova frente política em construção, voltadas para a redução das desigualdades, disputando a cada passo a consciência popular.

Talvez fosse bom dizer o nome desse projeto que irá soldar a unidade da frente de esquerda – um novo estado social – para prosperar no contexto da revolução tecnológica em curso; um projeto em oposição ao estado mínimo anunciado pelo novo governo. A ideia de que o nosso projeto não pode ser nominado serve somente para a preservação nostálgica do socialismo como utopia necessária.

(*) Advogado, coordenador do site Democracia e Mundo do Trabalho, autor do livro “A Relação de Trabalho com o Estado”, entre várias outras publicações.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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