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10 de novembro de 2018
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11:44

A fronteira incandescente de Walter Benjamin e Bolsonaro

Por
Sul 21
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A fronteira incandescente de Walter Benjamin e Bolsonaro
A fronteira incandescente de Walter Benjamin e Bolsonaro
Walter Benjamin (Reprodução)

Tarso Genro (*)

Lembro de um conto remoto sobre o dilema de Benjamin fugindo do nazismo.”Não use: ainda tem saída, teria escutado Walter Benjamim de Artur Koestler,  quando este lhe entregou a dose letal de morfina para que a mesma fosse usada em situação extrema, na sua busca de asilo em Portugal”. O lugar de passagem era em  Portbou, na fronteira da Espanha com Portugal, que jamais seria atravessada depois de Benjamin caminhar pelos caminhos de fuga da resistência nos Pirineus. Aquela pequena cidade espanhola já estava em mãos franquistas e quando a Polícia foi buscá-lo, na manhã azul de setembro – no pequeno Hotel onde aguardava a permissão para atravessar – Benjamin já havia se suicidado. Era o dia 26 de setembro de 1940 e as tempestades da guerra se projetavam sobre os povos como uma chaga maldita, um castigo dos deuses do mal, levado pelos sopros doentios da ira do capital.

Hoje sonhei com o conto. Nele, aquela fronteira já não era mais um limite geográfico, mas um símbolo incandescente que separava a vida e a morte de um judeu socialista, filósofo da melancolia e da liberdade que, ou seria eliminado ali mesmo ou mais tarde num dos campos da morte. Já se disseminava em toda a Europa o tacão nazista. O sonho – como o desta noite – é uma forma de loucura contida em épocas de paz e também uma forma de sanidade reprimida, em épocas de repressão, onde as pós-verdades são cautelosamente montadas para dar coerência à mentira: o sonho, neste tempo,  é uma fronteira do medo transgredido pela coragem da imaginação.

No sonho eu entrava numa das “Passagens” do livro  de Benjamin sobre Paris e o via num bar. Ele estava atrás de uma vitrine macilenta, com seus óculos redondos e sua vasta cabeleira  escura e conversava com alguém que lhe interrogava de forma incessante e lhe fazia observações mais ou menos pomposas e perguntas imprudentes para sua situação de acossado. Estas eram tanto profundas e estranhas, como simples e diretas, voltadas para a educação, a aura da obra de arte, os brinquedos de crianças, temas que ele tratara  em sua obra genial, influenciada pela mística de Gerson Scholen e pelo velho Marx. Eu não escutava Benjamin atrás do grosso vidro meio embaçado, mas as suas respostas ecoavam diretamente na minha mente, como se eu estivesse ao seu lado.

Dei-me conta que sonhava porque Benjamin falava em português – sem sotaque e sem vacilações – usando as nossas palavras mais sutis e também as mais simples e certeiras. A  última frase que ouvi dele, mentalmente – ainda de fora do bar – foi a seguinte: “a informação só tem razão no momento que é nova”, porque “a construção da vida” – prosseguia ele – “encontra-se atualmente mais em poder dos fatos do que das convicções”. O sonho era estranho e dentro dele comecei a refletir, se o que eu vivia era mesmo um sonho no qual eu refletia, ou se eu refletia acordado tentando sonhar

Benjamin quando decidiu morrer o fez num ato supremo de integridade lúcida e considerou a sua viagem fora das auras da vida como uma passagem para a luz que se esvaia radiante nos breves arcos das passagens de Paris. Mais além da melancolia com que compreendeu e amou a vida, sua partida foi escolhida por uma decisão moral para um adormecimento eterno, sem som dentro do sono. Assim, ele escolhera uma opção de resistência pela negação para que seu corpo não fosse profanado pelas mãos sujas do fascismo. Ele estaria, ora em diante, sempre ali para o repouso definitivo na memória do mundo.

Benjamin lembrou – ainda pensei no sonho – um velho texto escrito há alguns anos sobre o aprendizado dos homens de circo para dominar os animais. No texto ele concluía que, no treino para a subjugação das feras os domadores ficavam sempre regulados pelos impulsos do animal, que acabavam por limitar a inteligência dos treinadores, então cercados pelo instinto das feras. Ou seja, o “objeto” descrevia para o “sujeito” em que  contornos ele poderia ser eficaz, pois a natureza e a animalidade não são inteligentes, mas adaptáveis. E nem nos limites da sua ira os animais distinguem o bem e o mal,  pois não julgam nem a dor nem o prazer.

No meu sonho entro no bar e vejo Benjamin ouvir, meio enfastiado, um interlocutor que me lembrava vagamente um Foucault mais moço do que nas fotografias que circularam no final da sua vida, ou quem sabe um Agamben mais juvenil do que nas suas fotos atuais. Seu fastio era de um cansaço misturado com uma certa impotência, mas isso não me impediu de escutar – mentalmente – mais uma sentença de Benjamin, que o bar aspirou cheio de leveza e elegância: “Nunca ninguém se torna mestre num domínio em que não conheceu a impotência, e quem oculta esta ideia saberá também que tal impotência não se encontra nem no começo, nem antes do esforço empreendido, mas sim no seu centro”.

Ainda não acordado, tento por uma ordem no meu sonho catártico: a construção da vida está mais “subordinada aos fatos do que às convicções”; quando não se pode vencer o animal faz-se o que ele não pode  prever, no exercício da sua animalidade; quando nos sentimos impotentes estamos no “centro” do esforço a ser empreendido e podemos vencer. Entre no bar e permaneço agora encostado no balcão de madeira escura. Não sei se estou numa Berlim imaginária, num boteco amável da Lapa, num bar em Barcelona ou numa tasca afável de Lisboa. Reconheço então -miserável e gloriosamente- que na verdade estou no centro “impotente” do esforço e passo a lembrar, ainda no sonho, o que Koestler disse a Benjamin, quando entregou-lhe a morfina que o levaria aos arcos livres da morte. Ele disse: “não use, ainda tem saída!”

Concluo que, quando hoje falamos abstratamente em “resistência”, estamos falando em bloquear só a animalidade da violência anunciada, o que é necessário, mas insuficiente. O Bolsonaro que está falando hoje é o mesmo de antes, mas ele já é também – como Presidente –  não somente uma fúria irracional, mas igualmente a fusão do seu “ethos”  domado e primitivo -que anunciava matar trinta mil – com o projeto ultraliberal que precisa reformar a Constituição para debelar a democracia. E que também precisa ter confiabilidade internacional para lidar com o dinheiro global do “rentismo”: sua missão agora é usar a fúria para fazer as reformas, não somente para satisfazer a sua pulsão de ódio aos diferentes.

Por isso, a cada anúncio de medidas que estruturem as políticas do seu Governo, temos que mostrar ao povo quais seriam as nossas. As medidas de uma nova Frente Política – livre dos corruptos e corruptores que já estão todos ao seu lado – para mostrar que podemos resolver os problemas mais graves do país, com menos desigualdades e mais Justiça.

A fusão explícita do fascismo – autoritário e conservador na política e nos costumes – com a modernização capitalista liberal que impulsiona e modela novas forças produtivas e serviços, é uma experiência de opressão social que pode criar sua base de sustentação nos próprios excluídos, com o apoio feroz do oligopólio da mídia. Podem construir aquela famosa sociedade dos três terços: 13 do povo como caso de Polícia; 13 com baixos rendimentos, assalariados, precários, intermitentes, que sobrevivem na pobreza e nas bordas da miséria; 13 de integrados, ou razoavelmente integrados na sociedade feérica de consumo básico ou suntuário.

“Ainda tem saída” sim!,  mas ela não é simplesmente resistência.

(*) Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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