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6 de novembro de 2018
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10:30

Como a democracia chega ao fim (2018)

Por
Sul 21
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Como a democracia chega ao fim (2018)
Como a democracia chega ao fim (2018)
“Como a democracia chega ao fim”, de David Runciman (Editora Todavia)

 Luciano Mattuella (*)

Sempre gostei de andar de bicicleta – mas nem sempre tive os amigos mais honestos. Quando eu era pequeno – eu devia ter uns seis ou sete anos – eu costumava apostar corridas de bicicleta com um vizinho. A nossa “pista” era o contorno da caixa de areia circular do pátio do prédio em que morávamos. Foi em uma dessas corridas que eu descobri a raiva provocada pela injustiça: eu sabia que estava à frente de meu amigo na corrida, estava para completar a quinta volta em torno da caixa de areia (era essa e nossa regra: quem chegava antes ao final das cinco voltas, ganhava). Qual não foi a minha surpresa quando, ao terminar a sua quarta volta, ele para e, levantando os braços em júbilo, declara: “Ganhei!”. Fiquei consternado. Eu não sabia o que fazer com aquele sentimento que me abatia: será que contei errado? Será que ele está falando a verdade? Eu sabia, no íntimo, que estava sendo enganado, mas fiquei em dúvida e voltei para casa, triste, sem entender bem o motivo.

Alguns anos depois, estávamos – eu e este meu amigo – jogando videogame em sua casa. Era um desses jogos de futebol, que ambos adorávamos. Caso meu amigo chegasse perdendo ao final do primeiro tempo, ele se utilizava de uma opção um tanto estranha que era permitida pelo jogo: passava a controlar não mais a equipe escolhida, mas aquela que estava ganhando. Sempre que estava atrás no placar, fazia isso, de modo que, claro, ganhava todas as partidas. Quando era a minha vez, eu me sentia constrangido e não fazia isso: como nunca fui muito bom com videogames, eu perdia muitas partidas. Ao final da tarde, meu amigo vociferava: “Ganhei mais vezes que tu!”.

Se fosse nos dias de hoje, eu diria: “Fake news!”.

Claro que eu não gostava de perder. Mas, para ele, perder era inadmissível.

Em seu livro Como a democracia chega ao fim, publicado este ano pela editora Todavia, David Runciman apresenta uma definição bastante simples e precisa de democracia: “A definição mínima de democracia afirma simplesmente que, numa eleição, os perdedores aceitam a derrota”. Ou seja, em um regime democrático, mesmo o pior candidato pode ser eleito – e a “voz do povo” nas urnas deve ser respeitada, ainda que se discorde do resultado do pleito. Aceitar a derrota não significa se resignar, mas sustentar que, ainda que o meu voto não tenha sido o vencedor, o sistema que atribui valor ao posicionamento da maioria é coerente e justificado histórica e politicamente.

Nas recentes eleições presidenciais, apenas um candidato demonstrou que não aceitaria a derrota nas urnas: Jair Bolsonaro. Fato curioso e triste, mas o regime democrático suporta inclusive a eleição daquele que coloca a democracia em risco. A campanha do agora presidente eleito viralizou a informação de que as urnas eletrônicas estariam sendo “fraudadas” e que seriam “impossíveis” de serem auditadas. Ambas informações são falsas. Quando fui votar para o segundo turno, presenciei os efeitos disso na minha própria zona eleitoral: uma senhora, trajando uma echarpe verde e amarela, bradava que não havia “aparecido candidato nenhum” quando ela digitou o número de seu escolhido. O mesário tranquilamente disse a ela que o primeiro voto era para governador. Ela tentou novamente – curiosamente, deu certo desta vez. Mesmo assim, ela saiu dizendo para todos que aquela urna estava “mexida”.

Voltando ao livro, Runciman começa a escrita narrando o dia da posse do presidente Donald Trump. Ele e seus alunos estavam em um auditório na Universidade de Cambridge, onde é professor de política. Em um primeiro momento, todos faziam troça com o presidente eleito, ridicularizando-o, como quando se ri em um “grande funeral público”. Entretanto, assim que Trump começou seu discurso de posse, diz Runciman, todos ficaram calados – era possível sentir o medo tomando conta da sala. Na tela, viam uma “caricatura de fascista”. Pouco depois, escutavam os eleitores de Trump dizendo que “Trump disse essas coisas, mas não quer dizer que sejam reais”. Por aqui, também ouvimos muito falas deste tipo, inclusive da intitulada “namoradinha do Brasil”.

Ainda sobre o discurso de posse de Trump, Runciman lembra que Steve Bannon (sim, ele mesmo) e Stephen Miller – “não puseram em sua boca nenhuma palavra explicitamente antidemocrática. Foi um discurso populista, mas o populismo não é o inverso da democracia”. E aqui está um dos pontos centrais que Runciman sustenta em seu livro: imaginarmos que o fim da democracia se dará com um grande estrondo (para lembrarmos de T. S. Eliot) pode ser um tanto ingênuo – o momento agora é outro.

Segundo o autor, talvez as nossas referências conceituais sobre o fim da democracia devam ser revistas: não podemos imaginar que o regime democrático chegue ao fim da mesma forma que aconteceu em situações passadas de exceção, como o golpe civil-militar no Brasil ou – exemplo bastante explorado ao longo do livro – o golpe ocorrido em 1967 na Grécia. Nestes dois casos, os próprios autores do golpe fizeram questão de demarcar um antes e um depois: “A finalidade de um golpe de Estado como este é não deixar a menor dúvida quanto ao que aconteceu, pois a eliminação da dúvida é a única maneira de assegurar a obediência”.

Runciman propõe que o fim da democracia, hoje em dia, se imporia de forma mais sutil, ainda que não menos violenta. A questão central de Como a democracia chega ao fim, como apresentada pelo próprio autor, é a seguinte:

Que feição a falência política pode assumir em sociedades em que a confiança na democracia é tão firme que é quase impossível de abalar? A grande questão do século XXI é saber por quanto tempo poderemos manter os arranjos institucionais em que estamos tão habituados a confiar, a ponto de nem notar mais quando param de dar resultado.

Oportuno raciocínio, ainda mais levando em conta a infeliz afirmação da presidente do Tribunal Superior Eleitoral de que o TSE saiu “vencedor” no combate contras as fake news. Escutei de muitos conhecidos, em geral eleitores de Bolsonaro, que devíamos confiar nas instituições, que elas fariam o papel de conter qualquer exagero do coronel reformado. Incrível ingenuidade essa de supor que as instituições são supra-políticas, como entidades que não fossem atravessadas elas mesmas pelas forças e pressões em jogo no cenário brasileiro.

Falando em fake news, Runciman propõe que a “revolução da informática”, como ele chama, é um dos três fatores que explicitam o quanto uma crise democrática hoje em dia não se daria da mesma forma que em outros tempos, pois, segundo ele “passamos a depender de formas de comunicação e compartilhamento de informação que escapam tanto ao nosso controle como à nossa plena compreensão”. Esta foi uma sensação que me acompanhou desde o começo da campanha eleitoral: o pleito seria decidido nas redes sociais, e não mais apenas nos veículos tradicionais. O que chega ao fim, aqui, é a categoria de veracidade da informação: passa a ser verdadeira a notícia que condiz com o viés do leitor, e não mais o que corresponde ao fato. Triste mecanismo em que a palavra perde seu efeito de questionamento para ser rebaixada ao lugar de monólogo acéfalo e auto-fundamentado.

Os outros dois fatores apontados por Runciman como determinantes da crise democrática contemporânea, sobre os quais – para poupar a paciência do leitor – não falarei aqui, são a percepção de a violência política hoje em dia ser diferente da de antes (dificilmente veremos tanques de guerra na rua – mais fácil testemunharmos os desvarios de fanáticos hipnotizados pelo discurso totalitário, como aconteceu nos últimos dias no Brasil) e, segundo, o modo como lidamos com grandes calamidades sociais (o que em outras época gerava mobilização, hoje em dia “nos deixa apalermados” – ou, pior, produz memes). Estes três fatores são exaustivamente trabalhados por Runciman no livro.

Ainda que trate de assuntos duros e pesados, a escrita de Runciman é fluida e carregada de exemplos históricos. A sensação que temos ao ler Como a democracia chega ao fim é a de cumplicidade enternecida: é assustador o quanto os artifícios perversos (“ele diz isso, mas mesmo assim eu não acredito”) utilizados pela campanha de Jair Bolsonaro se assemelham – não por coincidência, claro – àqueles da de Donald Trump. A leitura passa a mesma sensação de quando vemos um desastre acontecendo à nossa frente, sem podermos fazer nada. Mas o desastre já aconteceu, então acompanhar a linha de raciocínio de Runciman é agora uma forma de nos prepararmos para o que está por vir. E de refinar as nossas formas de resistência.

Quanto a mim, nunca mais vi aquele meu amigo de infância. Caso o encontrasse na rua, eu poderia apostar que ele estaria vestindo a camiseta da seleção brasileira.

Eu torceria para que ele não me reconhecesse.

(*) Luciano Mattuella é psicanalista, membro da APPOA.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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