Pesquisa da UFRGS conta como carnaval de Porto Alegre foi parar no Porto Seco

Por
Annie Castro
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Complexo Cultural do Porto Seco foi inaugurado em 2004. Foto: Guilherme Santos/Sul21
Complexo Cultural do Porto Seco foi inaugurado em 2004. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Por que os blocos de rua acontecem na região central de Porto Alegre, enquanto o desfile das escolas de samba é realizado a 16km do centro da cidade? Essa questão motivou a historiadora Laura Spritzer Galli a realizar uma dissertação de mestrado sobre os processos que envolveram a construção do Complexo Cultural do Porto Seco e a escolha pela região para abrigar o espaço, que foi inaugurado em 2004.

Intitulada “Um longo caminho até o Porto Seco: Lutas e disputas por espaço no carnaval de Porto Alegre (94-2004)”, a dissertação que Laura produziu durante o mestrado em História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), orientada pelo professor Alexander Kerber, teve como recorte temporal o período entre os dez anos desde o primeiro projeto que previa a criação de uma pista de eventos até a construção do Complexo Cultural do Porto Seco.

Durante o processo de pesquisa, Laura utilizou informações de publicações dos meses de janeiro e fevereiro de dois jornais da Capital, Zero Hora e Correio do Povo, e documentos oficiais da Câmara de Vereadores de Porto Alegre que falavam sobre os debates em torno da criação da pista de eventos, como era chamado na época o complexo cultural.

“O que eu fiz foi pesquisar como se deu essa transferência do carnaval para uma região afastada e também o que fez com que se levasse tanto tempo para que se decidisse onde seria construída a pista de eventos, já que na época a ideia era que esse local acolheria tanto as escolas de samba, quanto desfiles cívico-militares e, até mesmo, o 20 de setembro da Semana Farroupilha. Então, eu pesquisei que projetos foram esses, quem fez eles, que discussões que estavam colocadas e por que foram tantos projetos até se chegar no Porto Seco”, explicou a historiadora.

A construção do Complexo Cultural Porto Seco foi o quarto projeto criado pela Prefeitura de Porto Alegre, uma vez que os três primeiros, que previam a criação da pista em bairros mais centrais, foram rejeitados por moradores das regiões onde eles deveriam ser instalados e pelos vereadores da época. “Eu acabei organizando a minha dissertação pelos obstáculos que foram colocados nesses diferentes projetos e por quem que colocou esses obstáculos”, relata a historiadora. Conforme Laura, todos os projetos foram criados pelos governos municipais da época e foram alvos de debates que envolviam os parlamentares da Câmara de Vereadores e também muita participação social.

De acordo com Laura, foi o primeiro projeto, criado em 1994 pelo governo de Tarso Genro, que deu início “à toda a polêmica em volta da construção do sambódromo”. O projeto previa a construção de um parque de eventos dentro do Parque da Harmonia, onde acontece anualmente o Acampamento Farroupilha. “Aconteceram várias discussões na Câmara de Vereadores com inúmeras entidades, como os tradicionalistas e os carnavalescos, órgãos do Judiciário, que também se localizam naquela região”, conta. Com tantas manifestações populares contrárias ao projeto, uma comissão especial na Câmara acabou rejeitando a proposta.

A historiadora Laura pesquisou o tema durante o mestrado em História na UFRGS. Foto: Luiza Castro/Sul21

O segundo projeto foi criado em 1998 pela gestão de Raul Pont e previa a instalação da pista de eventos entre o Estádio Beira-Rio e o Parque Marinha do Brasil. A proposta foi novamente rejeitada por setores da população da Capital, principalmente por parte dos moradores do Menino Deus, bairro que engloba a região. “Os moradores chegaram a entrar na Justiça para embargar o processo de licitação da obra”, relata a historiadora.

Já a terceira proposta, de 2001, projetava a construção da pista de eventos no bairro Humaitá. Segundo Laura, três localizações na região estavam cotadas para abrigarem a instalação, sendo uma delas próxima de onde hoje está a Arena do Grêmio. Assim como os dois projetos anteriores, embora tenham existidos moradores a favor, a proposta foi rejeitada pela maioria das pessoas que moravam no bairro.

Na época, alguns moradores das regiões da Restinga e do Porto Seco ofereceram suas regiões como possíveis locais para a construção da pista de eventos. A partir de então, o Conselho do Plano Diretor (CMDUA) foi o responsável pela escolha entre as três regiões e, em março de 2002, o Porto Seco foi escolhido para abrigar a pista de eventos. De acordo com a pesquisa de Laura, a maioria dos carnavalescos esperava que o CMDUA optasse pelo Humaitá, uma vez que essa era a região mais próxima do centro da Capital, enquanto outra parcela dos carnavalescos ficou contente porque havia a promessa da construção de um complexo cultural.

O Complexo Cultural do Porto Seco abriga os desfiles das escolas de samba de Porto Alegre. Foto: Ricardo Giusti/PMPA

A dissertação de Laura também aborda as motivações que levaram tantos grupos diferentes da cidade a se colocarem contra os três primeiros projetos e, segundo a historiadora, questões como barulho, violência e confusão são as justificativas que apareceram nas falas de vereadores, juízes e da população em geral. “Claro que sempre teve dois lados e existiam pessoas a favor porque achavam que o carnaval seria bom para as regiões. Porém, o que aparece bastante é a ideia de que o carnaval representa baderna e de uma oposição entre quem trabalha e quem faz festa, como se quem faz o carnaval não trabalhasse e como se o próprio evento não fosse um trabalho”.

De acordo com a historiadora, os documentos oficiais mostram que, durante os debates sobre os projetos, o carnaval era tratado como “um outro da cidade” e não como um evento cultural constituinte da identidade porto-alegrense e gaúcha. “São textos que colocam o carnaval como uma outra coisa que não faz parte da nossa identidade, diferente da relação que se tem com o 20 de setembro, por exemplo”, relata.

Laura também ressalta que a história do carnaval em Porto Alegre está vinculada à própria história da cidade: “Há essa construção de identidade que exclui a população negra e a população que faz carnaval dos espaços da cidade e, consequentemente, afasta as manifestações culturais dessas pessoas. Não por acaso essa população que faz carnaval é a população que foi removida da Ilhota, por exemplo, ou que passou por outros processos de afastamentos do centro para as periferias. Nesses processos, o carnaval acaba indo junto”.

Para a historiadora, a construção do Complexo Cultural do Porto Seco é um assunto que não pode ser simplificado e que envolve diversas problemáticas que vão desde o afastamento da região central e da atuação de várias forças, como Judiciário, Legislativo e Executivo, entidades e movimentos sociais, ao não cumprimento da proposta de que o local se tornaria um complexo cultural, que funcionaria o ano inteiro e teria estruturas fixas, como arquibancadas permanentes e barracões.

Segundo Laura, a reivindicação pela criação de um sambódromo se deu porque, antigamente, o desfile de carnaval acontecia na Avenida Augusto de Carvalho, com estruturas temporárias, que eram feitas nos meses que antecediam o evento. Em função disso, o trânsito da avenida ficava trancado enquanto o desfile não acontecia e, devido à distância do local dos barracões das escolas de samba, muitos carros alegóricos sofriam estragos durante o transporte.

“Então, quando se decidiu pelo Porto Seco, foi meio que uma ideia de que ‘vai ser longe, mas pelo menos haverá um lugar permanente pro carnaval’, mas isso não foi cumprido totalmente. Em 2004, foi inaugurada somente a pista de eventos, sem arquibancada permanente. Os barracões foram inaugurados depois da inauguração oficial do complexo e as arquibancadas nunca foram construídas”, relata Laura, que também ressalta que, pela ausência de estruturas permanentes, as escolas de samba continuaram precisando se esforçar para anualmente conseguir a estrutura necessária para o carnaval, situação que é agravada pela retirada de apoio da Prefeitura aos desfiles.

Atualmente, Complexo Cultural do Porto Seco ainda não tem todas as estruturas permanentes. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Além de não se tornar um complexo cultural, a pista de eventos também nunca abrigou outros desfiles da cidade, uma vez que, de acordo com a historiadora, as entidades tradicionalistas e militares afirmaram que iriam continuar realizando seus desfiles no centro da cidade.

Em função de todas as nuances que envolvem a construção e situação atual do Complexo Cultural do Porto Seco, a pesquisadora ressalta que não é possível simplificar e ver o espaço apenas como uma vitória dos carnavalescos e nem como um meio que somente afasta o carnaval da região central: “Uma ideia que eu tinha antes de começar a pesquisa é que o Porto Seco foi uma conquista, porque, afinal, os carnavalescos passaram dez anos reivindicando por um lugar e conseguiram. Por outro lado, também podemos pegar uma outra visão e dizer ‘bom, foi lá para longe o carnaval e isso está excluindo a população carnavalesca’. Bom, isso também é verdade. Mas eu acho que a grande questão é que é muito complexo esse tema”, afirma.


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