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2 de agosto de 2018
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22:24

‘Não deixaram levar nenhum pertence’, diz homem em situação de rua sobre ação da BM no Viaduto da Borges

Na quinta, Viaduto da Borges de Medeiros estava vazio e com circulação de pedestres | Foto: Guilherme Santos/Sul21
Na quinta, Viaduto da Borges de Medeiros estava vazio e com circulação de pedestres | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Fernanda Canofre
Giovana Fleck
Guilherme Santos

O guardador de carros William Renan dos Santos, 27 anos, estava trabalhando na tarde de quarta-feira (1º), quando testemunhou o início da ação que envolveu a Brigada Militar e o Departamento de Mobilidade e Limpeza Urbana (DMLU) para retirada das pessoas que ficavam embaixo do Viaduto Otávio Rocha, na Avenida Borges de Medeiros, no Centro de Porto Alegre.

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“Tinha muito pessoal que estava dormindo, eles foram bem agressivos. Só pediram para cada um sair do seu barraco e seguir seu rumo, não pegar nenhum pertence. Não deixaram levar nenhum pertence. Não deixaram chegar nem perto do caminhão, ficaram os caras das Forças Especiais em volta”, conta ele.

Há seis anos a região do Viaduto é onde William trabalha e mora. Ele diz que quando viu o que estava acontecendo correu para buscar sua mochila, na barraca onde costumava dormir, mas foi impedido pela polícia. “Falaram para eu ficar quieto na minha, cuidando dos carros”, relata. “Todo mundo foi corrido, cada um para seu canto, cada um por si”.

Em declarações à imprensa, o Tenente Coronel Rodrigo Mohr Picon, comandante do 9º Batalhão de Polícia Militar, disse que a ação teria sido motivada pelo aumento no número de assaltos a pedestres na região e porque o local estaria se tornando “uma cracolândia”. Ao Correio do Povo, o comandante afirmou ainda que “ali não havia mais moradores de rua, mas ladrões, traficantes e usuários de drogas”. A reportagem do Sul21 tentou contato com Mohr durante a quinta-feira, mas não houve retorno até a publicação desta reportagem.

Segundo Emerson Pavão, 24 anos, algumas das pessoas removidas relataram que a ação teria sido motivada pelo assassinato ocorrido na rua José do Patrocínio, às 17h, na terça-feira. A suspeita da polícia é que o crime teria sido motivado por questões de tráfico de drogas.

Emerson vive em situação de rua há 13 anos e integra o Movimento Nacional das Pessoas em Situação de Rua no Rio Grande do Sul. Ele conta que as pessoas que viviam no Viaduto estão agora espalhadas por outros pontos da cidade. Enquanto uma parte estaria debaixo da estrutura do aeromóvel, próximo à Câmara de Vereadores, outros estariam na Praça da Matriz, no Parque Marinha e na região do Parque Farroupilha, a Redenção.

“Se tem esse projeto do [Nelson] Marchezan [Júnior, PSDB], da Prefeitura, da Secretaria de Saúde, eles tinham que arranjar uma solução. [O prefeito] está falando bonito, mas o projeto só ficou no papel”, questiona Pavão.

Muitas pessoas que estavam no local perderam documentos, fotos que guardavam de família, por não ter sido dado tempo de recolher os pertences básicos. Apesar de reconhecer que há presença de assaltantes e do tráfico no local, Emerson diz que há “muita gente do bem” que está pagando por isso.

“Gente que trabalha, desenha, recicla, que precisa daquele local para descansar, para pegar uma comida, uma coberta, uma roupa, porque sempre vem gente ali à noite para distribuir essas coisas. Tem gente boa no meio também. As pessoas precisam do local e estão pagando pelos outros”, explica.

A Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) informou que não participou da ação, assim como a Secretaria Municipal da Saúde (SMS). As duas entidades lançaram, em abril deste ano, o chamado Plano de Superação da Situação de Rua. O projeto tem como objetivo estabelecer contatos de longo prazo com os moradores de rua, a partir de ações que integram saúde, moradia e educação – evitando abordagens violentas.

A SMS afirma que irá apurar detalhes sobre a situação das pessoas e como deverá agir a partir disso. “Fomos pegos de surpresa”, informou a assessoria da secretaria.

A Smurb (Secretaria Municipal de Urbanismo) confirmou que integrou a ação, a partir da atuação do DMLU (Departamento Municipal de Limpeza Urbana), mas não se posicionou sobre o episódio por “não ter sido responsável pela coordenação”.

Estrutura construída em 1932 espera por obras de restauração há anos | Foto: Guilherme Santos/Sul21Para Adacir Flores, presidente da Associação Representativa e Cultural dos Comerciantes do Viaduto Otávio Rocha (Arccov), os comerciantes e moradores da região “são tão reféns” da situação a que chegou o local nos últimos anos quanto as pessoas que viviam debaixo da estrutura.

“A insegurança era demais, as pessoas reclamando. O espaço estava refém do tráfico. Isso já vem de um ano, dois, cinco para cá. É que nem aquela música do Roberto Carlos, ‘todos estão mudos, surdos e cegos’”, diz. “Essa ação foi da segurança pública, não é ação de governo”.

A associação, segundo ele, tentou apresentar um projeto ao atual governo municipal para realização de uma Feira Multicultural a ser realizada semanalmente sob os arcos do Viaduto. Flores diz que chegaram a levantar o assunto em uma reunião do Orçamento Participativo do ano passado. Sem resposta da prefeitura, este ano, decidiram nem participar do OP por estarem “cansados”.

Flores lembrou do projeto para a restauração do Viaduto que chegou a ser iniciado no governo de José Fortunati (na época no PDT), mas nunca teve prazos estabelecidos para seguir. Segundo ele, outros projetos que tentaram a restauração sempre levavam em conta apenas a reforma física da construção, sem prestar atenção no envolvimento das pessoas. Em um banner colocado diante do Espaço Qorpo Santo, o sebo que Flores mantém há 35 anos no Viaduto, ele fala de “preservação e humanização” do local.

“Só o material não tem como existir, por isso que a gente fala em restauração e humanização, porque tem que ter um envolvimento da comunidade. Todo mundo precisa que o Viaduto se desenvolva com segurança e harmonia, temos que devolver essa obra para a sociedade como um todo”, defende ele.

No início da noite desta quinta, a Prefeitura de Porto Alegre, que diz não ter conhecimento sobre a ação da Brigada Militar, anunciou que, partir deste sábado (4), o Viaduto receberá food trucks.

A ação, realizada pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico, tem como objetivo “criar uma área de convivência para os porto-alegrenses, incentivando a gastronomia itinerante, o empreendedorismo produtivo da cidade e também a ocupação do local”.

Os food trucks funcionarão sábado e domingo, das 9h30 às 21h, em caráter experimental.

 


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