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20 de maio de 2018
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16:08

‘Porto Alegre, sem seus símbolos, não é Porto Alegre’: Solar dos Azulejos, do século XIX, é restaurado

Casa Portuguesa na Andradas, 895. Foto: Joana Berwanger/Sul21
Casa Portuguesa na Andradas, 895. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Giovana Fleck

Na segunda metade do século XIX, a Rua da Praia recém mudara de nome; em 1865 passou a ser conhecida como Rua dos Andradas. A Igreja das Dores não tinha suas duas torres simbólicas. Água encanada era uma das novidades recentes da cidade, que passava de início por dois chafarizes e em algumas partes do Centro. Havia um teatro, um fotógrafo e um cemitério dentro dos padrões internacionais de higiene. Em 1865, a cidade recebeu a visita do Imperador, acompanhado de sua filha e genro. Eles vieram conferir o estado das tropas para a guerra do Paraguai. No mesmo ano, a Câmara resolveu modernizar o Mercado Público – resultando no prédio que existe hoje.

Os aterros da margem do Guaíba ainda não haviam tirado a proximidade da calçada com o rio. Entre as concentrações de lojas e o movimento de pedestres, uma casa azul e amarela se destacava entre a uniformidade das demais. Construída com azulejos vindos do Porto, no litoral português, foi parque gráfico, marmoraria, fábrica de bolsas e lar de um médico e sua família.

O número 895 é uma das cinco casas de azulejos portugueses remanescentes em Porto Alegre. “Por pouco não viraram apenas quatro”, ressalta o arquiteto Lucas Volpatto – um dos responsáveis pelo restauro da estrutura.

Rua dos Andradas, década 1950/60. Foto: Acervo Fotográfico Laudelino Teixeira de Medeiros/Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul

Porto Alegre é uma cidade de povoação tardia, se comparada às demais capitais litorâneas fundadas pelos portugueses. Seu povoamento iniciou-se, em meados do século XVIII, com o arranchamento de efetivos militares e colonos açorianos que seriam deslocados para as Missões, após a demarcação do território, algo que não se realizou. Os colonos acabaram ficando e, em 1773, com a transferência da sede do governo da Capitania de Viamão para Porto Alegre foram construídos os primeiros prédios públicos nos “Altos da Praia”, atual Praça da Matriz, seguindo a tradição portuguesa de “cidade alta” e “cidade baixa”. Na parte alta ficavam os poderes político e o religioso, enquanto os comerciantes ficavam na parte baixa, junto ao porto.  Esse crescimento acelerou-se a partir da década de 1820, quando começou a receber parte dos estrangeiros, em especial alemães, que migravam para o país. Esses se instalaram na parte norte da cidade e participaram no desenvolvimento do comércio, do trabalho artesanal e da incipiente indústria que ali se desenvolveu.

Entre 1835 e 1845, Porto Alegre vive a realidade da Guerra dos Farrapos. A guerra civil acaba em 1845, e em 1850, Duque de Caxias manda demolir as fortificações que protegiam partes da cidade. No mesmo ano é inaugurado o cemitério da Santa Casa, na Azenha, para enterrar os mortos do conflito. Foi o Duque, também, que mandou construir a Ponte de Pedra, para religar a cidade à “zona sul”, uma área que estava praticamente isolada desde o começo dos conflitos, o que favoreceu o surgimento do Arraial do Menino Deus. Em 1858 é criado o Teatro São Pedro, e em 1865 a Hidráulica Porto-Alegrense.

Na Rua dos Andradas, colorida e luxuosa, o Solar dos Azulejos era provavelmente habitado, em seu andar superior, mas não existem registros precisos dessa época. Na parte de baixo, no entanto, o espaço foi cedido para as oficinas gráficas do Jornal do Commércio. Todo o histórico fez parte da pesquisa do historiador Pedro Meirelles. Segundo Pedro, o trabalho minucioso consistiu em incontáveis visitas a arquivos e registros de imóveis. Depois de conseguir uma base de registros significativa, tentou traçar uma linha do tempo para a edificação a partir de anúncios em jornais dos últimos dois séculos. Ele diz que a casa pode ser anterior a 1866, mas não há registros de sua construção. “A década de 1860 parece ser bem propícia para o surgimento de casas com fachadas azulejadas. O historiador português Santos Pires acredita que a moda de azulejar as fachadas surgiu no Brasil e depois se espalhou por Portugal, e não o contrário. Seria uma inovação desse período, usar azulejos como revestimento e decoração externa, ao invés de fazer-se murais (principalmente em edifícios religiosos), como era feito então. Principalmente em cidades portuárias ou que faziam frente a rios, esse tipo de revestimento ganhou fama por ajudar a proteger a fachada da umidade e salinidade”, explica.

Para reforçar essa teoria, ele aponta que a primeira fábrica de azulejos do Brasil foi criada em 1861, em Petrópolis. “O Sobrado de Azulejos, em Rio Grande, tombado pelo IPHAE, é de 1862. Tudo dentro do mesmo contexto”, afirma. A hipótese mais provável para o historiador é de que a casa, enquanto estrutura, tivesse sido construída anos antes, mas azulejada na década de 60 como forma de demonstrar o poder e a origem da família que a habitava. “Seria, ao que tudo indica, uma moda usada por quem tinha dinheiro e status na sociedade.”

Ilustração de Hélio Ricardo Alves com bico de pena, baseado em fotografia da década de 1930. Imagem: Publicada em ALVES, Hélio Ricardo. “Rua da Praia foi assim…”. Porto Alegre: Fumproarte; Prefeitura Municipal, 1997,p. 20-21.

A quadra em que o sobrado está, entre a Caldas Júnior e a João Manoel, mais para o final do século XIX, será chamada de “quadra dos italianos”, pela concentração desses imigrantes e seus ofícios. O fotógrafo Virgílio Calegari tinha seu atelier por ali. Em 1885, o Sobrado de Azulejos passa a abrigar a Oficina de Marmoraria José Obino e Sucessores.

Obino já havia falecido em 1885. Logo, eram seus filhos que comandavam o negócio. Segundo Meirelles, Obino foi o escultor que elaborou o primeiro monumento de mármore Porto Alegre. “Muitos dizem que o primeiro foi a estátua do Conde de Porto Alegre, mas em termos cronológicos foi o Chafariz Imperador, que ficava na praça da Matriz. Atualmente, depois de muito mutilado, está instalado nos jardins do DMAE, na 24 de outubro.”

Uma planta da época, consultada por Meirelles, mostra a configuração da cidade: a Santa Casa continuava a ser o limite mais oriental; a área da Redenção ainda não havia recebido qualquer melhoria e a cidade não ia mais ao sul que a rua da Imperatriz, atual Venâncio Aires. Com relação à Andradas, na parte leste existiam dois mercados (ambos em desuso e aguardando a demolição). Na parte oeste, o antigo largo do Arsenal já fora transformado na moderna Praça da Harmonia (atual Brigadeiro Sampaio), com ajardinado moderno e bancos para se relaxar junto ao rio. “Era um point dos poetas da cidade”, conta  historiador. A rua Sete de Setembro já estava concluída, após o aterro de parte do rio. A Igreja das Dores estava ficando com o interior mais parecido com o que existe atualmente, com os altares e o trono pintados e dourados.

Depois da oficina de 1866, Meirelles afirma só ter conseguido achar informações sobre a década de 1880. Parte do endereço foi ocupada pela Marmoraria dos Sucessores de José Obino. A outra parte era residência do médico Jayme de Almeida Couto. “O dr. Couto era de Santa Maria, mas se envolveu com problemas políticos por lá e mudou residência para Porto Alegre. Ficou pouco tempo na casa. Pouco mais de um ano depois anunciou aos seus clientes que se mudaria para a praça da Alfândega”, relata Meirelles. De acordo com sua pesquisa, tanto Obino quanto Couto provavelmente alugavam os seus espaços. Em outubro de 1885, o sobrado aparece nos jornais como “o bem penhorado a João Jacinto Ferreira e sua mulher em execução que lhes move Antônio Rodrigues de Oliveira Diogo”.

Na época, foi anunciado com as seguintes características – todas remetendo à uma arquitetura elitizada: “Frente norte à dos dos Andradas, de ns. 227 e 229, com três portas no pavimento térreo e três ditas em cima, com sacada corrida, contendo salão forrado e assoalhado, dividindo-se por um lado com a casa do general Sebastião Chagas e pelo outro com a dita dos herdeiros do finado cirurgião Antônio José de Moraes.”

“Ao que tudo indica, a casa não foi arrematada em leilão e voltou a ser alugada. Em 1890, foi ocupada pela ‘primeira loja de modas desta capital’, com sortimentos vindos ‘diretamente de Paris’”, descreve o historiador. Ele se refere à Grande Magasin de Modas de Guilhermina Weber, que vendia roupas e tecidos de luxo para a elite da época. Nos anos seguintes, até a década de 1920, Meirelles afirma ter encontrado, apenas, referências para o térreo do edifício. Em 1900, pertenceu ao leiloeiro A. Baltar, que ali tinha o seu escritório; em 1909 era a Chapelaria Moderna de Henrique Rappa; em 1913 foi um bazar de miudezas e alfaiataria de Almanzor Alves de Oliveira e Silva, que em 1916 até 1922, manteve o armazém em sociedade com Nicolau Ceroni.

Em 1927, a numeração da cidade foi alterada para os números que temos hoje. “Sinal de que estava se ampliando e expandindo em boa velocidade, e precisava de um sistema mais moderno e prático”, aponta. A primeira numeração, que vinha sendo usada até então, era de 1827.

Depois disso, o historiador afirma ter descoberto pouco. Admitindo querer saber mais, afirma que seu interesse pelo imóvel veio após pesquisas sobre o início de Porto Alegre. “O Solar dos Azulejos é um bem muito importante para todos que pesquisam a história da cidade em seus primeiros anos. Fala-se muito, principalmente os escritores mais antigos, que POA surgiu na Rua da Praia, que os açorianos teriam se arranchado ali esperando as terras que o Rei doaria. Em minha dissertação eu contesto a história dos açorianos, mas acredito sim que a Andradas é uma das ruas de ocupação mais antiga na urbe. E sendo uma das casas mais antigas da rua, a dos Azulejos sempre chamou muita atenção.”

Casa Portuguesa na Duque de Caxias, 876. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Ele cita o advogado e ativista na preservação do patrimônio, Leandro Telles. Em 1977, Telles e outros membros do Movimento de Defesa do Acervo Cultural Gaúcho solicitaram ao prefeito Guilherme Villela que considerasse “de valor histórico e cultural e de expressiva tradição para a Cidade de Porto Alegre os bens a seguir relacionados”, e os cinco primeiros bens citados eram, justamente, as cinco casas de azulejos remanescentes na capital. “Foi Telles, pessoalmente, que se colocou na frente das máquinas que estavam demolindo a casa de azulejos da Duque – aquela que hoje só tem fachada, e no interior há um mercadinho. Chegou quando o interior já havia sido posto abaixo, mas conseguiu com o prefeito a preservação da fachada.”

Na década de 1970, teria sido lar da fábrica de malas e bolsas Duquesa (que hoje existe em dois endereços). Depois, teria virado uma pensão e, até, um fliperama. Uma família teria morado no local entre 1980 e 1990. O filho do casal permaneceu ali até 2006, quando a casa foi interditada pela Defesa Civil pelos riscos da estrutura.

Antes e depois do Solar dos Azulejos. Fotos: Divulgação/ Studio1 Arquitetura

Lucas Volpatto foi o arquiteto responsável tanto pela pesquisa, quanto pela execução da restauração do imóvel. A casa, em si, não é patrimônio tombado pelo Estado. Porém, por interferência de promotores do Ministério Público Estadual, foi cobrado ao proprietário atual – que, segundo Volpatto, não possui qualquer vínculo familiar com o prédio – que contratasse uma equipe especializada na preservação das características originais da casa. A obra, no entanto, foi financiada pelo locatário. No andar de baixo, hoje, opera o Boteco Histórico. O proprietário, que iniciou o negócio em 2015, criou seu modelo de negócio em torno das construções características e históricas do Centro.

A fachada estava em ruínas quando o projeto começou. Uma árvore criou raízes no vão entre as três janelas e o telhado, se ramificando pelos azulejos que restaram. A parede que liga a casa ao antigo Hotel Açores – casa das famílias da Lanceiros Negros Vivem, antes da reintegração de posse em 2017 – estava com a argamassa de cal “descolada”. Ela foi, literalmente, grampeada. “A amarrada da alvenaria já não existia mais, o edifício foi praticamente costurado de volta.”

Em 2010, o imóvel pegou fogo. Reportagens da época apontam que as chamas foram iniciadas após uma discussão. Com isso, muitos azulejos originais foram perdidos.

Hoje, o térreo da casa é sede do Boteco Histórico. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Lucas tira de uma pasta preta e acolchoada amostras de azulejos e os dispõem em cima da mesa. “Fazer azulejo hoje em dia é algo que as pessoas acham que é impossível. Tem quem faça, mas é raro. Esse vieram de uma cerâmica do Rio de Janeiro.” O projeto chegou a considerar cerâmicas da cidade do Porto, local de origem da composição primária. Porém, procurando cortar custos e manter a mesma qualidade, a produção foi feita em Petrópolis. Mapas dobrados mais de dez vezes ocupam as brechas da madeira que apoia as peças. Neles, cada centímetro do restauro foi ressaltado, indicando que tipo de azulejo e em qual ordem deveria ser colocado. “Trabalhar com a cidade é isso, é ser minucioso.”

Ele conta que, durante a execução, não teve tempo ou espaço para se dar conta da importância da intervenção. “Quando tiraram os andaimes, quando a diferença de cores entre o novo e o antigo desaparecem, aí você vê a importância do que está sendo devolvido para a cidade. Como era há 150 anos. A gente tem cinco casas de azulejos, mas podia ter só quatro”, resume.

Detalhes de painel em uma das casas históricas, na Sete de Setembro, 708. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Para Meirelles, uma das grandes lições que aprendeu com a história foi a de que “as coisas nem sempre foram assim”. “Isso serve para muitas coisas, mas no caso da paisagem urbana, serve para mostrar que nós não somos os primeiros a pisar nesse solo e dificilmente seremos os últimos. Que todos que já passaram deixaram sua marca, seja em algo frugal, como a construção de uma casa, seja uma mudança drástica, como os aterros que roubaram terra do Guaíba para a expansão urbana.”

Ele diz ser impossível determinar, como um todo, quem influenciou o que se vê em Porto Alegre. “O bairrista quer dizer que a sua cidade é grande por ser única, separada do todo. Se Porto Alegre tivesse sido separada do todo, nunca teria existido. Porto Alegre se inseriu em uma situação regional, provincial, depois estadual, imperial, depois nacional, e atualmente global, e isso é visível em cada esquina, em cada prédio. Afora a origem dos arquitetos, que já falamos, tem a origem dos processos históricos.”

Para ele, a preservação é importante pela identidade. Ele descreve Porto Alegre como a cidade da Intendência Municipal com a Fonte Talavera na frente. É a cidade da travessa dos Venezianos com suas casinhas baixas e coloridas; a cidade dos armazéns do Cais do Porto, do Mercado Público, da Igreja das Dores. “Tira-se tudo isso da paisagem, e não temos mais Porto Alegre. Por mais que os azulejos que ladrilham a fachada do sobrado da Andradas não sejam exclusivos, por mais que possa existir uma casa igual àquela em qualquer cidade do interior do Rio Grande do Sul ou de Portugal, em nenhum outro lugar existe a nossa rua dos Andradas, porque ela é única. Não por suas peças específicas, pelo calçamento, muito menos pelo nome, mas por sua história.”

O historiador afirma que estamos passando por um processo maciço de homogeneização. “Um processo que aparentemente é interessante para atingir um lucro rápido e burro, mas é mortal em termos de identidade. Se desmancha todas as referências históricas e paisagísticas da cidade, e nos transportamos para qualquer lugar do mundo, mas não Porto Alegre. Porto Alegre, sem seus símbolos, não é Porto Alegre”, finaliza.

Hoje, o térreo da maioria das casas foi transformado em pontos comerciais – como esse na rua José Montary, 121. Foto: Joana Berwanger/Sul21
Casa Portuguesa na Andradas, 1527. Foto: Joana Berwanger/Sul21
VAranda de uma das casas históricas, na Andradas, 1527. Foto: Joana Berwanger/Sul21
Casa Portuguesa na Sete de Setembro, 708. Foto: Joana Berwanger/Sul21
Detalhes de azulejos na casa da Duque de Caxias.  Foto: Joana Berwanger/Sul21
Casa Portuguesa na Duque de Caxias, 876. Foto: Joana Berwanger/Sul21

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