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1 de julho de 2017
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17:58

Patrimônio: há mais de 200 anos, Igreja das Dores preserva parte da história de Porto Alegre

A fachada da igreja preserva as referências do período colonial brasileiro. (Foto: Ramiro Furquim/Sul21)
A fachada da igreja preserva as referências do período colonial brasileiro. (Foto: Ramiro Furquim/Sul21)

Quando as águas do Guaíba ainda costumavam encostar na Rua da Praia, no centro de Porto Alegre, a Igreja de Nossa Senhora das Dores começou a ser construída. “Era uma capelinha no início, virara para a Riachuelo”, lembra a arquiteta e parte da equipe de restauro da Igreja Dóris Oliveira. Demorou quase um século para ficar pronta. Sua pedra fundamental foi lançada em 1807. Em 29 de novembro daquele ano, a família real portuguesa saía em fuga para o Brasil. Em seguida, Portugal foi invadida por tropas napoleônicas.

O Brasil era uma país de produção interna, cuja base eram os engenhos de açúcar. Os senhores de engenho permaneciam no topo da pirâmide social, seguidos por uma classe média  formada por funcionários públicos, feitores, militares, comerciantes e artesãos. Na base da sociedade estavam os escravos, de origem africana, considerados simples mercadorias.

No fim do século XIX, a Igreja ainda não tinha as torres. (Foto: Acervo/Igreja das Dores)

E foram os escravos os responsáveis por erguer a Igreja. Por volta do ano de 1800, na então Vila de Porto Alegre, existia somente a Catedral da Matriz, onde atuavam várias irmandades católicas, inclusive a devota à Nossa Senhora das Dores. Em 1807, a irmandade resolveu erguer seu próprio templo em homenagem à santa. “No início, donativos eram coletados e doados pela comunidade para construir e decorar a igreja”, afirma Caroline Rippe, em sua dissertação de mestrado. Logo, em 1813, a primeira parte da obra estava concluída.

A erupção da Revolução Farroupilha (1835-1845) e seus inúmeros conflitos fizeram com que as obras da igreja estagnassem. Mesmo assim, ela foi mantida aberta ao público para os cultos católicos. Somente em 1857, com a cidade adentrando num novo período de crescimento, sua construção foi retomada . O andamento do projeto foi avançando com vários percalços. Em 1864, a igreja passou a contar com uma área de atendimento médico voltada aos enfermos da Guerra do Paraguai (1864-1870).

A Igreja das Dores levou 97 anos para ser concluída e, segundo Dóris, isso a transformou num testemunho da própria evolução cultural da cidade. Construída em estilo barroco, a igreja tem duas torres de cerca de 50 metros e uma alta escadaria, num conjunto harmonioso. Iniciada dentro dos padrões usuais do barroco português, a igreja terminou, na fachada e nas torres, com o sabor de arquitetura alemã – como Porto Alegre, que experimentou ao longo do tempo a mesma transformação.

Tombada em 1938, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, a mais antiga igreja de Porto Alegre se caracteriza pelas duas torres e pelos 65 degraus que a ligam à Rua da Praia.  Dóris afirma que, inicialmente no estilo barroco, a fachada acabou tendo uma linguagem eclética, projetada pelo arquiteto Júlio Weise. Aí estão três esculturas, assinadas por João Vicente Friedrichs, que representam a Fé, a Esperança e a Caridade.

As três esculturas, assinadas por João Vicente Friedrichs, que representam a Fé, a Esperança e a Caridade. (Foto: Ramiro Furquim/Sul21)

A Igreja em 1930. (Foto: Acervo/Igreja das Dores)

Existe uma lenda que justifica tanto a  mescla de estilos artísticos quanto o atraso sofrido ao longo dos anos em suas reformas e construção. A demora, diz a lenda, nada teria a ver com cálculos malfeitos – mas sim com preconceito e injustiça.

Todos os recursos ali empregados vinham de doações dos moradores mais ricos de Porto Alegre. “Assim, o andamento da construção dependia da quase sempre escassa boa vontade desses doadores”, conta a lenda. De vez em quando, se a situação permitisse, entregavam madeira, pedra, bronze para os sinos, tinta para os santos, vidro para os vitrais. Vez que outra, a oferta vinha em dinheiro. Outra forma de contribuir com a construção era através do empréstimo de escravos. Afinal, eram os negros que faziam todo o trabalho braçal naqueles tempos. “Emprestando alguns de seus cativos para as lides da construção, o senhor de escravos ficava com a consciência limpa e com a certeza de que estava garantindo o seu lugar no céu, a custa do suor dos outros”, afirma o escritor e jornalista Pedro Haase, que pesquisou o contexto da época para contar a lenda em seu livro ‘Mitos e Lendas do Rio Grande do Sul’. Haase co-escreveu a obra com o também jornalista Emiliano Urbim. Ele afirma que grande parte dos fatos que ajudam a história a ganhar traços mais reais são oriundos de almanaques e jornais da época. “Todo o texto foi construído a partir de várias visitas à bibliotecas”, afirma.

A mais antiga igreja de Porto Alegre nasceu da fé dos açorianos l Foto: www.igrejadadores.org.br

Um dos senhores que emprestou seus escravos, supostamente, se chamava Domingos José Lopes. Um de seus negros chamava-se Josino. Depois de anos dedicado à construção, só faltavam as duas torres para concluir a obra. Sendo assim, a imagem de Nossa Senhora das Dores foi colocada no altar. Quando uma das pedras que adornavam a estátua sumiu, Josino foi acusado. Naquele tempo pouco adiantava contestar acusações. As pessoas, ainda mais um escravo, podiam ser condenadas sem provas. Cabia a Domingos, proprietário de Josino, escolher sua sentença. Domingos teria o condenado à morte par enforcamento. “Escravos, afinal de contas, eram coisas que se vendiam e se compravam, um a mais ou um a menos não faria nenhuma diferença para um grande proprietário como ele”, conta Haase. “Quem se importava com a alma de um escravo? Muitos acreditavam que os negros nem alma tinham. Não adiantava reclamar”, ele descreve no livro.

Naquela época, em frente à Igreja ficava o pelourinho de Porto Alegre. A praça era utilizada para a instalação da forca, onde eram executados os criminosos. Conta a lenda que Josino foi executado nesse local, bradando sua inocência e rogando uma praga – de que seu patrão nunca veria a obra da Igreja ser concluída. Ao longo dos anos, várias estruturas e planos arquitetônicos foram modificados, tal como o projeto das torres, fatores esses que, segundo a comunidade, devem-se à praga rogada por Josino.

“O fato é que a igreja foi inaugurada em 1903 e tem se mantido firme desde então”, afirma a arquiteta Dóris de Oliveira.  Dóris foi responsável pela fiscalização da primeira fase do restauro, entre 2008 e 2012. Ela fez parte da equipe que liberou o acesso às torres e renovou o piso de concreto do salão principal. “A Igreja passou por várias etapas na restauração, mas nenhuma alteração foi realizada”, ela ressalta. Segundo Dóris, o acesso às escadas de madeira que levam aos sinos estava completamente bloqueado. “Tudo teve que ser refeito, mas é um trabalho minucioso e lento”.

O restauro da Igreja das Dores teve início em 2008. (Foto: Ramiro Furquim/Sul21)

Hoje, a Igreja passa pela segunda fase da restauração, que facilita visitas turísticas no prédio. Diariamente, escolas e turistas vão ao local, mas, atualmente, os passeios são limitados. Com a conclusão da reforma, prevista para o fim de 2017, os visitantes poderão participar de visitas guiadas às torres do templo. Aprovado em 2015 pela Lei de Incentivo à Cultura do Estado (LIC-RS) e patrocinado pela Braskem, o projeto prevê restauro do retábulo da capela suplementar, do telhado, de bens integrados da capela mor – como altar, pinturas, portas, tribunas – além, também, da implantação do Plano de Prevenção Contra Incêndios (PPCI).

A execução do projeto de restauro dá base, também, para que um museu de arte sacra seja instalado futuramente. Assim, um acervo com mais de 2 mil itens poderá ser visto pelo público. “Ela é a igreja principal de Porto Alegre”, afirma Dóris. “É um espaço muito especial, belo por si só. Independente da função religiosa, é uma das construções que mais guarda histórias na cidade.”

O altar principal, após a restauração de 2008. (Foto: Ramiro Furquim/Sul21)

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