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3 de abril de 2018
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10:45

Projeto de dança com mais de 20 anos é encerrado em escola municipal de Porto Alegre

Por
Sul 21
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Gabriel, durante aula do projeto de dança em sala construída pela comunidade. Foto: Arquivo pessoal

Giovana Fleck

Em 2001, as aulas de ballet da Escola Municipal Professora Ana Íris do Amaral contavam com um espectador escondido. Gabriel Fernandes, então com seis anos, acompanhava sua mãe até a escola todos os dias. Ela era funcionária da limpeza e levava o filho para que não ficasse sozinho.

Um ano depois, Gabriel entrou no colégio para frequentar o primeiro ano do Ensino Fundamental. Sua mãe, no entanto, não o deixava dançar – achava que não era algo sério e preferia que Gabriel se dedicasse exclusivamente aos conteúdos da grade básica, como matemática e português. O menino, então, decidiu dançar escondido. Quando a mãe descobriu, Gabriel já sabia que a dança não era só um passatempo, era uma escolha pra vida. Hoje, ele é bailarino na Companhia de Dança de São Paulo, tendo passado por cursos prestigiados que o levaram a dançar no Theatro Municipal do Rio de Janeiro e a fazer audição para o ballet russo Bolshoi.

Assim como Gabriel, centenas de outros alunos passaram pelo projeto de dança na Escola Ana Íris. “Eu vi colegas que não tinham futuro – que não tinham oportunidade – achando um rumo pela dança. Gente conseguindo se reabilitar por uso de drogas. Hoje, eles estão na faculdade, alguns são empreendedores. Não é só um hobby”, diz ele. No entanto, em 2018, após 20 anos, o projeto na escola municipal foi encerrado. Mesmo financiado pela inciativa privada, a carga horária dos professores e coordenadores foi alterada. Assim, o tempo necessário para a realização do projeto de dança ficou comprometido. Para Gabriel, considerando as altas taxas de evasão escolar e a dificuldade de engajamento dos alunos, a ausência do projeto “é perder muitas crianças por nada”.

1997-2017

 "É maravilhoso ver eles ganhando o mundo. Mesmo como ex-alunos, eu não deixava de ver eles. Saíram da escola e continuaram comigo, dançando nos espetáculos ou participando das aulas . Nunca deixaram de frequentar o Ana íris", afirma a professora Angela Tonon. Foto: Arquivo pessoal
“É maravilhoso ver eles ganhando o mundo. Mesmo como ex-alunos, eu não deixava de ver eles. Saíram da escola e continuaram comigo, dançando nos espetáculos ou participando das aulas . Nunca deixaram de frequentar o Ana íris”, afirma a professora Angela Tonon. Foto: Arquivo pessoal

Angela Tonon se formou como educadora física, mas conta que a dança sempre foi seu interesse pessoal. “Acabei me especializando”, diz. Sua pós-graduação foi em dança como elemento pedagógico no desenvolvimento da cidadania. “E se mostrou uma ferramenta única, indispensável até. Especialmente nessa comunidade.”

Quando ela entrou no Ana Íris, já existia um projeto de dança. Focadas em expressão criativa, as aulas, porém, não duraram muito. Assim, Angela estabeleceu seu próprio método dentro da escola, trabalhando dança clássica e livre. Em 1997, ela começou com 10h de carga horária semanal. Com o passar dos anos, conseguiu ocupar 15h na grade; depois 20h. “Houve uma época em que havia muito incentivo. A dança era mais reconhecida.” A atividade acontecia no turno inverso da grade regular, funcionando como uma entre várias oficinas de escolha livre. Por não trabalhar com turmas inteiras e diferentes faixas etárias, Angela estabeleceu uma organização com os outros professores para dividir os alunos de forma que pudesse especializar o trabalho.

A comunidade viu a importância do projeto. Um estúdio foi construído com o apoio dos alunos e dos pais no Ana Íris. Além disso, a base da escola estava na interdisciplinaridade: professores de artes, por exemplo, ajudavam com as fantasias e os cenários das apresentações. Temos, na rede, professores preparados para isso. Com informação. E trabalhar o sensível é importante, contribui com tudo. E isso é algo que essa gestão, esse secretário, esse prefeitos trata como trabalho de segunda categoria.” Além disso, em excursões regulares, os alunos eram levados aos teatros de Porto Alegre. “Conheciam todos”, afirma Angela com orgulho.

Fernanda, Gabriela, Guilherme, Gabriel, Stephanie. Angela fala os nomes dos alunos em voz alta lembrando suas histórias. É maravilhoso ver eles ganhando o mundo. Mesmo como ex-alunos, eu não deixava de vê-los. Saíram da escola e continuaram comigo, dançando nos espetáculos ou participando das aulas. Nunca deixaram de frequentar o Ana íris.” Em quantos colégios isso acontece? “Lá, era diferente”, resume a professora.

Em 2017, 20 anos depois de começar as aulas, Angela deu entrada em seu pedido de aposentadoria. Saiu de licença, mas uma de suas alunas manteve a oficina. “A gente sabe o quanto é importante. Muitos pais me procuraram pra dizer o quanto o ballet e a dança na escola eram importantes pra família. Como era bom para as crianças se sentirem protagonistas e no direito de ocupar um palco.”

“Mais do que o projeto, existe a comunidade”

Gabriel e sua família. Foto: Arquivo pessoal
Gabriel e sua família. Foto: Arquivo pessoal

Ao longo da infância e adolescência, Gabriel precisou convencer a mãe sobre a importância que a dança tinha em sua vida – e até para isso os laços com a comunidade escolar foram determinantes. Professores, alunos e pais de outras crianças passaram a chamá-la para reuniões, tentando abrir seus olhos para o talento do menino.

Quando Gabriel já estava quase no Ensino Médio, começou a ser trabalhada a possibilidade de ele se profissionalizar e ir para outros estados e países. “Os professores identificaram aqueles que não queriam parar, e me ajudaram a conseguir uma bolsa de estudos num estúdio particular.” Em 2009, ele ganhou o primeiro lugar como solista na edição do festival Porto Alegre em Dança daquele ano. Isso lhe garantiu visibilidade até ser convidado para uma audição para técnicos do ballet russo Bolshoi e para fazer parte do Conservatório de Dança do Rio de Janeiro.

Mas, sem o apoio do Ana Íris, nada disso teria acontecido. Foram rifas, lanches, chás e outros eventos organizados para arrecadar dinheiro para as passagens. Além disso, os ex-professores da escola, assim como toda rede de apoio que Gabriel construiu ao se profissionalizar, se engajaram no processo de tranquilizar sua mãe sobre as mudanças na vida do filho. “Uma semana antes de embarcar para o Rio de Janeiro, ela me disse que eu poderia ir, que iria até me emancipar. Mas só se ela fosse junto para ver como seria minha vida lá”, conta, rindo ao lembrar.

Gabriel descreve a chegada ao conservatório como algo que o fez se sentir pequeno. “Até ali, eu vinha dessa experiência de muitos empenhados por uma só pessoa. Eu carregava isso. Mas tinha outros 500 iguais a mim e eu precisava me superar pra não ficar para trás.” Com pouco dinheiro, Gabriel fez o que podia. Ganhou uma bolsa para permanecer na escola por mais tempo, conseguiu uma vaga como aprendiz, fazia coreografias no Carnaval do Rio. “Tudo que aparecia”, conta. Depois de quatro anos no Conservatório, conseguiu entrar Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Um ano depois, integrou uma companhia de dança contemporânea até chegar onde está hoje, na São Paulo Companhia de Dança. “É muito legal olhar para trás e me ver hoje, com 25 anos, realizando o que eu sonhei com 7.”

Desde que saiu do Ana Íris, Gabriel conta ter ouvido de pais que seus filhos estavam no ballet por causa dele. “Não sei o que pensa alguém que tira algo como esse projeto . É difícil sobreviver no Brasil, mas é mais difícil sobreviver sem arte.”

De aluna a professora

Depois que Angela encerrou sua carreira como educadora, Stephanie Cardoso foi quem assumiu a demanda dos alunos. Porém, em um contexto diferente.

Stephanie foi uma das primeiras alunas do projeto de Angela. E se apresentou até o último espetáculo da professora. Ela diz se lembrar de Angela como uma professora rígida. “Mas isso vinha do cuidado com a técnica e com a qualidade. Por isso precisavam abrir lista de espera”, recorda. Stephanie reconhece o que seus professores fizeram com uma estrutura limitada. “Eu cresci dentro desse universo e não seria quem sou hoje sem isso.” Formada no Ensino Médio, Stephanie entrou no curso de Dança da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Depois de formada, foi contratada como educadora social pela Fundação de Educação e Cultura do Sport Club Internacional (FECI) que, coincidentemente, é uma das organizações parceiras da Smed (Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre) para atendimento aos alunos. Stephanie explica que o projeto atua ligando profissionais de diversas áreas pedagógicas aos turnos integrais das escolas. Angela, no entanto, era professora contratada pelo município. Com a aposentadoria dela, a escola se reuniu com Stephanie e decidiu abrir a vaga que pôde ser preenchida por um profissional da FECI. Stephanie encaminhou seu currículo e, junto de uma outra colega, começou a ministrar as aulas de dança.

Porém, sem a presença de Angela e com novas demandas – em 2017, o prefeito Nelson Marchezan Júnior (PSDB) aprovou uma série de medidas que impactaram na rotina escolar -, o projeto foi sendo deixado de lado aos poucos. “A escola tinha perdido sua figura principal. A organização das turmas mudou, muito do nosso tempo acabou sendo desviado para que cuidássemos das refeições e dos descansos das crianças.”

Ela afirma que existia um diálogo com a direção e que eles estavam abertos a ouvir as demandas dos professores para conciliar com o feedback dos alunos e as exigências da Smed. “O projeto, como ele era, mudava a vida de muita gente. Do jeito que passou a ser, não mudava a vida de mais ninguém. E isso me doía muito”, enfatiza Stephanie.

Em conversas com a administração e a coordenadora da escola, o que havia ficado claro para a professora era que, em 2018, haveria espaço para mudanças. Stephanie já vinha preparando suas estratégias para convencer a direção do que achava que deveria ser alterado na grade de horários. Porém, para sua surpresa, antes do ano letivo começar foi avisada de que o projeto não continuaria.

Segundo ela, a coordenadora responsável pelos projetos teve seu cargo extinto. Sem a sua presença, ficou mais complicado para a direção manter as atividades. Em nota, a Smed afirma que não há uma determinação formal para o encerramento dos projetos nas escolas municipais. “As funções de coordenador de projetos e de coordenador cultural foram incorporadas às funções dos supervisores pedagógicos, a fim de fortalecer a equipe pedagógica da escola – para isso, foram feitos ajustes na quantidade de horas e no número de profissionais com essa função dentro da escola. Portanto não há relação da função com os projetos”, declara a secretaria.

No entanto, Stephanie aponta que, sem alguém que coordenasse as atividades, não haveria diálogo entre os alunos, os professores, a direção e, em última instância, a secretaria. “A intenção de enfraquecer está no ato de mudá-la de cargo”, diz. Segundo a Smed, a partir de 2018 as atividades e projetos passaram a contemplar quatro eixos de aprendizagem: letramento, numeramento, iniciação científica e educação do sensível (artes e esportes). Assim, os projetos de dança correspondem ao quarto eixo, cabendo à direção organizar as aulas.

Stephanie conta que o estúdio construído pela comunidade já foi transformado em sala de aula. Além disso, os figurinos estão em um depósito. Para a professora, as mudanças da organização de horários pela Prefeitura, aliadas à ausência da coordenadora e à falta de diálogo com os professores, resultou em uma perda muito grande para a comunidade. “É muito frustrante. Não desenvolvi o trabalho que eu queria ou que os alunos e, até mesmo a Angela, mereciam”, desabafa.

Na semana em que deu entrevista ao Sul21, Angela visitou a escola. Chateada, não quis ser vista pelos alunos. “Se desse, eu voltava. Mas não dá. Nesse contexto todo, nem adianta.”


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