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2 de fevereiro de 2019
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19:24

Para além dos estereótipos: homens trans e a busca por uma masculinidade não-tóxica

Dentro da sigla LGBT, homens trans ainda são invisibilizados. Foto: HTA/ Facebook
Dentro da sigla LGBT, homens trans ainda são invisibilizados. Foto: HTA/ Facebook

Débora Fogliatto

A grande maioria das narrativas acerca de pessoas transexuais gira em torno das modificações corporais feitas por essa população, com foco especial na cirurgia de redesignação sexual. Essas alterações, porém, não são o que definem alguém como trans e, para muitos dentro desta comunidade, são menos importantes diante de outras questões relacionadas ao seu gênero.

As vivências de homens trans – ou seja, pessoas que eram lidas pela sociedade como mulheres e em certo momento da vida transicionaram para uma identidade masculina – são em muitos aspectos diferentes daquelas de mulheres trans e travestis. Há uma questão prática, que é a dificuldade de se fazer uma cirurgia de transgenitalização para criar um pênis, e há os questionamentos acerca das próprias definições do que define um homem e uma mulher na sociedade.

“Tem uma coisa social de que as pessoas associam homem e mulher com genital. Então associam mulher trans com alguém que quer ‘tirar’ um pênis e fazer uma vagina. Isso cria um efeito de que as pessoas não imaginam que existam homens trans. Ou o que se ouve é que homens trans jamais vão ser homens, porque nunca vão poder ter um pênis”, avalia Eric Seger, personal trainer, estudante de pós-graduação em Educação e ativista do Homens Trans em Ação (HTA).

Um dos pioneiros a lutar pela inclusão do nome social e dar visibilidade às pautas trans dentro da universidade, Eric menciona que os homens já quebraram diversas barreiras, mas ainda não são respeitados e reconhecidos pela população em geral. “Para os homens trans ainda é muito difícil ser ouvido de uma maneira séria, de uma maneira que leva em consideração o que temos a falar. A não ser que se negocie um pouco essa posição. Às vezes são considerados inferiores, menores, menos importantes, a não ser que negocie e use tua passabilidade, o que te coloca em outra posição”, aponta.

A palavra “passabilidade”, nesse contexto, é usada quando se fala do quanto é possível perceber que uma pessoa é trans ou não. Muitos homens trans, principalmente quando têm barba e não têm seios, não são identificados como trans pela sociedade, que não percebe diferenças entre eles e os homens cissexuais (aqueles que não são trans). Em geral, as pessoas trans almejam ter o que chamam de uma “boa passabilidade”, ou seja, ter uma aparência de acordo com o que se espera de determinado gênero, masculino ou feminino.

A grande maioria das narrativas acerca de pessoas transexuais gira em torno das modificações corporais feitas por essa população, com foco especial na cirurgia de redesignação sexual. Essas alterações, porém, não são o que definem alguém como trans e, para muitos dentro desta comunidade, são menos importantes diante de outras questões relacionadas ao seu gênero.

As vivências de homens trans – ou seja, pessoas que eram lidas pela sociedade como mulheres e em certo momento da vida transicionaram para uma identidade masculina – são em muitos aspectos diferentes daquelas de mulheres trans e travestis. Há uma questão prática, que é a dificuldade de se fazer uma cirurgia de transgenitalização para criar um pênis, e há os questionamentos acerca das próprias definições do que define um homem e uma mulher na sociedade.

“Tem uma coisa social de que as pessoas associam homem e mulher com genital. Então associam mulher trans com alguém que quer ‘tirar’ um pênis e fazer uma vagina. Isso cria um efeito de que as pessoas não imaginam que existam homens trans. Ou o que se ouve é que homens trans jamais vão ser homens, porque nunca vão poder ter um pênis”, avalia Eric Seger, personal trainer, estudante de pós-graduação em Educação e ativista do Homens Trans em Ação (HTA).

Um dos pioneiros a lutar pela inclusão do nome social e dar visibilidade às pautas trans dentro da universidade, Eric menciona que os homens já quebraram diversas barreiras, mas ainda não são respeitados e reconhecidos pela população em geral. “Para os homens trans ainda é muito difícil ser ouvido de uma maneira séria, de uma maneira que leva em consideração o que temos a falar. A não ser que se negocie um pouco essa posição. Às vezes são considerados inferiores, menores, menos importantes, a não ser que negocie e use tua passabilidade, o que te coloca em outra posição”, aponta.

A palavra “passabilidade”, nesse contexto, é usada quando se fala do quanto é possível perceber que uma pessoa é trans ou não. Muitos homens trans, principalmente quando têm barba e não têm seios, não são identificados como trans pela sociedade, que não percebe diferenças entre eles e os homens cissexuais (aqueles que não são trans). Em geral, as pessoas trans almejam ter o que chamam de uma “boa passabilidade”, ou seja, ter uma aparência de acordo com o que se espera de determinado gênero, masculino ou feminino.

Eric Seger é personal trainer e estuda pós em educação. Foto: Gustavo Diehl/ UFRGS

Eric, que é assumido há anos, avalia ter passabilidade diante das pessoas que não o conhecem, mesmo sendo conhecido como trans dentro do movimento LGBT por seu ativismo. “Eu tive alguns anos em que as pessoas me tratavam com uma certa ambiguidade, não tinham certeza [sobre o meu gênero], isso gerava um certo tratamento. Mas quando não sabem que eu sou trans e me tratam atualmente como homem, sem questionamento, é diferente”, pondera, mencionando que a partir daí, ganha um ‘acesso diferente’ a certos ambientes.

O estudante de História e ativista trans Caio Tedesco explica que as identidades de gênero em geral são construídas a partir de perspectivas psicológicas, históricas e sociais. “Minha posição vem nesse olhar bem de historiador, eu compreendo que para ser trans tu não precisa tomar hormônio, nem fazer nenhuma modificação no corpo. Quem é sabe que é e cada corpo é um corpo, temos liberdade para fazer o que quiser”, explica ele, que é professor no cursinho pré-vestibular TransEnem, voltado para pessoas trans.

Isso, porém, não significa que ele condene quem seja adepto a tais práticas – pelo contrário, ele próprio já iniciou o tratamento com testosterona. “Não acho que isso é errado. Eu só acho que focar muito nisso como se isso nos definisse é errado. Não é isso que define uma pessoa trans, o que define é que a identidade de gênero dela não está de acordo com o que socialmente foi designado para aquele corpo”, resume.

Em geral, a pessoa que se assume trans troca seu nome e passa a fazer um tratamento com hormônios – no caso dos homens trans, a testosterona – para adquirir característica associadas ao gênero masculino. Caio se assumiu para a família há cerca de um ano e começou a tomar testosterona há três meses. Para ele, embora as modificações corporais não sejam determinantes, trata-se de uma questão de deixar de “fingir ser outra pessoa”.

“Eu tinha alguns receios para começar a tomar, até porque eu não tenho uma relação ruim com feminilidade, pelo contrário. Então precisei de um bom tempo para pensar sobre o meu corpo, porque nunca pensei muito sobre ele de fato. Acho que até por ter tido uma criação espírita, eu sempre tive muito para mim que eu sou o meu espírito, minha mente, e isso é apenas um instrumento”, conta o estudante de História.

Caio é estudante de História e adiou a formatura devido à demora em seus documentos. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Ele decidiu passar por esse processo quando começou a perceber que tinha o direito de se preocupar com o próprio corpo. Como explica Caio, com a testosterona, a gordura corporal passa a ser redistribuída, além de surgirem mais pelos e a voz engrossar. “Dizem que muda o humor, eu não sei. Acho que o meu humor mudou, mas eu acho que ele não mudou por uma questão hormonal, mas sim porque estou me sentindo melhor comigo, muito mais seguro”, afirma.

Ele já trocou seu nome em quase todos os documentos, embora devido a um atraso na retificação de sua certidão de nascimento, tenha precisado atrasar a formatura da universidade. Caio é de Taquari e o cartório local inicialmente disse não ter recebido sua solicitação para fazer a mudança. “Era para eu estar com a minha certidão de nascimento em agosto e ela ficou pronta só em outubro. E daí eu perdi o prazo para solicitar a colação de grau na UFRGS. Mas todo o resto foi rápido, CPF, RG”, afirma.

Quanto à universidade, ele relata ter sido respeitado pelos professores e colegas de curso, que o tratam pelo nome e pronome corretos. O único entrave temporário foi o uso do banheiro – uma pauta recorrente no movimento trans. Como muitas pessoas transexuais, ao assumir sua identidade masculina, Caio pretendia passar a usar o banheiro masculino, mas sabia que poderia ser encarado com estranhamento justamente por ainda não ter a passabilidade do gênero. Ele considera ter tido muita sorte em termos de acolhimento pela faculdade, pois alguns meses depois dele iniciar o processo, foi criado um banheiro neutro no prédio onde estuda.

Foto: Joana Berwanger/Sul21

Caio conta que criou coragem para se assumir trans quando conversou pelo Facebook com João Nery, homem trans mais conhecido no Brasil que faleceu ano passado. Para ele, a representatividade é um dos fatores mais importantes para que mais transexuais possam perceber e aceitar as suas identidades. “Eu acho que o João Nery fez um grande trabalho de dar visibilidade às nossas vidas e isso impulsiona mais homens trans a se assumirem, se aceitarem”, aponta, mencionando também a novela “A Força do Querer”, que teve um personagem trans, como um exemplo positivo.

Mesmo que ainda sejam o setor mais invisibilizado dentro da sigla LGBT, os homens trans vêm ganhando espaço dentro e fora do movimento. Para Eric, essa visibilidade vem também justamente com a organização deles próprios. Ele lembra que, no início, as próprias mulheres trans e travestis os viam como uma “novidade”. “As meninas mais antigas, as falas delas quase nunca incluíam homens trans, agora que isso está começando a ser discutido, o que é maravilhoso”, destaca Phelipe Caetano, estudante de Engenharia Metalúrgica e ativista dos movimentos trans e negro.

Phelipe chama atenção para outra dificuldade pela qual as pessoas trans passam: o acesso à saúde. Ele relata, por exemplo, que ao preencher uma ficha do Sistema Único de Saúde (SUS) se deparou com uma questão acerca de seu sexo e ficou na dúvida sobre o que deveria responder. “Se eu colocar sexo masculino eles vão saber com o que vão se deparar? Depois o sistema trava quando precisa marcar uma consulta com um ginecologista”, menciona.

Phelipe menciona falta de preparo do sistema de saúde. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Quando se assumiu trans, em 2016, Phelipe buscou o tratamento hormonal pelo SUS, através do Protig – Programa de Identidade Gênero do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Embora comemore que as pessoas trans tenham a possibilidade de ter acesso a esse serviço, ele elenca algumas questões que considera problemáticas sobre o tratamento. “Eles ligam identidade de gênero com infância, brinquedo, que roupa usava, inclusive em certo momento tem que levar um familiar que conviveu com a pessoa na infância. Mas muitas pessoas trans foram obrigadas a romper seus laços familiares”, aponta.

Tanto ele quanto Caio se consideram sortudos nesse sentido. As mães de ambos – seus pais são falecidos – os apoiam e aceitam suas identidades. “Para minha família, as coisas foram de uma maneira tranquila, natural. Até digo que me assumi três vezes. Com 15 anos, disse ‘mãe, acho que sou bissexual’, com 20 ‘mãe, eu sou lésbica’ e com 23, ‘mãe, lembra tudo que eu disse antes? Esquece’”, conta Caio.

“A gente já passou por tantas coisas pesadas, e eu já me identificava como uma pessoa não-hétero. Então quando eu falei que era trans, ela disse ‘tá, vamos lá’. O medo dela é a violência que eu posso passar, ela me disse que me amaria da forma que fosse, mas o medo dela é na rua”, pondera Phelipe. Além de sua mãe, ele diz não ter precisado se assumir para muitas pessoas, até por ter vindo também do interior – ele é natural de Carazinho – e por não ter tantos amigos. “Vim do interior e aquilo que se fala da solidão da mulher negra é algo bem real. Sempre fui mais na minha, então tinha mesmo que conversar era com a minha mãe”, conta.

Quando se descobriu trans, Phelipe já estava envolvido no movimento negro, dentro do qual conheceu pessoas com experiências diversas, entre elas um homem trans. “Quando eu comecei a estudar o assunto, ler, ver vídeos, começava a me ver naqueles relatos. E eu estava ignorando esses fatos, eu sempre sofri preconceito por ser muito masculino. A voz já era grossa, eu botava roupas femininas e afinava a voz para me adequar, para ninguém falar nada. Para mim eu pude parar de fazer um teatro e ser eu mesmo. Não preciso mais fingir, posso falar com a minha própria voz, usar o que eu quiser”, descreve.

“Para mim eu pude parar de fazer um teatro e ser eu mesmo”, diz Phelipe. Foto: Joana Berwanger/Sul21

A experiência de Phelipe ao se tornar alguém com uma passabilidade masculina é distinta daquelas de homens trans brancos, os quais em geral adquirem privilégios quando passam a ser entendidos como homens pela sociedade. “Eu comecei a perceber que era lido como homem quando a polícia começou a parar do meu lado, quando as pessoas começaram a esconder a bolsa no ônibus, a atravessar a rua, quando comecei a ser visto como uma ameaça”, relata, afirmando que passou por opressões diferentes quando era visto como uma mulher negra.

Ele lamenta que haja pouco espaço para a discussão de raça dentro do movimento LGBT e vice-versa, embora algumas iniciativas já estejam surgindo. “Estamos formando grupos para discutir masculinidades que envolvem meninos trans, meninos cis, meninos cis gays também. Tem locais que nos dão espaço para fazer esse discurso, mas não é sempre. Ao mesmo tempo, eu não acho que a masculinidade seja exclusiva de homem e mulher, assim como a genitália”, reflete.

Eric, Caio e Phelipe são homens, mas dispensam ter certas características relacionadas ao gênero masculino, como uma propensão à violência e dominação. Até porque, como aponta Caio, por não estarem dentro do considerado padrão pela sociedade, também sofrem com violências de gênero. Phelipe menciona que a própria transfobia está relacionada à questão de gênero em uma sociedade que define que “tudo que for próximo do feminino é colocado de lado”.

“Existe um grande número de homens trans que debatem muito sobre gênero e estudam, seja academicamente ou auto-didata, sobre gênero. Afinal de contas, o gênero com o qual a gente se identifica é o agente de violências. E eu vejo que tem bastante espaço para essa discussão e para não ficar preso no lance de como tem que ser um homem, se tem que gostar de mulher, jogar futebol”, afirma Caio.

“Já cansei de discutir em grupo de WhatsApp. Por exemplo um cara trans postar algo tri machista num grupo, daí vai um monte de outros caras e falam que isso é machismo, ‘tu nunca sofreu machismo?’, essas coisas. Então tem abertura sim, tem espaço, principalmente os homens trans não-héteros costumam debater mais sobre isso, ou que não se identifiquem tanto com uma masculinidade hegemônica ou não sintam necessidade de afirmar essa masculinidade hegemônica para ser reconhecido enquanto homem”, relata.

Ao mesmo tempo, ao conviver com homens trans que não estão inseridos nessa discussão acadêmica e militante, Phelipe percebeu que muitas vezes eles não têm a oportunidade de fugirem de certos padrões. “Eles usam a masculinidade tóxica para defesa, para não sofrerem violências em certos ambientes. O padrão de sociedade que eles têm é bem machista, sexista, e às vezes reproduzir isso é a única opção que ele tem para continuar a vida lá fora. Há esse padrão de masculinidade e eu pude perceber que não preciso ser assim. É um privilégio estar em ambientes em que eu pude me questionar e hoje assumir uma postura diferente”, destaca.


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