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9 de abril de 2017
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16:24

Como um cursinho popular tem ajudado trans e travestis chegar à universidade

Por
Sul 21
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Primeira turma do TransEnem de Porto Alegre | Foto: TransEnemPOA/Facebook

Fernanda Canofre

Dia 20 de janeiro de 2017. Uma segunda-feira de sol e muito calor em Porto Alegre. Tayze acordou sentindo que seria um dia que ela marcaria no calendário para sempre. Desde cedo o celular tocava com mensagens no WhatsApp do grupo de professores e colegas do cursinho com a mesma expectativa que ela. Nervosa, não aguentou ficar em casa. Chamou o marido e saiu a pedalar pelo Parque da Redenção. Decidiu que não iria ver as notícias até mais tarde, quando estivesse de novo em casa, sozinha. Porém, quando chegou na casa da sogra, para uma visita rápida, o celular voltou a tocar. No visor, o nome de uma de suas melhores amigas. Resolveu atender. “Ela disse: parabéns, tu passou, está aprovada para o primeiro semestre de Museologia, que tu tanto queria. Eu comecei a chorar, foi uma emoção enorme!”, conta ela sorrindo ao relembrar a situação outra vez.

Tayze Duarte foi a primeira aluna do TransEnem a ser aprovada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A primeira aluna a conquistar uma vaga em uma universidade pública com ajuda do grupo. A iniciativa, que surgiu em Belo Horizonte em 2015 e se espalhou pelo país com grupos independentes em outras versões, chegou a Porto Alegre no ano passado. O projeto é um cursinho popular e gratuito voltado à população de pessoas trans e travestis que queiram garantir uma vaga no ensino superior.

Tayze foi a primeira aluna do TransEnem da capital a conquistar vaga em uma universidade pública | Foto: TransEnemPOA/Facebook

“Foi mágico pra mim. A minha experiência como bixo, ver meu nome no listão, depois na internet e as pessoas me parabenizando, foi uma das melhores experiências que tive na vida. Foi muito importante pra minha caminhada como acadêmica, como pessoa e como pessoa trans. Para as minhas várias definições. Sou uma mulher de várias definições e ao mesmo tempo nenhuma”, diz Tayze.

A primeira turma do TransEnem POA recebeu 15 inscrições. Só três estudantes chegaram ao final do ano. A realidade que a equipe de professores e organizadores – todos voluntários no programa – já imaginavam que seria difícil, se revelou ainda mais dura com a alta taxa de evasão. Não existem pesquisas oficiais ou censo sobre a população de pessoas trans e travestis no Brasil. Tampouco existem dados específicos sobre sua escolaridade média, a maioria dos dados existentes sobre trans se restringe às palavras “violência” e “saúde”. Segundo um levantamento realizado por voluntárias do TransEnem gaúcho, que cruza dados de pedidos de nome social e outras variantes disponibilizadas pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), apenas 23% das pessoas trans no Brasil (com registro de carteira social) concluiu o Ensino Médio.

“A gente está lidando com um público que tem vários obstáculos no cotidiano, enfim, não diz respeito apenas à situação escolar. Por isso, nosso objetivo é preparar para o Enem, dar inclusão em um espaço específico, mas por outro lado também ser um espaço acolhedor, de socialização, onde essas pessoas possam se descobrir capazes e interagir sem ter aquela questão da violência”, explica Raquel Basilone, professora de Sociologia no cursinho desde a primeira turma.

Os motivos para evasão escolar de pessoas trans podem ser dos mais variados. A maioria das histórias têm em comum a expulsão de casa pela família e a experiência de ambientes de violência e preconceito que as levam a se afastar. É assim que muitas vezes viram uma população invisível, sem acesso às mesmas oportunidades ou restritas aos locais onde o estereótipo dita que estejam. Não é a toa que o Brasil lidera o ranking mundial de mortes de pessoas trans e travestis. O México, segundo colocado, registra quatro vezes menos mortes que nós, segundo a ONG europeia Transgender Europe. E a maioria das mortes aqui continuam sendo subnotificadas.

Tayze, que passou a se identificar como mulher aos 15 anos, teve uma vida que é exceção na biografia de pessoas trans. Natural de Jaguarão, onde morou por quase toda a vida, além de ter tido apoio da mãe desde sempre, ela conseguiu concluir o Ensino Médio dentro do tempo normal e não estava afastada dos estudos há muito tempo quando viu a oportunidade de tentar uma vaga na universidade com o TransEnem. Ainda assim, ela lembra dos tempos de escola como algo “bastante desagradável”. “Eu fiz a transição no Ensino Médio, numa escola de cidade do interior, as pessoas ainda com aquela mente um pouco fechada. Eu tive problemas para usar o banheiro, tive problemas para ter meu nome social na chamada”, conta.

As voluntárias Débora Medina e Raquel Basilone estão desde o início com o curso | Foto: Maia Rubim/Sul21

Com o nome retificado perante a Justiça e matriculada em uma universidade que respeita o nome social, como é o caso da UFRGS, Tayze diz não ter tido problemas desde que começou o curso, há um mês. Além da UFRGS, FURG (Federal do Rio Grande), Unipampa (Universidade Federal do Pampa), UFSM (Universidade Federal de Santa Maria), UFPEL (Universidade Federal de Pelotas), UFCSPA (Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre) e a UFFS (Universidade Federal Fronteira Sul) também regulamentaram a aceitação do nome social. A UERGS (Universidade Estadual do Rio Grande do Sul) ainda estaria discutindo internamente a questão.

Neutro E

O respeito à identidade de gênero de quem frequenta o TransEnem é lei no curso e também um desafio de costura delicada. A maioria dos estudantes são mulheres trans, em seguida vem homens trans e três estudantes não-binários (que não se identificam como nenhum dos dois gêneros cis). A faixa etária da nova turma – que tem 30 inscritos, o dobro da anterior – varia entre 18 e 40 anos. Para que ninguém se sentisse deixado de fora em sala de aula, professores e organizadores tiveram de criar uma linguagem própria.

Turma do TransEnem BH, o primeiro cursinho do gênero no Brasil | Foto: Léo Rodrigues/ Agência Brasil

Logo de início perceberam que o “x”, utilizado na internet para designar um gênero neutro, não funcionaria na hora de falar e poderia prejudicar leituras em certos momentos. A solução encontrada foi substituir “as” e “os” pela letra “e”. Durante toda a entrevista para esta reportagem, por exemplo, as duas professoras que conversaram com o Sul21 usaram a palavra “alunes”, quando se referiam ao público do cursinho, e “funcionáries”, quando se referiam aos servidores do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS), local onde as aulas acontecem.

“A gente tem um modo de falar que, geralmente, privilegia o masculino como neutro. Isso é uma maneira de estabelecer um tipo de dominação pela linguagem, pelo falar. Embora esse ‘e’ neutro não exista ainda, a gente quer criar o costume de falar para que, então, posteriormente, ele possa ser incluído ali”, explica Raquel. A colega dela, Débora Medina, estudante de Ciências Sociais, complementa: “Generalizar um grupo de pessoas pelo masculino, de forma geral, é o que é aceito. Mas, por exemplo, eu vou me referir a alguém, eu não me refiro como ele e ela, eu me refiro a essa pessoa. Quando a gente não tem mais alternativas de construção, que a gente evite a flexão de gênero na palavra. A gente busca outras alternativas, uma delas é esse ‘e’ no final”.

Ainda assim, Raquel ressalta que, em muitos momentos, ainda faz questão de usar os gêneros masculino e feminino se referindo a estudantes. Para muitos e muitas, ter alguém se referindo a eles e elas pelo gênero que esperaram muitas vezes uma vida para se identificar publicamente é uma conquista.

Além da linguagem, outra preocupação das voluntárias foi fazer com que “xs alunes” se sentissem em um ambiente seguro e confortável. Antes de o cursinho começar, a organização do TransEnem se reuniu com funcionários e funcionárias do Instituto Federal para explicar sobre as formas de lidar e de se dirigir à população trans. “O espaço não fica restrito ao tempo em que esses alunes estão em aula. Essas pessoas são bem recebidas a qualquer momento que vierem aqui, isso é deixado evidente pela organização do IF”, diz Débora.

As recomendações para que não tenham que se deparar com episódios de preconceito, são também uma forma de convencer estudantes a voltar todos os dias, Débora explica. “Para a gente fazer a sala de aula acontecer e para a gente ser esse ambiente acolhedor, a gente continua com essas questões de que no meio do caminho da casa da pessoa até o IF pode acontecer alguma coisa com essa pessoa. Ela está constantemente vulnerabilizada”.

Tayze quer mostrar que universidade é espaço dela | Foto: Arquivo Pessoal

O caminho até a sala de aula

Em seu segundo ano em atividade, o TransEnem busca agora garantir a quem o frequenta isenção na passagem de ônibus para garantir que a frequência se mantenha. “Como uma pessoa vai vir à sala de aula se ela não tem nenhuma perspectiva de remuneração, se ela não tem dinheiro para transporte?”, questiona Débora.

Segundo as voluntárias do cursinho, no ano passado o grupo já teve dificuldades para conseguir que a EPTC (Empresa Pública de Transporte e Coletivos) aprovasse a concessão de passe estudantil a quem frequenta o TransEnem. Enquanto o curso Dandara, com recorte na cultura e população negra, que também acontece dentro do IFRS, conseguiu a liberação do TRI estudantil para seus alunos imediatamente, o TransEnem teve de esperar um mês e ainda precisou deslocar o diretor do Instituto pessoalmente, até a sede da empresa, para que se efetivasse.

Ainda assim, alunes têm que bancar passagens e o cartão do TRI, que custa cerca de R$22, do próprio bolso. Para muitos, isso já dificulta o acesso, o que leva à evasão. Sem acordo com a gestão de José Fortunati (PDT) para a questão, no entanto, elas contam já terem sido procuradas pelo Departamento de Diversidade Sexual do governo de Nelson Marchezan Jr. (PSDB) para encontrar maneiras de viabilizar o auxílio para os estudantes. O setor responsável por direitos e pela pauta LGBTI dentro da prefeitura municipal foi rebaixado de secretaria para departamento na atual gestão. As professoras do TransEnem preferiram não entrar em detalhes sobre o que estaria sendo sugerido por eles para o pagamento dos cartões de transporte.

Em meio a ajustes e planos por vir, fato é que se falar de pessoas trans e travestis nas universidades seria “falar de ausências”, como apontou a arquiteta Magô Tonhon, em reportagem do Brasil de Fato, isso começa finalmente a mudar. Segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), desde que o Enem abriu a possibilidade de usar o nome social, em 2014, as solicitações passaram de 102 no primeiro ano, para 278 em 2015 e saltaram para 842 no ano passado. O Rio Grande do Sul registrou 34 solicitações, enquanto São Paulo teve 273.

Amiga de Tayze, Sthefany foi uma das solicitantes. Trabalhando de cabeleireira desde os 15 anos, quando passou a se identificar como uma mulher trans, ela resolveu ir atrás do sonho de cursar Enfermagem no ano passado, quando descobriu o TransEnem. “Quando conheci o projeto, para mim foi interessante porque foi um auxílio bem mais complementar, no caso. Me fez conhecer muitas coisas que eu não aprendi na escola, que hoje na faculdade eu consigo entender melhor”, diz ela. Sthefany também foi aprovada no vestibular e está fazendo o curso na Fadergs (Faculdade de Desenvolvimento do RS).

Já Tayze, hoje acadêmica do primeiro semestre de Museologia da UFRGS, se vê revertendo um discurso que sempre teve de ouvir. “Pela questão da minha vivência eu fui adiando [voltar a estudar], porque sempre foi me imposto que esse não era um espaço para mim. Falam para muitas meninas trans que esse não é um espaço para elas, as próprias trans falam umas para as outras que não vale a pena e que o espaço não é delas”, diz ela. “Mas é sim. O que mudou quando eu achei o curso foi que ali eu vi que realmente é possível, tudo é possível”.


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