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23 de outubro de 2018
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11:27

Após fim de semana com 3 mortes, ciclistas pedem respeito à distância de 1,5 m entre carro e bicicleta

Por
Sul 21
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Após fim de semana com 3 mortes, ciclistas pedem respeito à distância de 1,5 m entre carro e bicicleta
Após fim de semana com 3 mortes, ciclistas pedem respeito à distância de 1,5 m entre carro e bicicleta
Em 2015, ciclistas instalaram ghost bike após a morte de do arquiteto Joel Fagundes, em local próximo ao atropelamento| Foto: Alina Souza/Sul21

Débora Fogliatto

Cuidadosa no trânsito, zelosa, preocupada com a segurança. Essas são algumas das características atribuídas por quem a conhecia à ciclista Débora Cristiane Saliba, morta após um carro colidir com sua bicicleta e a jogar na calçada no último sábado (20), na zona sul de Porto Alegre. De acordo com imagens do circuito de segurança, percebe-se que ela estava saindo da via e subindo na calçada no momento em que o carro também sobe, com as duas rodas do lado direito. Após jogá-la contra um poste, o motorista não para para prestar socorro, fugindo do local.

Nas 24 horas seguintes após a morte de Débora, dois homens também foram mortos enquanto andavam de bicicleta, um em Sapucaia do Sul e outro em Taquara, totalizando três mortes no mesmo final de semana na região metropolitana. A polícia investiga a morte de Débora – que era conhecida no meio da bike como Saliba –, enquanto, de acordo com a Zero Hora, o dono do veículo que a matou chegou a dizer que seu carro havia sido furtado antes do episódio. Depois, ele voltou atrás e se apresentou à polícia alegando mal-estar.

“Não foi acidente, e nós sabemos que são raríssimos os casos [de mortes de ciclistas] em que realmente podemos considerar acidente”, lamenta a cicloativista Tássia Furtado, que trabalha com bici-entrega. Nas redes sociais, diversos ciclistas também compartilham o vídeo do ocorrido e destacam acreditar que tenha sido proposital, exatamente pelo fato de ser possível enxergar a ciclista e o carro subindo na calçada no momento da colisão.

Tássia  destaca que, muitas vezes, os motoristas pretendem “tirar” a chamada “fina educativa” dos ciclistas, que consiste no carro chegar muito perto da bicicleta em alta velocidade ao ultrapassá-la, para demonstrar seu descontentamento com a presença do ciclista. Nesses casos, em geral, o motorista acredita que a circulação de bicicletas deveria ser restrita a ciclovias, o que é contestado pelos cicloativistas.

“O fato de um ciclista não estar na ciclovia não te dá o direito de tirar a fina dele. A pessoa pode não ter entrado na ciclovia por causa da costura cicloviária, que faz com que a gente entre na via em determinado espaço; ou por perder a entrada da ciclovia; ou por precisar chegar numa numeração que é no meio da via, ou porque vai dobrar à esquerda na próxima rua, são diversos motivos”, aponta Tássia.

Ato de ciclistas em 2014 pedindo respeito no trânsito | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Em Porto Alegre, são menos de 50 km de ciclovias implantadas, muitas delas sem conexão umas com as outras. Quem pedala para se locomover no dia a dia dificilmente fará um caminho em que possa ir por ciclovias o tempo todo. “Às vezes, a ciclofaixa mais atrapalha, porque é meio contramão, o pessoal caminha, é toda aquela bagunça. Elas são importantes, quando eu posso usar eu uso, mas os motoristas são leigos. Podem estar em uma via que não tem nada a ver, não tem ciclovia perto, e eles mandam a gente ir para ciclovia”, relata Janaísa Cardoso, artista visual que pedala diariamente e escritora do blog Bicicletários Imaginários.

A construção das ciclovias e ciclofaixas é uma das determinações do Plano Diretor Cicloviário, aprovado em 2009. “O Plano está prestes a completar dez anos e está jogado de lado, não apenas não sendo implementado como o que foi feito não tem sido cuidado, não tem acontecido manutenção. Ignorar o plano, deixar de criar espaço de segurança, tem uma responsabilidade no que está acontecendo”, avalia Cadu Carvalho, integrante da Mobicidade.

Para ele, a simples existência das leis não é o suficiente. É necessário que se cumpra as já existentes, fortalecendo o que já está determinado inclusive pelo Código de Trânsito. “É preciso que se tenha campanhas de educação que falem da distância de 1,5 m. As campanhas educativas são o caminho mais barato de se lidar com isso”, acredita.

Em março de 2017, em uma campanha conjunta do Detran com grupos de defesa dos direitos do ciclista, foi lançado o “respeitômetro“, que tem como objetivo conscientizar a população sobre a necessidade de se respeitar o artigo 201 do Código de Trânsito Brasileiro, que afirma que o motorista, ao ultrapassar um ciclista, deve reduzir a velocidade e guardar ao menos 1,5 m de distância. Mesmo após a campanha, os motoristas seguem não respeitando a distância, segundo os cicloativistas.

A Federação Gaúcha de Ciclismo se manifestou citando, além de Saliba, as mortes de João Iraceli de Souza, 77 anos, de Taquara, e Nilo Sérgio Medeiros de Almeida, 60 anos, de Sapucaia do Sul. “A FGC realiza a campanha de proteção aos ciclistas em todo o Rio Grande do Sul desde o início de 2017, distribuindo adesivos que orientam o motorista a manter a distância legal de 1,5 metro ao ultrapassar o ciclista, como prevê o Código de Trânsito Brasileiro”, afirma a entidade, que ainda incentiva grupos e associações a somarem-se à campanha na distribuição e produção de adesivos, cobrando do poder público a realização de campanhas de segurança no trânsito e convívio pacífico entre motoristas, ciclistas e pedestres.

Em março do ano passado, campanha do Detran e de ciclistas alertou para distância necessária | Foto: Maia Rubim/Sul21

Além da falta de respeito pela distância mínima e da pressa, o uso de celulares também foi lembrado pelos cicloativistas como causador de colisões no trânsito. Neste mês, o Detran lançou campanha para conscientizar sobre isso, apontando que é a terceira maior causa de “acidentes”. A ação, chamada de “Uma mensagem pode interromper a sua vida”, conta com divulgação nas emissoras de televisão e rádio, internet e outdoors. De acordo com o órgão, foram 54.563 infrações registradas em todo o Estado entre janeiro de setembro de 2018 relacionadas ao uso do telefone móvel.

É necessário também, segundo Cadu, reiterar a chamada “pirâmide do trânsito”, que determina que os veículos maiores devem tomar cuidado com os menores. O pedestre é o integrante mais frágil do trânsito e, portanto, todos devem considerá-lo prioridade, seguido pelo ciclista e pelo motociclista. “O caminho mais fácil é a gente apontar a falta de humanidade do motorista que faz um negócio daqueles e vai embora sem nem parar, como vemos no vídeo da ciclista que morreu aqui em Porto Alegre. É muito revoltante”.

Janaísa também acredita que os motoristas não têm noção de que devem respeitar o menor e cumprir 1,5 m de distância. “Parece que as pessoas não têm esse conhecimento de passar a 1,5 m, não tem essa consciência. É por ignorância mesmo, às vezes, por pensar muito em si, que quer ir rápido, por estar distraído. Mas principalmente porque não tem essa informação clara, podem estar ceifando uma vida se não respeitar essa regra básica”, aponta.

O respeito no trânsito também é o ponto principal destacado por Tássia. “Tem muito acidente entre carros também e tem campanhas sendo feitas, o que a gente pede é o respeito da distância de 1,5m na hora de ultrapassar o ciclista. E a gente vê o desrespeito à vida em diversos momentos no trânsito, não são apenas atropelamentos, mas marcas de uma sociedade que está sendo construída de uma maneira errônea”, afirma.

As duas conheciam Saliba pessoalmente e lembram que a ciclista sempre utilizava todos os equipamentos de segurança previstos no Código de Trânsito, além de de estar de capacete, objeto que não é obrigatório para quem anda de bicicleta. “O obrigatório é retrovisor, campainha, refletivos nas rodas, luzes dianteiras e traseiras. Ela estava com todos esses itens e de capacete e usava camiseta de ciclismo, que tem cores chamativas. Ela estava sendo bem vista, estava correta dentro do código brasileiro”, relata Tássia.

Ciclistas destacam importância de conscientização para o trânsito | Foto: Maia Rubim/Sul21

Janaísa conta que já pedalou várias vezes com Saliba, que vinha da zona sul e a encontrava na região central da cidade para irem a um grupo de pedal no bairro Lindoia. “Ela ia conduzindo esse grupo, sempre super sinalizada, uma guria super preocupada com a segurança no trânsito. A gente nunca ia imaginar que ela fosse ser atingida por um veículo. E com capacete, que nem é obrigatório, com tudo. É horrível”, lamenta, acrescentando que algumas vezes parece, sim, que motoristas querem atingir os ciclistas de propósito. “Às vezes, vemos que eles passam quase batendo e depois riem da nossa cara”, relata.

“Ela não era imprudente, era uma pessoa completamente cuidadosa, zelosa. Ela não teve chance nenhuma, a gente não tem chance nenhuma nesses casos”, resume Tássia. Ela lembra da morte do ciclista Raul Aragão no início deste ano, em Brasília, que foi atropelado por um motorista que estava a 95km/h, em uma via em que o máximo permitido era 60km/h. Alguns meses depois, o responsável pela morte foi condenado por homicídio culposo, ficou dois meses sem poder dirigir e cumpriu penas alternativas.

No local da morte de Saliba será colocada uma ghost bike, uma bicicleta pintada de branco para sinalizar a violência no trânsito. A instalação será feita nesta sexta-feira (26), durante a pedalada da Massa Crítica, que acontece nas últimas sextas-feiras de cada mês, com saída às 19h30 do Largo Zumbi dos Palmares. Inspirados em uma ação internacional, desde 2012 os cicloativistas de Porto Alegre fazem a colocação das ghost bikes nos lugares de mortes de ciclistas. Já são 49 na cidade.

A Massa Crítica, inclusive, foi vítima de um dos mais conhecidos episódios de violência contra ciclistas, ocorrido em 2011, quando o motorista Ricardo Neis avançou contra diversos ciclistas durante um dos encontros do grupo, na Cidade Baixa. O fato foi o estopim para uma série de atos e reivindicações por parte dos ciclistas da cidade por maior respeito e tolerância no trânsito. Após muita pressão por parte dos cicloativistas, cinco anos depois, o motorista foi condenado a 12 anos de prisão.


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