|
25 de março de 2021
|
16:49

Evangélicos progressistas pregam contra o negacionismo e a desigualdade social

Por
Sul 21
[email protected]
Nilza Valéria, da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito (Foto: Arquivo pessoal)

Maurício Thuswohl – Especial para o Sul21

Rio de Janeiro – Em boa parte dos círculos de conversa ou grupos de discussão virtual no Brasil, uma questão é recorrente: como podem os evangélicos brasileiros, que usam tanto as palavras de Jesus Cristo, apoiarem um governo – ou um sistema – que promove fome, miséria e, com a pandemia, doença e morte para os mais fracos e desamparados? Mas, se jogarmos luz sobre o tema e passarmos longe de conclusões simplistas ou preconceituosas no estilo “são ignorantes” ou “são enganados pelo pastor”, o que se observa é que uma expressiva parte das igrejas de denominação protestante e evangélica existentes no país ora por outra cartilha. Na prática, isso significa se contrapor ao discurso dominante e ultraconservador dos telepastores e buscar falar ao coração e à consciência das pessoas, sobretudo aos jovens e às minorias, nas favelas e periferias.

O setor “evangélico progressista” ou “evangélico de esquerda” brasileiro é vasto e engloba igrejas inclusivas, grupos teológicos, movimentos identitários e núcleos ligados a partidos políticos, entre outros. No atual momento do país, quando atingimos o macabro marco das três mil mortes diárias por covid-19, as vozes vindas desse setor ecoam com força o repúdio tanto às políticas adotadas pelo governo de Jair Bolsonaro durante a pandemia quanto à política econômica comandada pelo ministro Paulo Guedes e que tem provocado o aumento da exclusão e da fome no Brasil.

Para os progressistas, se diferenciar da imagem predominante entre as denominações evangélicas brasileiras, em sua maioria ligadas à Teologia da Prosperidade, é uma batalha diária que se trava nos campos teológico, político e social. No campo oposto estão gigantes como, por exemplo, a Igreja Universal do Reino de Deus, comandada por Edir Macedo, e a Assembleia de Deus Vitória em Cristo, comandada por Silas Malafaia, ambas situadas na base de sustentação do governo de Bolsonaro e Guedes.

“A igreja evangélica no Brasil não é uma única representação, não tem uma única liderança e, diferentemente da igreja católica, não tem uma hierarquia institucionalizada. Existem diversas denominações e elas falam por si”, diz Nilza Valéria, coordenadora nacional da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, entidade criada a partir de um manifesto assinado por evangélicos em defesa da legalidade democrática assim que se iniciou o processo de impeachment de Dilma Rousseff. Na época, ser comparado ao então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, “incomodava muito”, conta Nilza: “Queríamos mostrar à sociedade que havia evangélicos que se opunham ao golpe”, conta.

“Nós nos tornamos parte mais do problema do que da solução”, reconhece Ed René Kivitz, que é teólogo, pastor da Igreja Batista e, em tempos de influência digital, talvez a maior figura pública do momento entre os evangélicos progressistas: “Não resta dúvida de que, categorizados socialmente como igreja evangélica, somos uma grande força conservadora. Muitos falam mal da igreja evangélica, mas talvez estejam condicionados pela imagem, a mensagem e a identidade que a ponta do iceberg mostra. A gente acha que a igreja evangélica no Brasil é essa realidade que está presente hegemonicamente na mídia de massa”, lamenta.

Ed René Kivitz, teólogo e pastor da Igreja Batista (Reprodução/Youtube)

“Mortes evitáveis”

Ser um evangélico progressista ou, simplesmente, um verdadeiro cristão, afirma Kivitz, significa optar pelos pobres, assim como Jesus fez e ensinou. Essa missão, diz, fica ainda mais clara em tempos de pandemia: “O nosso testemunho é o do Cristo crucificado. Nós somos identificados com os crucificados, com os fracos. Nós somos chamados à solidariedade para com os que morrem”.

Isso não significa esquecer de agradecer pelos que resistiram ao coronavírus: “Claro que celebramos e agradecemos a Deus pela vida daqueles que foram preservados no meio de uma pandemia, que se recuperaram e sobreviveram à covid-19. Mas, precisamos nos ajoelhar diante de Deus em solidariedade aos crucificados. Estamos identificados com aqueles que morrem, aqueles que na sua fraqueza não têm voz nem têm vez. Aqueles que sucumbiram, especialmente em um tempo de mortes evitáveis. A morte é inexorável à condição humana, mas não podemos tratar com naturalidade a morte evitável”, diz Kivitz.

A crítica ao atual governo é reforçada pela Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito: “A gente vê e denuncia o tempo todo as violações que são cometidas pelo presidente e pelo primeiro escalão do governo. A gente vem denunciando a questão do meio ambiente, a associação com as milícias e, no último ano, fizemos acordos com diversos coletivos e instituições para denunciar que essa pandemia é o canal para a execução de um genocídio onde têm sido mortos sobretudo os negros e os pobres”, diz Nilza Valéria.

A Frente não é um movimento de igrejas, explica a coordenadora: “Precisávamos de um movimento de pessoas, até porque muitas igrejas estão comprometidas com esse projeto de poder que está em curso, esse projeto baseado em mentiras, na perda de direitos, na meritocracia injusta em um país de desiguais. Temos postura crítica em relação a muitas igrejas. A gente tem recebido muita gente que chega dessas igrejas frustrada pelos posicionamentos públicos e políticos dos seus líderes”.

Nos últimos meses, uma das tarefas prioritárias da Frente foi combater no meio evangélico o negacionismo em face da covid-19: “Desde o início da pandemia mantivemos o compromisso de que as igrejas iriam permanecer fechadas. Pastores e líderes que fazem parte do nosso movimento estão com suas igrejas fechadas até hoje porque entendem que fechar a igreja nesse momento é um ato de responsabilidade social. A gente não tem o direito de colocar a vida do outro em risco como o governo tem feito todo o tempo com um discurso culturalmente muito bem aceito pela sociedade brasileira que é o discurso do trabalho”, diz Nilza.

Ricos e Pobres

Muitos aspectos teológicos da palavra de Jesus devem necessariamente ser associados às questões sociais, pregam os evangélicos progressistas: “O mercado é um território que precisa de regulação porque é darwinista, competitivo e desproporcional. Eu acredito na necessidade de um Estado forte que garanta direitos, especialmente das populações mais vulneráveis e empobrecidas. Rico não precisa do Estado, quem precisa é o pobre”, diz Ed René Kivitz.

Outro nome importante entre os evangélicos progressistas, o pastor Ariovaldo Ramos sempre aborda a questão da desigualdade em suas pregações e palestras: “Todo mundo tem de ter fome, é natural. Mas, ninguém deve passar forme. Passar fome é injustiça e a divisão da riqueza no mundo explica esse problema”, diz.

Para ele, cabe ao verdadeiro cristão se opor a essa realidade: “Em um planeta injusto, até a classe média pode ser considerada rica. Apenas 161 pessoas controlam cerca de 140 corporações que, por sua vez, dominam praticamente todo o sistema econômico e político. É por isso que nós temos fome. A gente tem fome de muita coisa: fome de justiça, fome de paz. A gente quer alegria, vida, bondade. Quer domínio próprio, misericórdia, perdão, protagonismo, amor. Nós somos seres famintos. Temos que nos perguntar como fazer e viver para mitigar ao máximo a fome. Para que, se possível, não haja fome de nada”, diz.

Os líderes desse setor da igreja evangélica sintetizam uma visão teológica muito próxima à visão social manifestada pela esquerda, mas não gostam muito do termo marxista: “Acredito na legitimidade de todas as lutas identitárias e acredito na necessidade de, em um país como o nosso, defendermos os direitos humanos. Penso que, como cristão, não preciso me justificar muito nem citar versículo para defender o meu posicionamento. E não preciso me identificar como marxista, socialista ou comunista. Basta eu me identificar como cristão para defender as coisas que defendo”, diz Kivitz.

Já Ariovaldo Ramos ao mesmo tempo brinca e fala sério quando indagado sobre ideologia: “Eu não sou um sujeito da esquerda infiltrado na igreja. Eu sou um sujeito da igreja que vota com o pessoal da esquerda porque não consigo acreditar que o pessoal da direita tenha nenhuma proposta que chegue mais perto daquilo que eu acredito ser a Justiça do Reino”, diz.

Fé e Identidade

Jackson Augusto (Reprodução/Twitter)

A luta social identitária ou pelos direitos das minorias é também motor de uma nova abordagem sobre o Evangelho que busca transformar as igrejas de dentro para fora. Uma dessas iniciativas é o Movimento Negro Evangélico, que tem sua base teórica na Teologia Negra: “Preciso falar para outros jovens negros que existem metodologias e pensamentos a partir da fé cristã que nos ajudam a respeitar os direitos humanos, contribuir com a luta antirracista e se posicionar contra o conservadorismo”, diz o articulador social e influenciador digital Jackson Augusto, um dos expoentes do Movimento, em artigo recente publicado na Folha de São Paulo.

Ao lado de Luciana Petersen, Wesley Teixeira e Ronilso Pacheco, Jackson é autor do Manifesto de Negras e Negros Evangélicos: “Nos manifestamos para clamar a urgência de a igreja se posicionar a denunciar o racismo como pecado. E pecado estrutural. Quantas irmãs de nossas igrejas já perderam os filhos assassinados? Quantos jovens de nossas igrejas já foram mortos? Quantas irmãs oram por seus filhos presos? Queremos vida, mas as oportunidades são negadas, as portas de empregos cada vez mais são fechadas, o acesso à educação e ao sonho da universidade ainda não é para todos. Na maioria das vezes nos falta o básico, nos faltam casa, alimento e água”, diz o documento.

O Manifesto também critica as igrejas evangélicas predominantes e seu modus operandi: “Infelizmente, parte dos líderes evangélicos de grandes igrejas – que possuem todo tipo de mídia nas mãos – estão comprometidos com o interesse dos poderosos e só pensam em armas e em tramar nossas mortes. Eles colocam o dinheiro e o poder acima da vida. Uma outra parte das lideranças decidiu ficar em silêncio, e isso também é escolher o lado do opressor”.

Respeito às diferenças

Embora não atue diretamente com a questão identitária, a Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito se propõe como um movimento amplo de defesa da democracia e da luta por direitos, afirma Nilza Valéria: “Quando o direito, por exemplo, de um LGBTQ for comprometido, a Frente entende que isso é um problema nosso. Direitos são o nosso material de trabalho. Não estamos preocupados em construir uma teologia que abarque as minorias, esse não é nosso papel. Há coletivos e inclusive grupos teológicos pensando nessas questões. Somos um grupo político de defesa da democracia e de um Estado democrático e laico, aqui entendido como um Estado que proteja a todas as religiões. Que todas as expressões de culto sejam respeitadas porque a expressão de sua fé é um elemento essencial da dignidade humana”.

A afirmação da identidade de cada um na igreja evangélica progressista traz com ela o respeito às diferenças. Uma das vozes mais significativas dessa realidade foi calada este mês pela covid-19. Expoente da Igreja Inclusiva e com destacada atuação na Baixada Fluminense, o pastor André Machado faleceu aos 40 anos de idade.

Gay, egresso de uma religião de matriz africana e autodeclarado de esquerda, o pastor André, em sua última entrevista (concedida ao canal Iaras e Pagus no YouTube), disse: “Na minha igreja ensinamos que é preciso respeitar todas as religiões. Diáconos, obreiros e pastores somos ensinados a respeitar qualquer tipo de religião e até mesmo a pessoa que não tem religião. Fé é algo pessoal, então eu tenho que respeitar a fé, o sagrado de cada pessoa. Tenho que respeitar aquele sagrado para que respeitem o meu sagrado. Espero que a gente venha a construir uma sociedade livre de qualquer intolerância religiosa”.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora