Política
|
5 de janeiro de 2021
|
20:04

‘Manifestação no hino repercutiu porque Câmara agora tem pessoas negras’, diz Matheus Gomes

Por
Luís Gomes
[email protected]
Matheus Gomes fala durante a cerimônia de posse da Câmara de Vereadores de Porto Alegre | Foto: Ederson Nunes/CMPA)
Matheus Gomes fala durante a cerimônia de posse da Câmara de Vereadores de Porto Alegre | Foto: Ederson Nunes/CMPA)

Com a presença cada vez mais constante de estudantes negros, uma cena se tornou comum nas formaturas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS): no momento em que o hino do Rio Grande do Sul é tocado, parte dos formandos se mantêm sentados, em silêncio. Começou com alguns estudantes negros, em sinal de protesto com um trecho alegadamente de cunho racista da letra, mas vem ganhando força. Ao ponto de que a universidade decidiu, em 2018, não tocar mais o hino rio-grandense em cerimônias de colação de grau.

Contudo, na última sexta-feira (1º), durante a cerimônia de posse da nova legislatura da Câmara Municipal de Porto Alegre, quando os cinco vereadores da bancada negra — quatro deles formados pela UFRGS, além de Bruna Rodrigues (PCdoB), que ainda estuda na universidade — optaram por não cantar o hino, vereadores brancos se sentiram ofendidos com a manifestação silenciosa. A “revolta” foi vocalizada pela vereadora Nádia Gerhard (DEM), que subiu à tribuna para dizer que considerava a atitude como desrespeitosa e que os vereadores contrários ao hino deveriam “sair da sala”.

“Atitudes dessa forma desrespeitosas, de indisciplina, não estão [permitidas] aqui dentro dessa Câmara Municipal de Vereadores. Nós temos, sim, que fazer a correção dos atos para que isso não aconteça dentro da Câmara que legisla Porto Alegre”, disse Nádia.

A vereadora foi prontamente respondida por Matheus Gomes (PSOL), que assumia na data o seu primeiro mandato como vereador de Porto Alegre. “Nós, como bancada negra, pela primeira vez na história da Câmara de Vereadores, talvez a maioria daqui que já exerceram outros mandatos não estejam acostumados com a nossa presença, não temos obrigação nenhuma de cantar um verso que diz: ‘povo que não tem virtude acaba por ser escravo’”, disse.

Em conversa com a reportagem do Sul21 nesta segunda-feira (4), Matheus frisa que não tinha a intenção de criar atrito com os demais vereadores ao não cantar o hino. “Foi uma ação natural para mim, eu não tive dificuldade nenhuma de permanecer sentado. Eu estava fazendo algo que estou acostumado a fazer há quase dez anos, assim como vários integrantes de movimentos negros. A diferença é que agora a gente ocupa um cargo e o impacto político é diferente, mas é para que isso estamos aí mesmo”.

Matheus pontua que a postura de se manter sentado e em silêncio diante do hino começou a ganhar força a partir de movimentos de estudantes negros e negras da universidade federal no início da década. “Em 2012, a gente reuniu um grupo de jovens que foram até o desfile Farroupilha com a faixa ‘povo que não tem virtude acaba por escravizar’. Ali começou um movimento de contestação, que foi produto do protesto negro e da solidariedade das pessoas brancas também. Na minha formatura, nós éramos cinco negros só e posso te dizer que umas 50 pessoas permaneceram sentadas. Então, a gente foi impondo, a partir de uma maior presença negra na universidade, um constrangimento a posturas que reforçam tradições que fomentam o preconceito e o racismo no Rio Grande do Sul. Dá para comparar um pouco esse ambiente com o que a gente está vivendo aqui, teve essa repercussão na Câmara porque tem pessoas negras aqui dentro também”, afirma.

O vereador diz que, na cerimônia de posse, apenas reagiu diante do que considerou ser uma atitude autoritária da vereadora Nádia. “O que ela visava era censurar um ato político e nos dar uma lição de bons costumes no nosso primeiro dia de legislatura. Na verdade, lembra até um pouco o discurso do ex-vereador, [Valter Nagelstein] após a nossa vitória, tentando nos desqualificar, dizendo que a gente não tinha preparo para estar aqui dentro. Ela reforçou isso, na verdade”.

A vereadora Daiana Santos (PCdoB) também destaca que o protesto simbólico não é novidade e que é um sinal de respeito com os antepassados da população negra do Estado. “A gente não se manifesta por considerar que não é justo com os nossos, com quem nos antecedeu, e aí a gente pode trazer quem veio antes da abolição, muito antes de nós, e também os Lanceiros Negros que não são considerados como parte da história como deveriam nessa terra”, diz.

Para ela, a ação de Nádia foi uma tentativa de politizar algo que já faz parte da cultura da população negra. “Quando ela coloca as coisas daquela forma, para mim, nada mais foi do que querer se aproveitar de algo da nossa cultura, da cultura negra, daquilo que nos atravessa enquanto negros e negras, daquilo que é importante para nós, para gerar um fato político e da pior das maneiras. Respeito a posição de todos, mas a gente precisa entender o que é racismo nesses espaços, a gente precisa compreender o que mobiliza para que as pessoas se sintam tão ofendidas diante do comportamento de cinco pessoas negras”, diz.

Daiana avalia ainda que o “incômodo” diante da decisão de pessoas não cantarem o hino está relacionado à dificuldade que segmentos da sociedade gaúcha tem de enxergar o racismo que permeia as instituições e a própria sociedade. “Ele faz parte de todas as instituições, ele faz parte da construção desse País. Quando a vereadora se manifesta, não manifesta só que ela pensa, manifesta o que é parte da sociedade, que não consegue entender que o racismo estrutura todas essas instituições e faz parte significativamente do que somos nós. O nosso processo, a partir do conhecimento, de saber identificar e considerar que o racismo existe, é desconstrução, o que é muito difícil. Porque, para desconstruir, tu tem que se posicionar e compreender que faz parte de um determinado grupo que foi privilegiado pela cor da pele”.

Matheus diz ainda que também é perceptível o incômodo que a presença de cinco vereadores negros, e de partidos de esquerda, causa a vereadores que representantes desses segmentos da sociedade, uma vez que esta é a mais numerosa bancada negra e composta por ativistas do movimento negro da história do parlamento municipal. Até então, por exemplo, apenas uma mulher negra havia sido eleita vereadora titular da Casa. Em 2020, foram quatro.

“Eles realmente ficam incomodados como o novo tipo de representação política que a gente quer desenvolver na Câmara, que parte do povo negro de periferia de Porto Alegre e que tem uma plataforma de esquerda também. Isso ficou implícito na escolha da Mesa Diretora, na nossa localização nas comissões que eles negaram qualquer forma de inclusão, mesmo a gente sendo quase 27% do total da Câmara. Então, essa novidade que a gente carrega certamente vai ocasionar várias tensões. Eu acho uma lástima, porque o nosso objetivo é fazer com que outros setores da Câmara também simpatizem e consigam fazer com que a nossa visão de combate ao racismo na cidade avance, evolua. Então, esse tipo de enfrentamento eu vejo muito como uma resistência a esse novo momento da política do Rio Grande do Sul, de ocupação por novos sujeitos e segmentos que não estavam incluídos nos espaços de poder até então”, afirma Matheus.

Em vídeo publicado nas redes sociais, a vereadora Laura Sito (PT), que também estreia na Câmara em 2021, diz que a posição de Nádia é de quem relativiza o sofrimento do povo negro. “Foram séculos de brancos discutindo sozinhos as questões da cidade, mas agora chegamos e não somos um, nem dois, somos uma bancada e para nós o racismo é uma questão central”, afirmou. Laura chegou a propor, em 2017, à Assembleia Legislativa uma retificação do hino com a substituição da frase “povo que não tem virtude acaba por ser escravo” pelo verso “povo que não tem virtude acaba por escravizar”, inspirado em um poema do poeta negro Oliveira Silveira.

Em artigo publicado no Sul21, o historiador Tau Golin, professor de História na Universidade de Passo Fundo (UPF) destaca que o hino rio-grandense foi criado durante a guerra civil que opôs as tropas farroupilhas e imperiais, mas que praticamente não teria sido executado durante os dez anos do conflito, passando posteriormente por mudanças de versões até ser adotado oficialmente apenas em 1966, durante a ditadura militar. “O tradicionalismo foi potencializado como expressão do regime de exceção, convertendo-se em regionalismo de sua cultura oficial, quando a pilcha gaúcha se transformou no visual civil da farda; multiplicaram-se os galpões crioulos nos quartéis, nos órgãos públicos, nas entidades de lazer das polícias, etc.”, diz o artigo.

Para Tau Golin, o trecho do hino que diz “Mas não basta, pra ser livre/Ser forte, aguerrido e bravo/Povo que não tem virtude/Acaba por ser escravo” pode sim ser considerado como de teor racista. “Pode-se deduzir que ‘os escravos não tinham virtude’; e por não a ter, logo, foram ‘escravizados.’ Justifica-se uma condição histórica perversa através da manipulação moral. Na cultura dominante do rio-grandense, como de resto do brasileiro, o conceito de escravo não conduz à categoria política, mas sim, devido às implicações sociais, culturais e históricas, à condição de ser de ‘cor negra’. Concreta e subjetivamente, portanto, o hino rio-grandense é racista”, diz o historiador no artigo.

Em defesa do hino, o Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) disse em comunicado que o trecho não é discriminatório e que a frase “diz respeito a uma submissão da então Província de São Pedro ao Império, no período da Revolução Farroupilha”.

Professora do Departamento de História da UFRGS e Coordenadora Nacional do GT Emancipações e Pós abolição da Associação Nacional de História, Fernanda Oliveira avalia que, quando a estrofe fala que povo que não tem virtude acaba por ser escravo, parece claro que os farrapos estavam fazendo uma consideração a cerca de sua própria condição na disputa com as tropas imperiais. Contudo, diz que isso não invalida a percepção de que se trata de um trecho com teor racista.

“Muito se argumenta que seria anacrônico dizer que os racistas estavam pensando nos escravizados. Justamente quando eles sequer consideram aqueles sujeitos a quem foi prometida a liberdade, que lutaram com eles e que foram fundamentais para algumas das vitórias dos farroupilhas, mostra a perversidade e a forma como esses farrapos olhavam para esses sujeitos negros. Esses sujeitos nunca foram lidos como humanos, tanto que teve o grande Massacre de Porongos para se tentar dar um jeito na situação de não liberdade dos escravizados que não chegaria ao fim da guerra. Aí, quando a gente traz para a década atual, o cunho racista se torna ainda mais explícito. Na década de 60, quando a gente chega a configuração atual [do hino], quando há a percepção de que algumas partes do hino precisavam ser retirada, como a questão de Atenas [um trecho original que dizia ‘Entre nós, reviva Atenas, para assombro dos tiranos. Sejamos gregos na glória, e na virtude, romanos’ foi retirado nos anos 1960 sob o argumento de que não teria conexão com o povo gaúcho], em nenhum momento se disse que seria anacrônico mexer, esse argumento não apareceu. Então, por que não quis se representar no hino a população negra que é parte do povo gaúcho? Ou seja, se o povo não se via lá em Atenas, o que foi usado como justificativa para retirar a estrofe, o povo se identificava com a frase de que o povo que não tem virtude acaba por ser escravo”, diz.

Fernanda Oliveira também rebate outro argumento usado por quem é contrário à mudanças no hino porque ele estaria se referindo à escravidão no campo das ideias, e não à escravidão da população negra. “Trazer essa discussão para o campo das ideias, para o campo filosófico, é perder a materialidade do que significou a escravidão no Brasil, é perder a materialidade do que significou a escravidão no território sul rio-grandense. Porque existe aí uma disputa de narrativa muito intensa também no sentido de dizer que a escravidão no sul do Brasil não foi perversa, que ela foi quase mais amena. E os estudos históricos, sobretudo a partir de 1980, tem sido enfáticos em mostrar a centralidade da escravidão para a economia sulina e a perversidade da escravidão que é inerente ao sistema escravista. A gente não pode pensar que existia a possibilidade de ser menos perverso, porque, afinal de contas, uma coisa que estavam em xeque no sistema escravista era a não humanidade das pessoas”, diz.

Defensores da mudança do hino apontam que há diversos exemplos de símbolos nacionais e regionais que vêm sendo mudados ao longo da história. Recentemente, em 1º de janeiro de 2021, a Austrália alterou o seu hino nacional em respeito à população aborígene do país. O trecho que dizia “somos jovens e livres” foi mudado para “somos unidos e livres”, reconhecendo que a história anterior ao período colonial australiano.

Para a professora Fernanda Oliveira, essa é uma discussão difícil de ser feita no Rio Grande do Sul porque há uma grande dificuldade no Estado de se reconhecer o passado e o presente racistas. “Qualquer discussão que chegue no sentido de apontar que a sociedade sulina precisa se reconhecer enquanto uma sociedade racista se de fato quiser seguir em frente e, aí sim, se quiser se consolidar como uma sociedade antirracista, não é possível. Essa discussão é tão difícil de ser feita no Rio Grande do Sul justamente por conta desse racismo arraigado na nossa história, um racismo que permeia o tempo, mas que vai se transformando. Fazer essa discussão no Rio Grande do Sul é extremamente difícil justamente porque diz enormemente sobre as dificuldades enormes que a sociedade sulina tem para se repensar. E, para se repensar, é fundamental como primeiro passo se reconhecer como uma sociedade racista. E isso ela não quer fazer”, afirma.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora