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4 de dezembro de 2020
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20:07

Com histórico de atrasos em pagamentos a funcionários, Multiclean recebeu R$ 160 milhões da Prefeitura em 6 anos

Por
Luís Gomes
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Com histórico de atrasos em pagamentos a funcionários, Multiclean recebeu R$ 160 milhões da Prefeitura em 6 anos
Com histórico de atrasos em pagamentos a funcionários, Multiclean recebeu R$ 160 milhões da Prefeitura em 6 anos
Trabalhadores protestam contra as demissões em agosto deste ano | Foto: Divulgação

Luís Eduardo Gomes

É quase uma tradição de final de ano em Porto Alegre. Funcionários da Multiclean, empresa que presta serviços terceirizados de auxiliar de serviços gerais, auxiliar de cozinha e cozinheiro para as escolas municipais, denunciam atrasos nos pagamentos de salários e de direitos trabalhistas e têm se mobilizado para cobrar os valores devidos. Empresa e Prefeitura negam responsabilidade sobre atrasos, mas o relato das funcionárias é de que estão precisando recorrer à ajuda de professores da rede municipal para conseguirem garantir a alimentação neste final de ano.

Bárbara* trabalhava na empresa por três anos e um mês quando foi demitida em agosto passado. Na ocasião, a empresa anunciou a demissão de 700 funcionários em razão de uma redução no contrato por parte de Secretaria Municipal de Educação (Smed). Ela diz que recebeu apenas R$ 395 de rescisão e que a empresa não depositou os valores referentes aos 40% de multa sobre o saldo do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).

No entanto, segundo Bárbara, os problemas de atrasos nos pagamentos se repetem há anos. “Nós já passamos muitos problemas. Desde férias atrasadas, eles pagavam um terço das férias e pagavam o resto quando a gente voltava. Segundo eles, era para a gente não voltar sem dinheiro, mas acho que quem tem que decidir isso é o trabalhador”, diz. “Ao longo do tempo, sempre teve esse estresse. Aí tu ligava para a empresa, era sempre o quinto dia útil até a meia-noite. Esse meia-noite às vezes se arrastava”, complementa.

Este é o mesmo relato de Sandra*, que trabalhava como terceirizada na rede municipal de ensino mesmo antes da Multiclean firmar o primeiro contrato com a Smed, em 2015. “A Multiclean só foi correta com a gente no primeiro ano, pagava em dia. A cada final de ano, eles dizem que tem notas em atraso da Smed e a Smed diz que a Multiclean não passa a documentação em dia, um passa a responsabilidade para o outro”, afirma. “Sempre foi assim, férias, tudo. Eu sofri três anos com isso. Teve vários meses que pagavam corretamente, mas muitos meses que pagavam o VA pingado, passagem pingado, e assim sempre foi ao longo dos três anos”, complementa Bárbara.

Sandra foi uma das trabalhadoras que foi mantida pela empresa após a pandemia, mas relata que está com salários e benefícios atrasados. “Para mim, eu tenho um depósito no meu cartão TRI desde setembro. Aí eu fui olhar na minha conta, e tinha um valor a mais, tipo R$ 80. Só que nem todo mundo consegue ser mais organizado de não estar devendo para o banco, né? Fora que a gente recebe sempre atrasado e os juros do banco comem lá em cima. Aí começou a bola de neve particular de cada um, com atraso de pagamentos, falta de vale-transporte, falta de vale-alimentação. Novembro, por exemplo, todo mundo ficou sem passagem, depositaram só os primeiros cinco dias”, diz.

Bárbara e Sandra dizem que participam de grupos de Whatsapp e que o relato das colegas é de que, tanto as que foram demitidas, como as que mantiveram o emprego, estão com valores a receber. No caso das trabalhadoras demitidas, a média de indenização recebida teria ficado entre R$ 350 e R$ 600.

“Muitas passaram fome e necessidade. Muita gente perdeu a casa de aluguel, foi morar de favor na casa dos outros. Se não fosse a questão de nós todas trabalharmos em escola e os professores e o Simpa verem o que a gente tá passando e terem ajudado com cestas básica, eu não sei o que seria”, diz Sandra.

Histórico entre Multiclean e Smed

O primeiro contrato assinado entre a Multiclean Service Locação de Mão de Obra LTDA e a Secretaria Municipal de Educação (SMED) data de 6 de janeiro de 2015. Conforme consta no Portal da Transparência, ele teve o valor de R$ 4.400.738,29 e tinha por objetivo a prestação de serviços de auxiliar de serviços gerais, auxiliar de cozinha e cozinheiro para as escolas municipais entre os meses de janeiro e março de 2015.

Um novo contrato foi firmado na sequência para a prestação dos mesmos serviços para o mês de abril daquele ano, no valor de R$ 2.342.703,74. Em agosto do mesmo ano, houve um novo acordo, dessa vez para a prestação dos serviços por 90 dias, no valor de R$ 8.677.454,25.

O Portal da Transparência traz o valor duplicado para a prestação dos mesmos serviços, com a única diferença sendo o mês de assinatura dos contratos, uma entrada em agosto e outra em setembro. Segundo a Smed, trata-se do mesmo contrato.

A partir daí, a Smed passou a firma acordos anuais com a Multiclean para a prestação dos serviços. O primeiro deles, de dezembro de 2015, tinha o valor de R$ 32.684.479,64. Um novo contrato foi firmado em janeiro de 2016 para o mesmo período de 12 meses, mas com valor diferente, de R$ 33.111.254,90. Segundo a Smed, também trata-se do mesmo contrato, com a diferença de R$ 426.775,26 sendo referente à contratação de mais cinco cozinheiros e 68 auxiliares de cozinha.

Em janeiro de 2017, o contrato foi renovado pelo valor de R$ 36.647.806,67. Em fevereiro de 2018, foi renovado mais uma vez pelo valor de R$ 37.056.756,18, com um adicional de R$ 2.206.312,16 a título de repactuação do contrato de 2017.

Em março de 2019, foi renovado pela terceira vez por R$ 36.083.899,14, mesmo valor da quarta e última renovação, registrada em fevereiro de 2020. Ao todo, os contratos somam R$ 160.526.925,33 — já descontadas as duplicações.

O primeiro contrato anual (válido para 2016) previa a contratação de 147 cozinheiros, 360 auxiliares de cozinha e 533 auxiliares de serviços gerais durante o ano letivo, totalizando 1.040 funcionários. Já o último contrato (2020) previa 147 postos de trabalho para cozinheiros, 360 para auxiliares de cozinha e 457 para auxiliares de serviços gerais, totalizando 964.

O contrato entre Multiclean e a Smed vence no próximo dia 15. Como a empresa já está na última renovação permitida por lei após vencer a licitação para a prestação de serviços para a pasta, não há possibilidade de ampliação do contrato atual.

Por meio da assessoria de imprensa, a Smed reconhece que a legislação impede uma nova renovação de contrato com a Multiclean e que uma nova licitação já está em andamento para a contração de uma nova empresa para a prestação de serviços de auxiliar de serviços gerais, auxiliar de cozinha e cozinheiro na rede municipal de educação. A licitação, contudo, encontra-se suspensa.

A pasta diz ainda que procurou o Ministério Público do Trabalho para analisar a possibilidade de fazer o pagamento diretamente aos funcionários no período posterior ao encerramento do contrato com a Multiclean e enquanto a licitação não estiver concluída. Outra possibilidade é que seja feito um novo contrato emergencial aos moldes daqueles firmados em 2015, mas ainda não há definição.

Ao longo dos seis anos de acordos entre Smed e Multiclean, em diversas ocasiões funcionários reclamaram de atrasos de pagamentos. Logo no primeiro ano, em junho de 2015, a TV Restinga acompanhou a denúncia de trabalhadores contra a empresa por inadimplência, atraso no pagamento de salários e direitos, como vale-transporte e vale-alimentação.

Em janeiro de 2018, o Sul21 acompanhou uma série de manifestações realizadas por funcionários contra atraso nos salários e benefícios trabalhistas. Na ocasião, os problemas foram atribuídos à não renovação de contrato com a Prefeitura, que vencera em dezembro de 2017. Após um impasse sobre a renovação, o convênio foi renovado em fevereiro.

O que diz a empresa

Carlos Eduardo Azevedo Olson, advogado trabalhista e representante jurídico da Multiclean, explica que, em 15 de abril, a empresa recebeu um ofício da Smed comunicando uma redução unilateral do contrato em 90% em razão do fechamento das escolas por causa da pandemia de covid-19, reduzindo proporcionalmente a remuneração da empresa em 90%. A partir do dia 16 daquele mês, apenas 10% dos funcionários continuaram na ativa e o restante do quadro teve o contrato suspenso por 60 dias em acordo com as regras da MP 936, que garantia que o governo federal pagaria 70% dos vencimentos durante esse período.

Quando o prazo dos 60 dias venceu, ainda não era possível prorrogar a suspensão do contrato — o que foi permitido a partir da aprovação da Lei 14.020, em julho — e a Multiclean encaminhou o aviso prévio para a demissão de cerca de 700 funcionários. A partir de negociações com a Smed para a retomada de parte dos postos de trabalho, o número total de demitidos, de fato, caiu para 350 em agosto.

O advogado nega que a empresa não tenha pago as rescisões corretamente. Segundo ele, trabalhadores receberam um valor proporcional aos meses trabalhos no ano — janeiro, fevereiro e março. O entendimento da Multiclean é que, pelo fato de não ter havido prestação de serviços por ao menos 15 dias por mês, eles não teriam direito à proporcionalidade de férias e 13º no período. Diz ainda que a média das indenizações pagas seria de R$ 600 a R$ 700 líquidos, sem contar a multa sobre o fundo.

“A empresa pagou todas as rescisões dentro do prazo de 10 dias, desses 350 que foram demitidos, o fundo de garantia, multa, tudo foi pago”, afirma. “Que eles não receberam as rescisórias, não é verdade, eles receberam”.

Carlos Eduardo diz ainda que alguns funcionários já entraram com ações na Justiça contra a Multiclean para cobrar o pagamento integral das multas sobre o saldo do FGTS e que a empresa estaria comprovando o pagamento correto. O que está em atraso, segundo ele, é o fato de que a empresa suspendeu o depósito do FTGS nos primeiros meses da pandemia se aproveitando da MP 927, que permitia o adiamento do pagamento da contribuição patronal e o parcelamento dos valores atrasados em seis meses. “Alguns casos, depois que a pessoa foi demitida, entraram novos depósitos, justamente porque tem esse parcelamento”.

O advogado diz que a retomada dos serviços só foi comunicada no dia 15 de setembro, para a retomada integral do contrato — e dos pagamentos — a partir do dia 16. Segundo ele, até o momento, a Smed pagou a fatura de setembro proporcional aos 15 dias trabalhados e o mês de outubro. Ele garante que os salários de novembro serão pagos na semana, no quinto dia útil do mês, mas reconhece atrasos em benefícios.

“Como o valor que a Smed nos pagou foi muito inferior à folha e como a empresa teve esse desfalque de, durante cinco meses, estar recebendo cerca de 10% do contrato e tendo que arcar com, pelo menos, 30% dos salários e mais todas as despesas, o caixa da empresa ficou praticamente zero. Então, nesse mês de outubro houve um pequeno atraso no valor de vale-alimentação e vale-transporte. Tem alguns valores pendentes, mas a empresa está para fazer o pagamento. Está aguardando o pagamento da fatura de empresa pela Prefeitura”, diz.

A Multiclean afirma que ainda não recebeu da Prefeitura o valor referente à fatura de outubro, que estaria em atraso. Além disso, afirma que tem para receber um valor de R$ 2,2 milhões referente a repactuações contratuais em razão de reajustes no piso salarial dos funcionários e uma garantia contratual de cerca de R$ 1,6 milhão. Somando estes valores, com os pagamentos de outubro, novembro e dezembro (15 dias), a empresa calcula que tem R$ 9 milhões de créditos a receber da Prefeitura. “Não vai ter nenhuma pendência, desde que o município pague a Multiclean”, afirma Carlos Eduardo.

Procurada, a A Secretaria Municipal de Educação diz que nunca atrasou o pagamento da terceirizada. “O pagamento ocorreu algumas vezes depois do quinto dia útil do mês devido a atrasos na entrega de documentação por parte da Multiclean”, diz.

*As funcionárias pediram para ter os nomes preservados.


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