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29 de outubro de 2020
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21:57

‘A lógica do SUS não é dar lucro. Qual é o interesse do setor privado em entrar nisso?’, questiona advogado sanitarista

Por
Luís Gomes
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Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Luís Eduardo Gomes

O presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Economia, Paulo Guedes, assinaram nesta semana um decreto que buscava incluir a atenção primária na saúde no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República. Diante da forte reação negativa e das críticas de que o projeto abriria portas para a privatização do Sistema Único de Saúde, Bolsonaro recuou e anunciou a revogação do decreto na tarde de quarta-feira (28), mas negou que estivesse propondo qualquer medida que resultaria na entrega da saúde pública para a iniciativa privada.

A pergunta que não foi respondida durante o imbróglio, no entanto, é qual era o real objetivo do decreto? Para tentar responder a questão, o Sul21 conversou nesta quinta-feira (29) com o Daniel Dourado, médico e advogado sanitarista, pesquisador do Centro de Pesquisa em Direito Sanitário da Universidade de São Paulo (Cepedisa/USP) e do Institut Droit et Santé da Universidade de Paris.

Dourado avalia que a redação do Decreto 10.530 não deixa claro qual é o objetivo da medida. “A redação é muito ruim, uma técnica legislativa péssima. Você não consegue entender o que eles querem ali”, diz. “Acho que a gente percebe claramente que o Guedes e a equipe dele têm uma noção muito precária da administração pública”.

Por outro lado, pontua que o decreto possa ter sido um balão para alguma projeto futuro de mudar o formato da assistência de saúde pública no Brasil, pontuando que o governo demorou a esclarecer quais eram os objetivos do decreto.

“Deixaram correr a especulação e a gente fica com suspeita de que pode ter algo proposital nessa especulação, que pode ter uma intenção por trás disso. Principalmente porque a gente viu, nesta semana, o líder do governo, deputado Ricardo Barros (Progressistas-PR), que não por acaso foi ministro da Saúde do governo Temer, começar a plantar a ideia de que vai propor uma nova constituinte”, afirma. “É tão desorganizado que eu não duvido que seja completa falta de noção. Mas acho que a gente tem que ter uma preocupação de ver se eles não estão querendo plantar uma semente para propor uma alteração lá na frente, principalmente porque vem no mesmo momento em que o líder do governo aparece com essa história de propor constituinte”.

Daniel Dourado, médico e advogado sanitarista, conversou com o Sul21 sobre o decreto já revogado por Bolsonaro | Foto: Arquivo Pessoal

Não é possível privatizar o SUS

Dourado destaca que, na prática, o SUS não pode ser privatizado e é considerado inconstitucional qualquer cobrança pelo acesso ao sistema público de saúde no Brasil. “Privatização em si, não é possível na saúde do Brasil. O direito à saúde é um direito social reconhecido pela Constituição. É um dos direitos fundamentais, que são dados aos indivíduos. A constituição vincula o direito à saúde ao chamado sistema de seguridade social. O modelo adota um modelo de seguridade social que, por natureza, é universal e financiado por impostos”, diz. “A nossa Constituição pode ser emendada, mas tem elementos que não podem ser mexidos, o que nós chamamos de cláusulas pétreas, dentre eles os direitos e garantias individuais. O direito à saúde é um direito individual. O SUS está diretamente ligado. Então, se você vai mexer no SUS de modo que isso possa restringir direito, ou seja, se eu crio uma modificação no sistema de saúde que eventualmente diminui o acesso das pessoas, isso, por natureza, já seria inconstitucional”.

Dourado pontua que há países que adotam modelos públicos que permitem copagamentos pelo usuário, como na França, com o governo cobrindo a maior parte, mas cobrando uma tarifa dos pacientes por serviços prestados. Diz ainda que há uma discussão sobre se a Constituição determina que o SUS deva ser gratuito ou não. Contudo, afirma que a interpretação consolidada pela Justiça é que o sistema deve ser universal e igualitário. “Um sistema de seguridade social para seguir essas naturezas, no Brasil, não tem como ele não ser gratuito. Como é que você vai criar um sistema que seja para todo mundo e que seja igual, se você cobrar um real, ou qualquer valor que seja?”

Ele salienta que, inclusive, não há, de fato, menção a qualquer processo de privatização no Decreto 10.530. Contudo, pontua que os questionamentos que se fazem são sobre os interesses do governo em vincular a atenção primária ao Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República, que é voltado para a promoção de privatizações e concessões. “Ou seja, cria uma suspeita muito grande”.

Parcerias com a iniciativa privada

Para tentar minimizar a repercussão negativa, o governo federal adotou o posicionamento de que o decreto, na verdade, tratava de explorar a possibilidade de parcerias com a iniciativa privada para a realização de obras e prestação de serviços.

Dourado destaca que a Constituição permite a concessão de serviços públicos para a iniciativa privada. Um modelo permitido é a concessão em que a empresa paga uma outorga ao Estado para assumir o serviço e o explora mediante cobrança de taxas e tarifas, como é o caso das concessões no setor energético. Contudo, diz que isso é impensável na saúde, pois violaria os princípios de que o SUS deve ser universal e igualitário.

Para além desse modelo, a Lei 11.079/2004, que trata das Parcerias Público-Privadas, permite dois tipos de concessão de serviços à iniciativa privada. Um deles é a concessão patrocinada, em que o estado banca uma parte dos serviços, mas o concessionário pode cobrar uma tarifa, o que também não seria possível no SUS. O segundo seria o modelo de concessão administrativa, onde quem explora o serviço não pode cobrar do usuário, mas é financiado pelo Estado, o que já ocorre para a gestão, por exemplo, de hospitais públicos em diversos estados do Brasil.

A suspeita de Dourado é que o objetivo do governo com o decreto seria abrir espaço para esse tipo de parceria na saúde primária, esclarecendo que esse modelo seria diferente da contratualização de serviços com Organizações Sociais de Saúde (OSSs), entidades sem fins lucrativos, que são praticadas em cidades como Porto Alegre.

“A empresa que faz contrato de concessão visa o lucro, ela não é filantrópica. A ideia dela de fazer o contrato é que ela acha que, pela eficiência dela, com o dinheiro que vai receber, vai conseguir ter uma margem. Esses contratos de gestão que têm nos municípios são contratos no modelo de organizações sociais. São entidades filantrópicas que se qualificam no estado ou no município para fazer um contrato de gestão. O que a Prefeitura faz, geralmente, é criar lotes de unidades de saúde e faz uma chamada pública para entidades filantrópicas da região se qualificarem para isso”, diz.

Ele explica que a diferença da PPP e da contratualização é que todo o dinheiro que entra no contrato de gestão com uma OSS tem que ser usado na prestação de serviços, não sendo possível a obtenção de margem de lucro. Isso significa que, se a Prefeitura de Porto Alegre tem um contrato em que vai pagar R$ 5 milhões por mês pela prestação de serviço em um posto de saúde, mas a OSS só usou R$ 4 milhões, no mês seguinte ela irá abater o R$ 1 milhão que sobrou do valor a ser repassado à entidade.

“Se eles estivessem falando de OSS, não precisava de um decreto, porque já existe e já é feito no Brasil inteiro. Se eles estiverem falando de PPP, que foi com o que eles se saíram no final do dia, não precisaria, porque já existe. Se eles se propuseram a se fazer um decreto, é porque estavam pensando em alguma outra coisa, que ninguém sabia muito bem o que era. A preocupação veio daí.”

Além disso, pontua que a possibilidade de estabelecimento de parcerias que sejam lucrativas para a iniciativa privada na área da saúde, mesmo com o estado financiando toda a prestação de serviços, também possa vir a ser considerada como ilegal. “Se você insere uma lógica de lucro em que quem presta o serviço, em vez de pensar na assistência à população, começa a pensar em economizar ou a gastar menos, isso subverte a lógica do sistema. O sistema de saúde, na lógica da seguridade social, é algo que não vai dar lucro. Aí, de repente, a gente percebe o interesse do setor privado em entrar nisso. Que interesse é esse? A gente precisa descobrir. Por que uma empresa que visa o lucro quer entrar num setor que, por natureza, não dá lucro e não tem como dar lucro?”, questiona.


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