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5 de setembro de 2020
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13:56

‘Epílogo de uma novela triste’: vereadores traçam percurso do desgaste com Marchezan

Por
Luís Gomes
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Vereadores apontam falta de diálogo e autoritarismo para o desgaste do prefeito com a Câmara | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Luís Eduardo Gomes

“Eu acho que o que está acontecendo hoje é epílogo, é o último capítulo de uma novela triste para a cidade, muito triste”. É assim que o ex-vereador e atual deputado estadual Thiago Duarte (DEM) avalia a reta final do governo Nelson Marchezan Júnior (PSDB), marcada pela abertura de um processo de impeachment — cuja tramitação foi suspensa na última quarta-feira (1º) pela Justiça e autorizada a continuar na sexta (4) — e por uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investiga uma série de supostas irregularidades que teriam sido cometidas pela sua gestão.

Oficialmente, o impeachment é motivado pela acusação de que a Prefeitura utilizou recursos do Fundo Municipal da Saúde em campanhas publicitárias que não são relacionadas com a área. Na prática, é resultado de três anos e meio de desgastes na relação do prefeito com a Câmara, evidenciados na votação de abertura do processo, que contou com 31 votos a favor e apenas 4 votos contrários. O Sul21 conversou com diversos vereadores que fizeram parte da oposição, da base aliada, incluindo um ex-líder do governo, ou foram independentes durante a gestão para entender como os vereadores avaliam a gestão Marchezan.

Uma relação que começou difícil

Em parte, o problema de articulação política tem como origem o fato de o PSDB, partido do prefeito, ter apenas um vereador eleito em 2016. Entre os outros 35 vereadores eleitos, apenas quatro estiveram na chapa do prefeito desde o primeiro turno, os quatro parlamentares do PP. Esta situação demandou do prefeito, de largada, a composição de uma aliança com diferentes legendas que apoiaram seus adversários. Contudo, o resultado que saiu das urnas parecia bastante favorável para um governo que se declarava como de aspiração liberal.

No início da legislatura, apenas PT e PSOL declaravam-se abertamente de oposição, ocupando apenas 7 das 35 cadeiras da Casa. Mesmo que fossem somadas as cadeiras ocupadas por PDT e PSB, partidos da centro-esquerda que não aderiram automaticamente à oposição, Marchezan potencialmente poderia contar com 24 votos favoráveis aos seus projetos. Porém, diversos partidos que compuseram a chapa de Sebastião Melo (MDB), derrotada em segundo turno, iniciaram a nova gestão como independentes, incluindo MDB, PDT, PSB, DEM e PRB (hoje Republicanos).

O que se viu, ao longo de três anos, foi o governo alternando vitórias importantes, como a aprovação do aumento da alíquota previdenciária dos servidores, sancionado em setembro de 2017, com derrotas marcantes. A mais notória delas, em seu primeiro ano de mandato, ocorreu na tentativa de revisar a planta do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU),projeto rejeitado por 25 votos a 10.

O prefeito até conseguiu compor uma base aliada relativamente sólida no primeiro semestre de 2019. Foi naquele momento, na esteira da chegada do também tucano Eduardo Leite ao Palácio Piratini, que foi firmada a aliança que levou o MDB e seus quatro votos para dentro do governo, puxando a reboque mais três cadeiras do Democratas e dois votos do Republicanos. Com um maioria formada, Marchezan conseguiu recolocar em votação e aprovar, por 22 a 14, as mudanças no IPTU. Este período de fortalecimento, contudo, duraria pouco, e teria como ponto de virada o racha com o seu principal aliado, o PP.

Paim (esq.), Marchezan e Krieger (à direita do prefeito) participam da celebração da vitória em 2016. Parceria não terminou o mandato | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Brigando com o vice e seu partido

A primeira baixa na relação com o PP foi a do então secretário de Relações Institucionais e Articulação Política, Kevin Krieger, que também acumulava o cargo de secretário interino de Meio Ambiente e Sustentabilidade, em maio de 2017. Oficialmente, a justificativa para a saída do governo era de que Krieger tomou a decisão por “motivos pessoais”, justificativa que continuaria aparecendo nas constantes trocas que ocorreram no primeiro escalão do governo, mas que escondia dificuldades de relação do prefeito com seus aliados. No caso da saída de Krieger, o governo perdia um político que tinha articulado a parceria do PSDB com o PP e tinha a experiência de já ter trabalhado na articulação política no governo anterior.

A primeira votação do IPTU provocou novo estremecimento na relação. Até então considerando um dos principais secretários da cidade, o então comandante do Desenvolvimento Econômico da cidade, Ricardo Gomes (PP), deixou o governo para retornar à Câmara e votar contra o prefeito. O rompimento definitivo das relações veio em agosto de 2019, com os desentendimentos públicos entre Marchezan e o vice-prefeito, Gustavo Paim (PP), que teve como um dos estopins justamente a contrariedade de vereadores do partido em votar a revisão da planta do IPTU e, depois, de tentarem realizar uma nova votação mesmo a matéria já tendo sido aprovada. Posteriormente, um filiado do PP entrou com um pedido de impeachment do prefeito, que foi rejeitado pela Câmara, mas abriu espaço para a criação de uma CPI que investigou as denúncias de irregularidades da gestão.

Em setembro seguinte, Marchezan determinou a demissão de todos os funcionários da Prefeitura que ocupavam cargos de confiança e eram filiados ao PP, incluindo aqueles que trabalhavam com Paim. Como resposta, o partido do vice divulgou uma nota, em que afirmava discordar “profundamente da forma como o Prefeito decidiu governar a cidade: sem diálogo, desrespeitando a democracia, ignorando e atacando a Câmara de Vereadores e agindo como se a cidade fosse uma monarquia absolutista, e ele seu Reizinho”.

Presidente da Câmara em 2019, quando o seu partido rachou com o prefeito, Mônica Leal avalia que a aliança com o PP foi essencial para a eleição do tucano. “O PP foi o grande apoio que viabilizou a candidatura e a eleição do prefeito Nelson Marchezan Junior. O PSDB em Porto Alegre, estava muito fragilizado, sem sequer possuir um diretório eleito pelos seus filiados. Teve a sua executiva destituída e comandada por uma Comissão Provisória, a partir de intervenção apoiada pelo Presidente Nacional do PSDB, à época, parceiro político do Prefeito, Aécio Neves”, diz.

Apesar da disputa ter se acirrado depois, a vereadora lembra que mesmo antes da posse já havia conflito entre prefeito e vice. “Ainda no mês de dezembro de 2016, o prefeito gerou alguns incômodos ao vice-prefeito, Gustavo Paim, delegando uma série de missões e atividades que reduziam e conflitavam com alguns dos ideários e bases do PP, bem como sem permitir que se formasse uma equipe, sem permitir a participação de partidos e de lideranças políticas. O prefeito também tomava decisões sem construir com os aliados e sem dialogar com a sociedade, tendo já na transição comprado conflitos desnecessários com o governo anterior e com os servidores”, complementa.

Mônica diz que o rompimento do vice-prefeito e do próprio PP com o governo ocorreu porque as partes chegaram no “limite do esgotamento”.

Uma “questão do campo da direita”

Para o vereador Marcelo Sgarbossa (PT), as brigas com o vice-prefeito expuseram publicamente a fragilidade do governo, uma vez que Paim, que atuou por anos como advogado eleitoral nos bastidores da política municipal e estadual antes de compor a chapa com Marchezan, era visto como um indivíduo equilibrado e de bom trânsito entre os vereadores.

Neste sentido, ele define o processo de impeachment como uma “questão do campo da direita”. “O próprio PTB votou a favor. Eu achei curioso, quando abriu para o Cássio Trogildo (PTB), ele disse: ‘pelo direito do prefeito se defender’. Imagina, eles, que são super fieis ao governo, estão dando o direito dele ser defender”, ironiza o petista.

Autor do requerimento de abertura da CPI, Roberto Robaina (PSOL) concorda que foi apenas graças ao rompimento do PP e de outros aliados com o prefeito que a CPI pode prosperar, uma vez que precisava de 15 assinaturas para ser implantada, abrindo, posteriormente, as portas para a aprovação do prosseguimento do sexto pedido de impeachment.

“O Marchezan sempre teve o voto, isso é importante que se diga. Em geral, boa parte dos projetos que a Câmara votou foram projetos de apoio ao Marchezan, contra o meu voto, contra o voto da oposição. Eles de desorganizaram porque o Marchezan, de fato, é um prefeito autoritário, que, mesmo os que foram aliados dele, ele trata como inimigos. Então, é um prefeito sem condições de governar”, diz Robaina.

No entanto, Robaina defende que a CPI é baseada em fatos e que, se o prefeito não tivesse cometido irregularidades, não estaria sob ameaça de ser cassado. “A CPI tem bases objetivas, documentais, para recomendar o indiciamento do prefeito por improbidade, por corrupção passiva, por crime de responsabilidade, por advocacia administrativa e por tráfico de influência, e tudo isso documentado. Assim como o pedido de impeachment também tem base, porque o Marchezan gastou, de fato, o dinheiro da saúde em publicidade. Isso ele pode alegar que tem alguma base legal, mas não tem nenhuma base legal fazer propaganda de reeleição, porque uma parte foi para propaganda eleitoral do governo, foi campanha eleitoral antecipada”, diz.

Na mesma linha, Mauro Zacher (PDT), que iniciou a gestão como independente, antes de se fixar na oposição declarada, concorda que as denúncias são graves e que precisam ser esclarecidas, mas ressalta que outros cinco pedidos de impeachment haviam sido apresentados anteriormente e barrados pela base do governo. “Pois bem, ele termina o governo sem base nenhuma, praticamente isolado, o que representa o desrespeito dele com as forças políticas da cidade, principalmente com os seus aliados, aqueles que o ajudaram a chegar à Prefeitura, como é o caso do PTB, do PP, que tem o vice, do DEM, do MDB, partidos que foram base e inclusive ajudaram a aumentar o IPTU da cidade, a mexer no plano de carreira dos servidores municipais”, diz Zacher.

Claudio Janta começou o governo como líder na Câmara, mas foi retirado do posto ainda no primeiro ano | Foto: Tonico Alvares/CMPA)

Governo marcado por conflitos

O rompimento com o PP, contudo, não foi o único. Primeiro líder do governo, Claudio Janta (SDD) foi comunicado pela imprensa de que perderia o posto de principal responsável pela articulação da base aliada em agosto de 2017. A divergência central entre o vereador em segundo mandato e o prefeito foi a retirada, por decreto, da gratuidade da segunda passagem de ônibus — quando o passageiro pega duas condições em menos de meia hora. Janta chegou a ingressar na Justiça contra o município pedindo a manutenção do benefício.

“Estou recebendo a notícia pela imprensa. É uma opção do prefeito: ele escolhe o líder, ele escolhe os secretários. O que posso te dizer? Cumpri meu papel enquanto exerci a liderança. O que me foi delegado de projetos, de encaminhamentos, obtive êxito”, disse Janta, à época, quando foi substituído da liderança do governo pelo vereador suplente Moisés Barbosa (PSDB).

Logo em seguida, em novembro de 2017, ocorreu outro episódio que dificultaria ainda mais a relação do prefeito com a Câmara. Durante participação em um evento promovido pelo MBL, Marchezan afirmou que “parlamentar é cagão”. Ele tentou contornar a situação, dizendo que não se referia à Câmara de Vereadores e que a frase foi dita em contexto de análise política, mas o estrago estava feito. Dezesseis vereadores assinaram um pedido de convocação do prefeito para prestar esclarecimentos sobre a declaração.

Claudio Janta cita a fala do prefeito no evento do MBL como um dos momentos que desgastaram a relação de Marchezan com a Casa. Na época, o vereador do Solidariedade, que já havia deixado a liderança do governo meses antes, mas ainda compunha a base do governo, respondeu ao prefeito dizendo que ele era “bunda-mole”. Três anos depois, Janta ainda lamenta que mesmo os vereados da base tenham recebido um tratamento que, nas sua opinião, “não condiz com quem ajuda o governo”.

Outro enfrentamento público ocorreu em 2019, entre o prefeito e a então presidente da Câmara, Mônica Leal, acirrado pela autorização para tramitação do quinto pedido de impeachment de Marchezan. Na ocasião, o líder do governo, vereador Mauro Pinheiro (REDE), afirmou que “tem gente incomodada com o êxito do prefeito” e que havia “pressa demais” na forma como o tema foi tratado. A presidente rebateu, dizendo estar “chocada” com o comportamento de alguns aliados do prefeito.

Dois meses depois, já em clima de total afastamento da base aliada, Mônica Leal ironizou publicamente um pedido do prefeito de que a Câmara antecipasse a devolução de R$ 40 milhões ao tesouro municipal referente a sobras orçamentárias, especialmente porque o pedido foi divulgado pela imprensa antes de chegar ao parlamento municipal. “Se o prefeito não gastasse tanto em verba publicitária, não estaria com dificuldades financeiras”, disse a vereadora, na ocasião.

Nesta semana, ela afirmou em entrevista ao Sul21 que o prefeito é uma pessoa arbitrária. “Os nossos problemas se deram em relação às tentativas de interferência e desrespeito ao Poder Legislativo, que incluíram ataques de alguns de seus aliados, inclusive, tentando me intimidar por eu ser mulher, com atitudes machistas”, disse.

Relação entre o prefeito e a então presidente da Câmara, Mônica Leal, desgastou-se ao longo de 2019 | Foto: CMPA

Na opinião de diversos vereadores ouvidos para esta reportagem, as dificuldades de relacionamento passam por características pessoais de Marchezan.

Valter Nagelstein, eleito pelo MDB e agora no PSD, foi um dos vereadores que apoiou o governo no primeiro semestre de 2019. Contudo, acredita que faltou capacidade de articulação política à gestão. “Eu acredito que o governo, na média geral, é nota 4. E nota 4, roda. Foi um governo que não soube fazer articulação política, que fez uma reforma administrativa que nunca funcionou, perdeu recursos, desarranjou a Prefeitura municipal e nós temos como resultado uma gestão muito fraca”, diz. “Isso tudo deixa uma lição, não se pode colocar no posto de prefeito municipal alguém que não conheça Porto Alegre e que não tinha tido experiência com gestão, quanto mais com a complexidade de uma Capital que tem um orçamento de R$ 7,5 bilhões, que tem 30 mil servidores e 1,5 milhão de habitantes”, afirma.

Thiago Duarte avalia que a incapacidade de dialogar com a Casa vai além da ideologia liberal defendida pelo prefeito, pois ele não teria se indisposto apenas com vereadores, mas com diferentes segmentos da cidade. “A Câmara é só um dos pilares desse processo. Ele se inviabilizou com a cidade. Se inviabilizou com os comerciantes, com os prestadores de serviço da cidade, com o serviço público e os trabalhadores do setor público, com os funcionários públicos da Prefeitura, ele se inviabilizou com todos”, diz. “Nunca Porto Alegre trocou tanto de secretário como trocou agora. Isso tem a ver com a personalidade da pessoa, com o caráter, com o jeito da pessoa”.

Em três anos e meio, Marchezan trocou mais de 20 vezes de secretários, com cerca de 40 nomes tendo ocupado um cargo no primeiro escalação da sua administração. Caso permaneçam até o fim do mandato, apenas os secretários de Educação, Adriano Naves de Brito, e da Cultura, Luciano Alabarse, terão ocupado seus postos por quatro anos. Somando cargos de primeiro e segundo escalão, foram 15 baixas somente no primeiro ano de governo.

Em agosto deste ano, veio à tona que Marchezan chegou a romper com a Bandeirantes, orientando que membros do governo não concedessem entrevistas às emissoras do grupo no Estado. Vale lembrar que, apesar das insistências, ao longo de quatro anos, o prefeito nunca aceitou convites de entrevistas feitos pelo Sul21, apesar de ter respondido a perguntas em coletivas e secretários term conversado com a reportagem. Para esta matéria, mais uma vez foi feito um pedido de entrevista com o prefeito, para o qual não houve resposta. O atual líder do governo na Câmara, Mauro Pinheiro, também foi contatado, mas não respondeu as perguntas encaminhadas até o fechamento.

Vereadores também questionam a situação econômica do município, sobre a qual, em vários momentos, o prefeito fez os piores diagnósticos, tomando como justificativa para cortes em diferentes setores. “Eu vi uma dificuldade de entendimento de que Porto Alegre é uma cidade plural. Eu vi a gestão dele como um grande desperdício de tempo e de energia para a cidade. (…) Eu vi precarizar os serviços da cidade sob uma suposta falência que, ao fim e ao cabo, não era verdadeira. Isso a gente dizia desde o início”, diz Thiago Duarte.

Como exemplo dessa precarização, Mauro Zacher destaca os problemas apresentados pelo Departamento Municipal de Água e Esgoto (DMAE) ao longo dos três últimos anos. “É possível, num órgão superavitário, faltar água? Faltou água nos quatro anos, na Lomba do Pinheiro, no Belém Velho. E não foi só no pico do verão. Faltou água por falta de obra, de investimento, porque a gente conhece como o PSDB funciona quando assume o governo. Eles querem privatizar, querem vender tudo e acabam com aquilo que é público. Assim como o Mercado Público. O segundo piso não tá entregue por um capricho dele, porque ele queria fazer essa nova licitação”, diz.

Nagelstein (dir.), que presidiu a Câmara em 2018, fez parte da base aliada em 2019, mas avalia que governo fracassou |Foto: Guilherme Santos/Sul21

Relação “autoritária” com a Casa

Para o vereador Marcelo Sgarbossa, uma das marcas do “autoritarismo” e da falta de interesse da gestão Marchezan pela articulação política com os vereadores foi a “banalização” do uso do regime de urgência, mecanismo que permite que projetos não precisem passar por debates e audiências públicas em comissões e passem a trancar a pauta da Câmara 45 dias após serem protocolados.

“Quando dizem que o Marchezan é vítima da Câmara, é o contrário, a Câmara passou três anos e meio debatendo majoritariamente os projetos do Executivo”, diz. “Ele banalizou o regime de urgência para fazer com que a Câmara sempre discutisse os projetos do Executivo. Foi impressionante, na legislatura passada, os projetos do Executivo vinham como exceção, mas a regra era votar projetos que partiam da Câmara. Agora aconteceu o contrário, faz três anos e meio que a gente vota só projetos do Executivo, ou porque tá trancando a pauta ou porque está chegando um novo pacote. E grande parte deles rejeitados”.

O petista avalia que Marchezan utilizou do expediente para governar por “imposição”. “Ele mandava com regime de urgência, depois de 45 dias trancava a pauta. Quando aquele trancava, tinha outro chegando e trancando. Então, criou um efeito em cadeia, tava sempre alguma coisa trancando. E sempre estava pra vir um novo pacote. Ao mesmo tempo que, quando tavam prontos para votar, os projetos que eles percebiam que iam perder, eles retiravam. Então, isso é uma demonstração clara de que o projeto não tinha urgência, o que tinha era o uso do instrumento como uma forma de controle da agenda de discussão da Câmara”.

Ex-aliada, Mônica Leal também avalia que o prefeito exagerou durante todo o mandato no uso de mecanismos que permitiam a ele controlar a pauta da Câmara e barrar projetos de vereadores. “O prefeito sempre adotou uma linha desrespeitosa em relação ao Legislativo, submetendo projetos em blocos e de forma açodada, utilizando-se de meios forçados, como o regime de urgência, e transferindo a responsabilidade de falhas de formulações do Executivo, ao Poder Legislativo”, disse.

Janta destaca que, em diversas ocasiões, vereadores articularam junto à liderança do governo e a secretários a aprovação de projetos ou emendas originadas na Casa. Contudo, mesmo após o suposto aval do governo, eles eram vetados por Marchezan, acabando por ser mais um elemento a ser acumular na panela de pressão que se tornou a relação entre as partes. “Seria tipo um copo d’água. O copo tava pela metade e esse copo foi enchendo, enchendo, e não tem como tu segurar para que não transborde”, diz Janta.

“O governo dá acordo e aprova tua emenda, daí tu vota a favor. Aí o prefeito faz um veto parcial e veta tua emenda, daí tu não consegue derrubar o veto, porque precisa de 24 votos. Isso aconteceu algumas vezes. Ou vetar projetos de vereadores da própria base que tinham costurado com o prefeito”, diz Sgarbossa. “A gente notava no plenário um sentimento de traição”.

A primeira votação do IPTU é simbólica pelo fato de que, dias antes da derrota, a liderança do governo contava como certa a aprovação do projeto. Apesar da reticência com o aumento de impostos, a Casa entendia que a aprovação de algumas emendas poderia suavizar os aumentos que seriam impostos a setores da sociedade. Até mesmo a bancada do PT compreendia que poderia votar junto com o governo caso algumas demandas fossem atendidas. O governo, no entanto, optou por não ceder às demandas e foi derrotado. “Tu não mexe nas tuas convicções mais íntimas se o imóvel, em vez da faixa de 800 mil, for de 900 mil ou 1 milhão”, exemplifica Sgarbossa.

Outro exemplo marcante da falta de diálogo foi o fato de o prefeito nunca ter conseguido aprovar nenhuma proposta de seu pacote de mobilidade urbana, apresentado em 27 de janeiro de 2020, propondo medidas que visavam conceder passe livre aos trabalhadores e reduzir para mais da metade a tarifa geral, caso todos os projetos fossem aprovados.

Sgarbossa, que se caracterizou por ter o tema da mobilidade como principal pauta de seu mandato, diz que o pacote colocou, de certa forma, a oposição num “córner”, porque trazia ideias interessantes e, apesar de ter problemas e precisar ser melhorado, na sua avaliação, merecia a apreciação da Casa, com realização de debates em comissões e audiências públicas. Contudo, o prefeito preferiu convocar uma sessão extraordinária para votar o pacote na mesma semana em que ele foi apresentado.

“Só tem um probleminha, não discutiu antes com os vereadores. A gente foi chamado para a sessão extraordinária dias antes. Uns vieram da praia, vieram não sei da onde. O dia da votação é o dia de festa, cada um firma sua posição e aberta o botão. Não é ali que que se convence um ou outro. Tu não pode queimar etapas”, diz o petista. “É a típica coisa que o jeito de fazer estraga o que fazer”, complementa.

Roberto Robaina identifica a votação de um dos projetos do pacote, o que autorizava o início do processo de extinção da categoria dos cobradores de ônibus, como um momento chave para a perda total de governabilidade da gestão municipal, uma vez que bancadas que continuavam como independentes, mas que ainda davam votos favoráveis ao prefeito em alguns projetos, como PSB e PRB, ajudaram a derrotar o governo.

O pacote seria reapresentado em agosto. Contudo, na véspera das eleições, com todos os vereadores “sensíveis” a votar temas polêmicos, não há previsão de quando ele deva entrar na pauta.

Em sua defesa, sempre que as acusações de falta de diálogo são mencionadas em entrevistas, o prefeito enumera as reuniões que fez com os vereadores.

Para Sgarbossa, o que faltou foi transformar essas reuniões em espaços em que os vereadores realmente fossem ouvidos. “Escutar não é fazer reunião, não adianta fazer dez reuniões e ficar contando. A reunião tu tem que olhar o outro e entender o lado dele, entender os limites dele, o que ele tá afim de fazer, o que não tá”, diz. “O Marchezan nunca estabeleceu uma relação de diálogo com a Câmara, porque diálogo é mais do que tu chamar para uma reunião, coisa que ele não fez. Tem algumas coisas que são simbólicas. As vezes que ele foi na Câmara, sempre foram idas em que ele falava e ia embora. Nunca teve um senta, conversa e uma escuta real. Então, sempre foi conflituoso. Foi muita live, muito vídeo, e pouca conversa olho no olho”.

Roberto Robaina (dir.) liderou a CPI, que foi relatada por Wambert Di Lorenzo, outro ex-aliado do prefeito | Foto: CMPA

Pandemia: momento de união?

Após a Câmara aprovar, no dia 31 de agosto, o relatório da CPI que pediu o indiciamento de Marchezan e de duas pessoas ligadas ao seu governo, o prefeito acusou os vereadores de estarem desconectados da realidade ao promoverem “factoides” quando deveriam estar focados no enfrentamento da pandemia do novo coronavírus. Contudo, a pandemia foi mais um elemento de desgaste da relação.

Para Janta, em nenhum momento a Câmara participou das conversas para o enfrentamento do vírus ou os vereadores tiveram suas ideias ouvidas. “Eu acredito que nós tínhamos muito a contribuir por representar setores, representar segmentos da sociedade, interesses econômicos”, diz.

A incapacidade (ou falta de vontade) do prefeito de aglutinar sua base na Câmara no enfrentamento da pandemia ficou evidente no final de abril, quando um projeto liderados pelos partidos de direita ampliando o rol de atividades essenciais liberadas para abrirem as portas foi aprovado pela Câmara e depois vetado pelo prefeito. O veto também foi o destino de outros projetos, como um de autoria de Claudio Janta que suspendia a cobrança, pela Prefeitura, de taxas dos permissionários de táxis e veículos escolares enquanto vigorar o estado de calamidade pública na Capital. Aprovado com 26 votos favoráveis e apenas seis contrários, o projeto foi vetado pelo prefeito, mas o veto acabou sendo derrubado pela Câmara nesta semana. “A Câmara está trabalhando, mesmo não sendo ouvida, ela começou a legislar sobre a questão da pandemia”, diz o vereador.

Mauro Zacher avalia que foi o próprio fato de Marchezan não aceitar as contribuições da Câmara que não permitiu um enfrentamento coletivo ao vírus. “O momento deveria ser de união, de radicalização do diálogo. Neste momento, todos têm muito a contribuir, inclusive aqueles da oposição. Mas o que nós vimos foi um prefeito que tentou se promover durante a pandemia. Ele usou e abusou da pandemia para tentar usar o espaço na mídia e tentar se fortalecer do desgaste político”, diz.

Ele também acredita que a pandemia expôs a forma contraditória com a qual Marchezan governou a cidade. “Hoje, nós estamos com a ocupação das nossas UTIs, em mais de 90%, o que era a argumentação do governo lá atrás para que mantivesse a restrição do comércio, agora esse governo não vale mais”, diz.

Para o primeiro líder do governo na Câmara, a gestão poderia ter sido diferente se o prefeito, de fato, estivesse disposto a dialogar com os vereadores. “O prefeito conseguiu aprovar vários projetos no início de governo, sem ter uma base sólida, mas conseguiu através de conversa e diálogo de parte da Câmara. Eu acho que o que faltou, exclusivamente, nesse processo, foi diálogo”, diz Claudio Janta. “O que faltou foi ouvir e expor os pontos de vista e a compreensão de que tem horas que um projeto de um vereador é importantíssimo para ele, para o seu mandato, para quem ele representa”, complementa.

Sgarbossa avalia que as dificuldades enfrentadas pelo prefeito podem passar pela própria trajetória política dele. “Ele tem um sobrenome forte, então talvez não tenha precisado exercitar essa humildade de candidato, de político que tem que ouvir, que tem que aguentar o cara que vem reclamar e vem te contradizer. Não, ele já era um Marchezan”.


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