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16 de setembro de 2020
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17:22

Comunidades Nova Era impulsionam movimento QAnon no Brasil

Por
Sul 21
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Imagem popular de Ashtar Sheran, um alienígena, segundo algumas crenças da Nova Era. Ilustração de www.angels-light.org. Os proprietários do site encorajam a disseminação de sua biblioteca de imagens.

Taisa Sganzerla
Global Voices

Cerca de duas dúzias de pessoas vestidas de verde e amarelo se reuniram na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, no dia 23 de agosto, no que parecia ser mais um protesto a favor do presidente brasileiro Jair Bolsonaro. Protestos do gênero tornaram-se comuns desde o início que a pandemia da COVID-19 chegou ao país no início do ano.

Mas quando um jovem vestindo uma camiseta com a bandeira dos Estados Unidos em forma de caveira começou a falar, ficou claro que havia algo diferente — e um pouco estranho — naquele encontro.

“Eu vou usar uns termos aqui que vou ter que alterar porque são restritos pela censura da internet. Se eu usar esses termos explicitamente, a censura derruba”, diz o jovem em um vídeo do evento que ele mesmo publicou no Facebook. Ele mostra ao grupo um poster com o título “Pesquisar”, seguido de uma lista de termos provavelmente desconhecidos para muitos brasileiros — “Nova Ordem Mundial”, “Pizzagate”, “Operação Storm”. 

Esses termos estão todos relacionados ao QAnon — um movimento conspiracionista surgido nos Estados Unidos que acredita que o Presidente Donald Trump está lutando contra uma elite global, que há séculos manteria um esquema de pedofilia, através de uma operação secreta batizada de “Storm” (tempestade, em português). 

O movimento surgiu a partir de uma teoria da conspiração de 2016 conhecida como Pizzagate, que afirmava que membros do partido Democrata, incluindo Hillary Clinton, conduziam um esquema secreto de tráfico de crianças a partir do porão de uma pizzaria em Washington DC. Cerca de um ano depois da teoria ter sido refutada, um usuário anônimo, se identificando como “Q Clearance Patriot,” publicou uma mensagem misteriosa no fórum 4chan sugerindo que Clinton seria presa nos próximos dias — o que nunca aconteceu. “Q Clearance” é um protocolo de segurança do governo americano que permite acesso a materiais confidenciais.

“Q” fez várias outras publicações alegando ter informações secretas. Nos últimos três anos, seus seguidores congregaram-se em um delírio coletivo global, presente em todas as grandes plataformas de redes sociais, dedicado a decifrar seus “drops” (como os adeptos chamam os posts feitos pelo usuário “Q”).

O QAnon uma abreviação entre “Q” e “Anon,” de anônimos surgiu nos EUA, mas sua plasticidade o torna facilmente adaptável ao contexto brasileiro. Bolsonaro — um adorador de Trump e descrente da gravidade do coronavírus — chegou ao poder com a promessa de livrar o Brasil da corrupção, do esquerdismo e outros males, e conta com uma legião de apoiadores altamente conectados que desconfia veementemente da mídia tradicional. 

Não é surpreendente que o linguajar do QAnon acabasse estampado em cartazes de um protesto bolsonarista na praia de Copacabana. O que talvez seja insuitado é o nome de um canal no YouTube, citado naquele dia em um dos cartazes em meio a uma lista de YouTubers QAnon a serem seguidos: “Ensinamentos da Era de Aquário”.

Embora o nome não aponte nenhuma ligação imediata com a mitologia QAnon, esse é um dos maiores canais no YouTube que apoia abertamente o QAnon no Brasil. Luciano Cesa angariou uma legião de mais de 200.000 inscritos em menos de dois anos, e seu sucesso mostra um interesse crescente  — especialmente entre grupos brasileiros de Nova Era  — nas crenças do movimento. 

Essas comunidades espirituais e pseudocientíficas, que encampam uma variedade de práticas como xamanismo, cura por cristais, reiki, yoga e numerologia, têm papel proeminente na introdução e domesticação das narrativas QAnon para públicos fora dos Estados Unidos.

De músico da Nova Era a influenciador QAnon

Luciano Cesa explica o significado de uma famosa ilustração de David Dees a seus seguidores brasileiros. (Reprodução/Youtube)

Muito antes de Luciano Cesa aderir ao QAnon, ele fundou um selo musical chamado “New Age Music”, produzindo mais de 15 discos. Como mostra o conteúdo de suas redes sociais, Cesa tocou em várias bandas, casamentos e escolas públicas em cidades do Rio Grande do Sul, estado onde vive, no Sul do Brasil.

Em novembro de 2018, Cesa publicou um dos primeiros vídeos do seu canal, intitulado “A interseção divina na liberação do Brasil”, no qual elogia a então recente vitória de Bolsonaro nas eleições presidenciais. Nos meses seguintes, ele compartilharia uma variedade de conteúdo Nova Era e de auto-ajuda.

No dia 7 de abril deste ano, Cesa publicou um vídeo diretamente referenciando teorias do QAnon chamado “Forças Armadas em ação em todo o mundo”, alegando que Trump estava se preparando para realizar “prisões em massa mundialmente”. Seu canal explodiu — o vídeo atraiu dezenas de milhares de visualizações (mais de 197.000 até hoje), um salto quando comparado a outros vídeos que mal alcançavam a marca de 10.000 visualizações.

Os dados abaixo, gerados pela ferramenta de análise de mídias sociais Popsters, mostra o momento exato dessa explosão:

Dados da ferramenta de análise de mídias sociais Popsters do canal “Ensinamentos da Era de Aquário.”

A partir deste momento, Cesa passou a publicar uma onda de vídeos especificamente relacionados ao QAnon, frequentemente atraindo mais de 100.000 visualizações.

No fim de maio, Olavo de Carvalho, o ex-astrólogo que costuma ser creditado como guru ideológico de Bolsonaro, compartilhou um vídeo de Cesa.

Em junho, Cesa passou a realizar transmissões ao vivo para divulgar atualizações de teorias relacionados ao QAnon, com apoio de slides de PowerPoint e informações que alega ter recebido de “fontes privilegiadas”. Cesa responde perguntas do público através dos chats ao vivo e recebe doações pelo YouTube Giving.

Cesa serve uma versão do menu habitual do QAnon: a COVID-19 é uma falsa crise criada por uma “elite obscura”, a quem costuma se referir como “reptilianos”, “estado profundo”, “Illuminatis”, “Nova Ordem Mundial”; a chanceler alemã Angela Merkel, o senador norte-americano Bernie Sanders e a atriz Angelina Jolie, entre outras personalidades, foram acusados ou presos por tráfico de crianças e suas imagens que aparecem na mídia são, na realidade, clones ou sósias; terremotos recentes na América Central foram causados por explosões em túneis secretos usados para atravessar crianças clandestinamente; um dos túneis está localizado sob o famoso Pão de Açúcar, no Rio de Janeiro.

Cesa não respondeu aos pedidos de entrevista sobre seu trabalho, enviados pelo Global Voices.

Em um sinal significativo de domesticação das teorias QAnon, Cesa afirmou, em transmissões ao vivo nos dias 23 e 26 de agosto, que João de Deus, líder espírita brasileiro que foi preso em 2018 após mais de 500 mulheres o acusarem de abuso sexual, teria aceitado um acordo de delação premiada em que revelaria que organizou orgias com menores de idade para os ministros da Supremo Tribunal Federal do Brasil (muitos apoiadores de Bolsonaro veem o Supremo Tribunal Federal como inimigo do presidente).

João de Deus não negociou nenhum acordo de delação com as autoridades, de acordo com a agência de checagem Aos Fatos.

Ainda assim, Cesa apresentou um único tuíte publicado por Alan Lopes, conhecido influenciador bolsonarista, como prova. A afirmação sem provas se disseminou rapidamente no WhatsApp brasileiro através de memes que diziam que João de Deus seria o “Jeffrey Epstein brasileiro”. Cesa apagou os dois vídeos mencionados, mas eles fora republicados por outra conta — provavelmente um de seus seguidores. Lopes também deletou seu tuíte, mas o cache do Google o manteve.

Luciano Cesa compartilha tuíte de Alan Lopes como evidência de que João de Deus, líder religioso, preso depois de acusações de abuso sexual, iria envolver o Supremo Tribunal Federal em acordo de delação. João de Deus nunca acordou qualquer delação com as autoridades. (Reprodução/Youtube)

Os vídeos de Cesa se destacam pela abordagem espiritualista e sobrenatural. Com frequência, ele oferece meditação ao vivo para seus seguidores. Sua visão de mundo é baseada na ideia de que Trump, junto a outros aliados, como Bolsonaro, é membro de uma “aliança terrana” que estaria ajudando um grupo de aliens benévolos a limpar as forças obscuras do planeta que, enfim, “transcenderia” à Era de Aquário, um período de iluminação. Embora tudo isso possa parecer saído de roteiro de uma ópera espacial, esses termos serão familiares àqueles que acompanham as conspirações sobre OVNIs que correm o mundo há décadas.

“É difícil mapear essas comunidades”, diz Vitor Campanha, pesquisador da área de ciências da religião da Universidade Federal de Juiz de Fora, em Minas Gerais, dedicado a estudar movimentos de ufologia, “porque as pessoas que gravitam em torno daquilo que chamamos de ‘crenças da Nova Era’ nunca se identificam como new agers. O que alguns deles dirão é que têm uma espiritualidade independente”.

Ao Global Voices, Campanha diz que membros dessas comunidades costumam se descrever como “buscadores” — buscadores da verdade, do auto-aprimoramento. “São também comunidades que têm o hábito de repassar conhecimentos, então, se uma pessoa faz um curso de, digamos, curas xamânicas, é bem provável que ela também vá ensinar seu próprio curso. É por isso que há tanta descontextualização, às vezes de rituais ancestrais, nesses círculos de Nova Era”.

Assim, comunidades de Nova Era têm algumas coisas em comum com membros do QAnon, que frequentemente se descrevem como “pesquisadores” abertos a novas verdades. Conspirações QAnon costumam ser apresentadas em pedaços incompletos — termos e conceitos soltos os quais os possíveis aderentes são convidados a explorar por conta própria, e depois descontextualizar e rearranjar conforme divulgam seus achados.

A ideia de um governo oculto que comanda tudo pelas sombras também é recorrente em círculos de Nova Era. “Há essa desconfiança das instituições, tais como a ciência convencional e as religiões dogmáticas”, diz Campanha, “então, eu consigo ver essa cultura facilmente se transferindo para essas teorias conspiratórias, com políticos que se apresentam como ‘outsiders’, como Trump e Bolsonaro, sendo vistos como antagonistas desse governo oculto”.

A jornada de uma seguidora

Mara Carvalho, 60, é uma psicóloga, numeróloga, terapeuta floral, taróloga, escritora espiritual e uma YouTuber principiante de Santo André, no estado de São Paulo. Junto com a amiga Márcia Rodrigues, ela conduz um pequeno canal no YouTube chamado “Dicas para uma boa ascensão”. A dupla publicou 614 vídeos em 12 meses, atraindo pouco mais de 1.200 inscritos.

No fim dos anos 1990, Carvalho descobriu a “Grande Fraternidade Branca“, um conceito da Teosofia que se refere a um grupo de seres iluminados (em muitas comunidades da Nova Era, ela é frequentemente intercambiável com o Comando Ashtar, um grupo de aliens do bem).

“Eu me vejo como uma discípula da fraternidade, que não exige rituais. É uma conexão direta que eu mantenho com os mestres, uma conexão que tenho há 22 anos”, contou ela em entrevista ao Global Voices.

A maioria dos vídeos de Carvalho e Rodrigues mostra as duas lendo em voz alta textos sobre tópicos relacionados à Nova Era. Mas em março de 2020, com a chegada da pandemia do novo coronavírus ao Brasil, elas começaram a fazer referências ao QAnon, com menções à “cabala que controla o mundo” e conceitos do QAnon como “o reset global”.

No dia 6 de junho, Mara Carvalho publicou um vídeo intitulado “Q, o plano para salvar a Terra”. Nele, ela lê um texto que classifica como “a coisa mais importante que já leu no canal”. Ela parece não saber que o texto que está recitando é uma tradução em português de um vídeo QAnon seminal, o “Q, the plan to save the Earth”, originalmente publicado em junho de 2018 por “Joe M.”, uma das contas QAnon mais famosas da internet.

Poucos dias depois, Carvalho publicou um vídeo chamado “Operação Storm”, se referindo à crença QAnon de limpeza geral de forças do mal. Nos dois vídeos, ela cita Luciano Cesa, a quem ela e a colega de canal seguem de perto porque, diz Carvalho, ele fala sobre “a dimensão espiritual da operação”.

“Depois de seguir o Luciano Cesa, nós tivemos acesso à informação sobre o desmantelamento dessa rede de pedofilia. Um dia, a espiritualidade me disse que eu tinha que falar sobre essas coisas também, embora eu não quisesse, no início”, diz ela. “Nós estamos em uma terceira guerra mundial, uma guerra com armas biológicas e informação e contra-informação”.

Quando perguntada sobre o que ela entende por QAnon, ela disse: “Para mim, é um grupo que trabalha pela luz — que está ajudando a trazer a verdade para as pessoas”.

Há muitos canais de Nova Era e páginas semelhantes às de Cesa e Carvalho no Brasil, que compartilham livremente conspirações QAnon, como estas:

O YouTuber Gledison de Paula, em seu canal Ascenção Planetária, cita um “texto canalizado” (como pessoas que acreditam em OVNIs chamam mensagens que dizem ser enviadas por aliens) explicando como os Pleiadianos (um grupo de aliens benignos, segundo a conspiração) estão envolvidos na Operação Storm. De Paula também administra um grupo de 12,000 membros no Facebook e um canal no Telegram. (Reprodução)
Vilma Capuano, com 25.000 seguidores, diz ser interessada em xamanismo, numerologia, reiki, entre outras coisas. Ela diz neste post que COVID-19 significa “certificado de vacinação com inteligência artificial”, uma teoria da conspiração já derrubada. O texto recebeu mais de 800 reações e 153 comentários e é, provavelmente, uma tradução de um texto em inglês.

 

Com 80.000 membros, “Start da 5a dimensão” é provavelmente uma das maiores páginas Nova Era em língua portuguesa no Facebook. Neste post, os administradores anunciam que a plataforma havia deletado um grupo paralelo de QAnon, e divulgam a criação de um novo grupo. Hashtags e símbolos do QAnon aparecem em cheio aqui.

É fácil considerar essas comunidades como essencialmente inofensivas. Mas, como visto acima, esses grupos têm ajudado a espalhar desinformação sobre a COVID-19, consistentemente. Ainda mais preocupante são os vários casos de violência perpetuados por apoiadores do QAnon pelo mundo.

Em fevereiro, um homem armado abriu fogo em dois bares de shisha em Hanau, na Alemanha, matando nove pessoas. Ele deixou para trás um rastro digital de adoração ao presidente dos EUA, Donald Trump, e de crenças em teorias da conspiração de tráfico de crianças.

Comunidades de Nova Era, internacionais em seu alcance, são uma via segura para que teorias QAnon se espalhem a partir dos EUA e se adaptem a contextos como o do Brasil, enquanto chegam a um público que pode ou não ser parte da base de apoiadores de Bolsonaro.

Na verdade, são exatamente as comunidades que se dizem apolíticas, como dos seguidores da Nova Era, que se mostram mais vulneráveis à influência de movimentos fascistas.

Em 20 de agosto, durante uma coletiva de imprensa na Casa Branca, Donald Trump foi questionado sobre o QAnon pela primeira vez. “Eu não sei muita coisa sobre eles, exceto que eles gostam muito de mim”, disse. Quando uma repórter emendou com uma explicação de que o ponto central da teoria deles é de que o presidente dos EUA está lutando contra uma elite de pessoas que abusam de crianças, ele respondeu: “Eu não sei nada disso, mas isso é algo ruim?”.

A resposta ardilosa de Trump — que conseguiu, simultaneamente, fugir da pergunta enquanto parecia expressar apoio ao movimento — mostra os desafios que tanto repórteres e a sociedade enfrentam quando confrontam teorias da conspiração.


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