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29 de maio de 2020
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12:16

Impunidade dos crimes da ditadura ajuda a fortalecer militares no governo Bolsonaro

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Sul 21
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Desde que foi eleito, Jair Bolsonaro cada vez mais se cerca de militares em seu governo. Foto: Marcos Correa/PR

Luciano Velleda

O Instituto Vladimir Herzog se prepara para entrar, nos próximos meses, com uma nova ação no Supremo Tribunal Federal (STF) com o objetivo de provocar a reinterpretação da Lei da Anistia. Desde o fim da ditadura, em 1985, a Justiça brasileira nunca prendeu qualquer militar ou agente civil responsável pelos crimes de tortura, assassinato ou ocultação de cadáver cometidos durante os 21 anos do período de exceção. Apesar das muitas ações propostas pelo Ministério Público Federal (MPF) para responsabilizar autores de crimes perpetrados durante a ditadura (1964-1985), o judiciário sempre se valeu da Lei da Anistia para impedir que tais tentativas avançassem. O próprio STF, em 2010, decidiu manter a interpretação da lei que inviabiliza punir agentes públicos acusados de crimes.

“Isso é fundamental. Quero acreditar que o STF tenha preocupação real com a situação do Brasil e se coloque como guardião da Constituição”, afirma Rogério Sottili, diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog. Auxiliado por advogados de um escritório internacional, Sottili explica que a intenção do Instituto é oferecer elementos para que os ministros da Suprema Corte possam voltar a estudar o tema e reinterpretar a Lei da Anistia.

Para ele, o Brasil não pode mais seguir na direção contrária a pactos internacionais, assinados espontaneamente, e por isso é preciso pautar o assunto novamente. “O Brasil não tem memória, não tem informação. Precisamos abrir esse debate na sociedade brasileira e abrir novas consciências.”

Sottili diz que o STF, em 2010, quando decidiu manter a interpretação que impede a punição dos crimes cometidos pela ditadura, pode ter avaliado que o país estava numa situação boa, do ponto de vista democrático, e era preferível não mexer nas feridas do passado. A consequência daquele julgamento, afirma ele, é a atual posição do governo de Jair Bolsonaro (sem partido) em se sentir confortável para assumir posições autoritárias e colocar o STF “na berlinda”.

“Enquanto não responsabilizar judicialmente, o Brasil não vai mudar. Temos que prender os assassinos e os torturadores. Enquanto não fizermos isso, todo mundo vai fazer o que quer”, acredita Rogério Sottili. “Estamos pagando o preço disso.” Por esse raciocínio, o diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog entende que as constantes ameaças de Bolsonaro à democracia e às instituições da República, podem favorecer o debate sobre a importância de rever a Lei da Anistia.

“Estamos vivendo uma situação dramática, estão sendo testados os limites institucionais da democracia. Há um jogo que pode levar o país para o caos”, afirma Sottili, destacando que as instituições que poderiam impor limites, estão “acovardadas ou coniventes”. Para ele, o governo de Bolsonaro já ultrapassou todos os limites. “Em outros países, estariam depostos e presos”, exclama.

Diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog, Rogério Sottili foi secretário Especial de Direitos Humanos entre 2015 e 2016. Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

O inimigo interno

A procuradora-regional da República e ex-presidenta da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, Eugênia Gonzaga, observa com preocupação as recentes manifestações dos ministros militares do governo federal. “A situação é bizarra, vemos uma escalada autoritária.”

Ela chama a atenção para a postura das Forças Armadas, cada vez mais saindo do seu dever constitucional de defesa externa e se voltando para a defesa interna, porém “do lado que eles acham correto”. “Eles se convenceram que defender a pátria, é defender a pátria conservadora, a propriedade. Eles se arvoram o papel de manter a democracia”, enfatiza a procuradora.

“Infelizmente, o Brasil não fez a transição para a democracia livre da influência das Forças Armadas, apesar do que está inscrito na Constituição. Eles sempre interferiram ostensivamente na transição democrática”, analisa a ex-presidenta da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, exonerada cerca de seis meses após a posse de Bolsonaro. “Estamos colhendo o que plantamos, e o STF também.”

Eugênia Gonzaga recorda o voto do ex-ministro da Suprema Corte, Eros Grau, relator da ação que propunha a revisão da Lei da Anistia, em 2010. Ao optar por manter a interpretação que impede a responsabilização dos crimes cometidos pela ditadura, ela avalia que, desde então, os militares foram crescendo cada vez mais no jogo político do país. Como exemplos recentes, cita operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) durante os governos de Dilma Rousseff (PT) e a intervenção militar no Rio de Janeiro, no governo de Michel Temer (MDB). A intervenção, aliás, foi comandada pelo general Walter Souza Braga Netto, atual ministro da Casa Civil do governo Bolsonaro.

“O STF agora é a nossa esperança, é o único que tem o poder constitucional de impedir o abuso. É a nossa reserva e, por isso, está sofrendo ataques”, afirma a ex-presidenta da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos. Eugênia lembra que, desde 2015, descansa na gaveta do ministro Luiz Fux um recurso contra a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 153), que propôs rever a Lei da Anistia e que foi negada pelo STF, em 2010, por 7 votos a 2. “É um tema tabu. Infelizmente é o que vemos agora. É realmente assustador ver que está se confirmando tudo aquilo que se disse.”

A procurador da República lamenta que os governos eleitos após o fim da ditadura não tenham enfrentado o assunto com a devida urgência. Apesar de avanços, como a criação da Comissão da Anistia e da própria Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, questões fundamentais como a revelação dos documentos secretos das Forças Armadas nunca vieram à tona. “Ninguém espera nada do governo Bolsonaro, a gente esperava dos outros.”

A procuradora regional da República, Eugênia Gonzaga, diz que atuais ameaças à democracia são consequência da falta de uma Justiça de Transição. Foto: Reprodução/TVT

Boa imagem

Apesar da críticas, Eugênia Gonzaga também destaca aspectos positivos das Forças Armadas, desde que no seu papel constitucional. Como exemplo, fala da alta capacidade científica, tecnológica e de organização. “Ter as forças armadas para ajudar numa catástrofe civil, é perfeito. Eles são admiráveis para fazer isso mesmo, é para isso que servem internamente, e não para ir pro Ministério da Saúde”, pondera.

O que a preocupa é a distorção das funções das Forças Armadas. Uma distorção, analisa ela, moldada ao longo das últimas décadas a partir do cultivo de uma boa imagem, criada inclusive com a ajuda da mídia.

Segundo a procuradora da República, a falta de responsabilização pelos crimes cometidos na ditadura, a falta de memória, aliada ao modo “inteligente” de cultuar a própria imagem, tem feito com que uma parcela da população brasileira veja as Forças Armadas, e o Exército, particularmente, com bons olhos. “Não veria problema de serem admirados, se tivesse havido Justiça de Transição.”


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