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11 de março de 2020
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12:04

Ordem ou progresso: entusiasmo e receios marcam o início das escolas cívico-militares do RS

Por
Sul 21
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A Escola Estadual Carlos Drummond de Andrade, de Alvorada, é uma das cinco escolas no RS a implementar o projeto piloto das escolas cívico-militares. Foto: Luiza Castro/Sul21

Luciano Velleda

Recostada num poste de luz em frente à Escola Estadual Carlos Drummond de Andrade, em Alvorada, sob o sol forte das 13h de um dia quente de março, a estudante A.C, de 15 anos, não está nada feliz com os novos rumos do colégio. Em 2020, ao voltar das férias de verão, se deparou com um conjunto de regras de comportamento e vestimenta antes inexistentes. Seu longo cabelo castanho não pode mais balançar ao vento. Agora, só preso em coque, no topo da cabeça. Aos meninos de cabelo comprido, nem o coque é opção, é preciso cortar mesmo. Nada de brincos, nada das calças jeans rasgadas que voltaram à moda. Saia muito curta também não.

“Eles mudaram só o jeito da gente ser, como se isso fosse errado. Deveriam mudar na educação e não no nosso estilo. Ninguém tá aceitando muito bem”, afirma a aluna do 9º ano, na escola desde o 6º.

Ela comenta que desde o final do ano letivo de 2019, quando já se sabia que a Carlos Drummond de Andrade havia aderido ao Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares proposto pelo governo de Jair Bolsonaro (sem partido), informações sobre mudanças circulavam no colégio, mas sem muita precisão do quê exatamente.

Além das novas regras de vestimenta, a adolescente comenta que os alunos estão sendo orientados sobre a chegada dos chamados monitores, reservistas da Brigada Militar (BM) e do Corpo de Bombeiros que, a partir de abril, estarão no pátio das cinco escolas do Rio Grande do Sul que aderiram ao projeto. A função dos monitores será a de atuar “preventivamente na identificação de problemas que possam influenciar no aprendizado e convivência social do cidadão em desenvolvimento, promovendo condições que permitam um ambiente adequado e facilitador para a aquisição de conhecimentos e o seu desenvolvimento integral”, conforme definido no edital de seleção da Secretaria Estadual de Educação (Seduc).

“Dizem que não poderemos usar celular no recreio. Parece que a gente tá na cadeia”, critica a estudante da escola Carlos Drummond de Andrade. Junto com o colégio de Alvorada, aderiram ao programa das escolas cívico-militares a Escola Estadual de Ensino Médio Alexandre Zattera, de Caxias do Sul; o Instituto Estadual Osvaldo Aranha, de Alegrete; a Escola Municipal Cívico Militar de Ensino Fundamental São Pedro, em Bagé; e a Escola Municipal de Ensino Fundamental do Complexo Elvira Ceratti, em Uruguaiana. Em todo o Brasil, são 54 escolas de 22 estados e do Distrito Federal. O Rio Grande do Sul e o Pará são os estados com o maior número de adesões, ambos com cinco escolas.

Se a aluna A.C não gostou das mudanças ocorridas até agora, o mesmo não se pode dizer de sua mãe. A estudante diz que a mãe gostou da ideia da escola cívico-militar por acreditar que dará mais segurança e irá melhorar o ensino.

O cabelo preso em coque é obrigatório para as alunas da escola Carlos Drummond de Andrade, medida que tem desagradado os estudantes nesse início de ano. Foto: Luiza Castro/Sul21

Resgate de valores

Diretor-geral da Secretaria Estadual de Educação (Seduc) e ponto focal do programa no Estado, Paulo Magalhães explica que há dois módulos de adesão ao Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares propostos pelo Ministério da Educação (MEC). Em um, o governo federal remunera os monitores e o governo estadual se responsabiliza pela manutenção da escola; no outro, a União transfere R$ 1 milhão por ano para o governo estadual e este se encarrega de pagar os monitores e usar o recurso para melhorias nas escolas, incluindo o pagamento dos uniformes. O dinheiro é proveniente do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). O governo de Eduardo Leite optou pelo modelo de transferência dos recursos. Quanto ao ingresso dos alunos, a Seduc informa que não há alterações em relação às outras escolas estaduais.

Entre os requisitos exigidos pelo MEC para adesão ao projeto estão o número de alunos, com o mínimo de 500 e o máximo de mil, e a instituição de ensino estar localizada em área de vulnerabilidade. No caso de Alvorada, o município é o mais violento do Estado. Já no caso de Alegrete, que é uma escola situada na zona central da cidade, o critério escolhido partiu de um pedido do MEC para que houvesse alguma escola em cidade onde há base militar.

Talvez o ponto mais polêmico do programa, Paulo Magalhães enfatiza que o trabalho dos monitores será “da sala de aula pra fora”, enquanto “da sala de aula pra dentro”, a parte pedagógica segue sob responsabilidade da Seduc. O edital de seleção no Rio Grande do Sul estipula que 50% dos escolhidos sejam mulheres, escolha feita devido aos muitos casos de “autoflagelo” de meninas. “Fica mais fácil uma aluna conversar com uma monitora”, explica Paulo Magalhães.

O diretor-geral da Seduc diz que a BM já tem a figura de um gestor em seus quadros, com formação em pedagogia, e que ele auxiliará na monitoria. Como exemplo de trabalho dos monitores, Magalhães cita o “resgate e resguardo” de determinados valores, como o respeito pelo professor e a escola, incluindo a limpeza do ambiente. Segundo a Seduc, o Estado usará um monitor para cada 100 ou 120 alunos.

“Os monitores terão a convivência com a diretoria (da escola), para a qual eles vão expor alguns problemas, mas não vão se envolver na área pedagógica da escola. Isso não muda em nada, é da sala de aula pra fora”, afirma Paulo Magalhães. “A ideia base é o resgate do respeito à escola e do patrimônio escolar, e também no entorno da escola, a gente sabe o que tem ao redor da escola nos dias de hoje”, completa.

Ele ressalta que o aprendizado do novo programa será feito em conjunto pelos participantes. E avalia que os diretores das escolas escolhidas estão motivados, principalmente com as melhorias que serão feitas. “É um programa que, se der tudo certo, só vai levar melhorias aos alunos e também para o corpo docente da escola”, acredita Paulo Magalhães.

As contradições do programa

A deputada estadual Sofia Cavedon (PT) não demonstra a mesma empolgação com o programa das escolas cívico-militares. Pelo contrário. De imediato, ela questiona a distinção das escolas escolhidas para receber mais recursos do que as outras escolas públicas do Estado.

“Nossas escolas estaduais têm carências muito importantes, passam por degradação, falta de reformas, falta de recursos humanos, sem espaços físicos adequados. Então, distinguir cinco escolas por causa de um projeto político, pra mim, é injusto e inadequado para uma política pública de educação. Defendemos que as crianças têm direitos iguais a uma escola de qualidade”, afirma a parlamentar. “É uma política que se adapta a uma sociedade desigual, onde a ‘meritocracia’ promove alguns para justificar a exceção da regra, e se naturaliza a exclusão da maioria.”

Sofia Cavedon faz ressalvas também à função dos monitores de estabelecerem “a disciplina e a ordem”, e define como “incongruência” o argumento de que eles não terão influência no processo pedagógico. “Todos os espaços da escola são pedagógicos, desde a corrida no portão, o tempo livre no pátio, a hora do brinquedo, a alimentação correta… Todo o espaço da escola é área de aprendizado. Caso se confirme que o projeto pedagógico é um, e a presença disciplinar dos monitores é outra, isso é fragmentar a escola e dar sinais controversos aos estudantes. Você ensina uma coisa e pratica outra. Você vai ensinar democracia, liberdade, cidadania e na hora de praticar é outra coisa, é uma uniformização”, pondera.

A deputada destaca que toda a literatura educacional aborda o tempo individual de cada um em aprender, de modo a garantir as individualidades, enquanto a militarização se opõe a escola como sujeito para a humanização dos alunos. “É um outro modelo que se impõe, e que serve, talvez, para a polícia”, afirma Sofia Cavedon.

Com relação à segurança, a parlamentar pondera que a violência é um fenômeno da sociedade, está no entorno da escola e não é apenas dos alunos. Ela critica a falta de políticas nesse sentido, como atividades no contraturno e o enfrentamento da evasão escolar. “Você usa como argumento a violência no entorno da escola para reprimir e controlar a disciplina no colégio. É uma política de repressão e controle da juventude, que infelizmente é a política que está aí. Onde a juventude está reunida, é choque e bomba, controlar e reprimir”, critica a deputada.

Presidenta da Comissão de Educação, Cultura, Desporto, Ciência e Tecnologia da Assembleia Legislativa, Sofia diz que o trabalho do colegiado, a partir de agora, será o de acompanhar a implementação do projeto das escolas cívico-militares no Estado, e garantir a voz dos estudantes e dos professores. “Essa repressão e controle vai atingir o quadro de profissionais. A Comissão deve garantir que essas escolas tenham uma gestão democrática, que o militarismo não vire a regra e não haja violação de direitos.”

A diretora Silvana Pawlowski da Luz afirma que os bons resultados do programa já são notados nesse começo de ano. Foto: Luiza Castro/Sul21

A esperança

Sentada à mesa em uma pequena sala, ar condicionado ligado para enfrentar o calor, Silvana Pawlowski da Luz, diretora da Escola Estadual Carlos Drummond de Andrade, em Alvorada, demonstra nos olhos a empolgação com o projeto das escolas cívico-militares. Apesar dos poucos dias do início do ano letivo, e mesmo que os monitores ainda nem estejam no pátio da escola, ela garante já ser perceptível a mudança no ambiente do colégio.

“Olha o silêncio”, exclama Silvana, em referência à ausência de barulho do lado de fora da sala, logo após a entrada dos alunos do turno da tarde. “Já mudou muito nestes primeiros 15 dias.” A diretora enfatiza a importância do silêncio no processo de aprendizado e confia que ficará ainda melhor. “Acho que com os militares vai melhorar bastante.”

A Carlos Drummond de Andrade tem 767 alunos, quase 100 a mais do que os 689 do ano passado, um crescimento que, segundo a diretora, é consequência do projeto cívico-militar ao qual a escola aderiu. Com os recursos que virão, o plano é reformar toda a parte elétrica e finalmente instalar os ar-condicionados que a escola ganhou há tempos, além de promover melhorias na quadra de esporte e, quem sabe, aumentar o muro A escola já foi assaltada muitas vezes e, ainda que a situação tenha melhorado nos últimos tempos, a esperança é que a presença dos monitores reforce a segurança da instituição.

“Se tu melhorar a segurança, o pedagógico vai melhorar também. Uma coisa está atrelada à outra. Nunca achei que ia encerrar a carreira dizendo isto”, reconhece Silvana Pawlowski da Luz, a dois anos de se aposentar. Sobre as regras de vestimenta que têm desgostado os alunos enquanto o uniforme não chega, a diretora explica que a orientação é apenas usar roupas discretas, como calça para homens e nada de minissaias para as mulheres.

A empolgação da diretora é compartilhada pela orientadora pedagógica, Maria Inês de Pinho. “Foi a melhor ideia que eles tiveram. Acho que todas as escolas deveriam ser assim”, afirma. Para ela, os alunos se beneficiarão no futuro por terem feito parte da escola que aderiu ao programa cívico-militar. “Eles estão se conscientizando mais.”

O receio

Muito distante da diretora e da coordenadora pedagógica da escola de Alvorada é a opinião do professor de outra escola gaúcha que aderiu ao Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares. Sob condição de anonimato para evitar represálias, ele diz que as coisas estão meio estranhas na instituição em que leciona. Como exemplo, avalia que tudo que tem sido apresentado é posto como algo definitivo, num contexto em que ele até é ouvido, mas sua voz não tem sido considerada.

Ele enfatiza a importância da liberdade para o professor ensinar e para o aluno aprender, e sente que o modelo cívico-militar não preza muito por isso. Como educador, interpreta como normal eventuais problemas de comportamento de algum aluno, partindo do pressuposto de que o jovem é um sujeito em construção. Até o momento, porém, diz não ter sentido influência dentro da sala de aula, mas destaca não estar claro qual será o limite dos monitores.

E se o monitor tiver influência no processo de educação, como será essa disputa? Com especializações na área pedagógica, argumenta ter se preparado para a vida de educador e questiona se o monitor, com formação militar, tem condições de ocupar algum espaço no ambiente da escola.

O professor reclama ainda da ausência de informação oficial na escola em que trabalha. Na falta dela, tem recorrido ao site do Ministério da Educação (MEC). Entre uma informação e outra, descobriu um link para uma cartilha, mas que está fora do ar. Comenta que alguns colegas têm cobrado a direção sobre a existência dessa cartilha, enquanto outros, ele sente, têm aceitado o que é exposto. Pondera que, talvez, alguns colegas não problematizam a situação devido às atuais condições difíceis da profissão, como a precarização das escolas, a perda de direitos e a desqualificação do sistema de ensino em geral.

A ênfase disciplinar e a lógica da ordem militar também lhe preocupam. O professor reconhece que o silêncio em sala de aula, por exemplo, é importante, mas acredita que isso pode ser alcançado sem a disciplina militar. Além disso, analisa que a atenção na sala de aula sempre será disputada com outros estímulos, algo que vê como normal. A questão, para ele, é a alteração da identidade dos jovens estudantes, uma mudança forçada e para a qual tem dúvida se os alunos estão preparados.

No fim, o professor deixa no ar o questionamento: qual será o resultado da perda de liberdade e da individualidade?

Galeria de fotos

Escola Carlos Drummond de Andrade. Foto: Luiza Castro/Sul21
Escola Carlos Drummond de Andrade. Foto: Luiza Castro/Sul21
Escola Carlos Drummond de Andrade. Foto: Luiza Castro/Sul21
Escola Carlos Drummond de Andrade. Foto: Luiza Castro/Sul21
Escola Carlos Drummond de Andrade Foto: Luiza Castro/Sul21

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