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3 de agosto de 2019
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11:33

José Carlos Moreira: ‘Uma democracia sem memória é como um Titanic desgovernado’

Por
Luís Gomes
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José Carlos Moreira da Silva Filho é um dos principais especialistas em Justiça de Transição no Brasil | Foto: Giulia Cassol/Sul21

Luís Eduardo Gomes

Somente na semana que passou, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) ofendeu a memória de um desaparecido político para atacar o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, trocou membros da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, colocando no seu lugar correligionários, atacou a Comissão da Verdade e classificou como “balela” documentos sobre mortos na ditadura. A tentativa de revisionismo da história para favorecer a memória da ditadura militar brasileira não é, em si, uma novidade vinda de Bolsonaro. No entanto, é algo que pode se tornar perigoso se atitudes não forem tomadas para conter os anseios autoritários que o presidente traz na esteira dessas declarações. O alerta é feito por José Carlos Moreira da Silva Filho, professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais na PUCRS e ex-vice-presidente da Comissão de Anistia, órgão criada em 2002 com o objetivo de reparar as vítimas de atos de exceção cometidos pelo estado brasileiro.

Em entrevista ao Sul21, Moreira destaca que, ao questionar o fato de que Fernando Santa Cruz, pai de Felipe Santa Cruz, foi desaparecido pela ditadura militar, Bolsonaro vai contra uma série de decisões judiciais e documentos históricos. “Em primeiro lugar, essa atitude do atual presidente da República revela uma total inaptidão para o cargo que ele ocupa sob o ponto de vista do respeito às leis e às decisões judiciais do País. Em segundo lugar, essa atitude, essa declaração, contribui negativamente para esse cidadão que hoje é presidente da República sob o ponto de vista moral, sob o ponto de vista de não ter a dignidade que o cargo exige”, diz o jurista.

Moreira argumenta que falta à sociedade brasileira um comprometimento com a sua própria história para que se possa defender a verdade do que, de fato, ocorreu naquele período. “Uma sociedade que não olha para a sua própria história, que não cuida com zelo dos seus fatos marcantes, ela acaba se envolvendo numa continuidade mórbida de uma série de atitudes autoritárias”, afirma.

Para o jurista, esses impulsos autoritários continuam ocorrendo na sociedade brasileira porque não é feita a depuração necessária dos crimes cometidos pela ditadura militar. Ele argumenta que faltou, por exemplo, julgar torturadores e impedir que agentes públicos que tomaram parte nos crimes continuassem a trabalhar no estado brasileiro. “Se a gente não enfrentar essa história como ela deve ser enfrentada, a gente vai estar sempre fazendo isso. Eu tenho uma frase que eu acho que resume um pouco essa ideia. Uma democracia sem memória é como um Titanic desgovernado. Ela pode conseguir avançar até aqui, pode trazer uma série de conquistas. Mas, ali na frente, pelas mais variadas razões, se isso não for desarmado minimamente, facilmente a democracia cai”, afirma.

A seguir, confira a íntegra da entrevista.

Em entrevista ao Sul21, Moreira faz uma avaliação sobre o episódio em que Bolsonaro usou a morte do pai do presidente da OAB para atacá-lo | Foto: Giulia Cassol/Sul21

Sul21 – O Bolsonaro aproveitou o episódio em que ofendeu a memória do pai do presidente da OAB para promover uma espécie de revisionismo histórico, negar que Fernando Santa Cruz tenha desaparecido por causa da ditadura, depois acabou culpando membros da guerrilha. É um caso que pegou muito mal porque foi muito grosseiro, mas como é que tu o avalias do ponto de vista desse revisionismo histórico?

José Carlos Moreira: Olha, em primeiro lugar, esse caso é um desrespeito por parte do presidente da República, no cargo de mandatário da nação, em relação às próprias leis do País e às próprias decisões judiciais produzidas pelo País do qual ele é presidente. Para além do relatório da Comissão da Verdade, para além do relatório da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, para além da decisão da Comissão de Anistia que concedeu anistia post mortem ao Fernando Santa Cruz, há também uma decisão judicial transitada em julgado de 1997. Uma bela decisão, diga-se de passagem, do juiz José Carlos Garcia, estabelecendo o dever do estado de reparar os familiares e a responsabilidade do estado pela morte e pelo desaparecimento do Fernando Santa Cruz. Então, em primeiro lugar, essa atitude do atual presidente da República revela uma total inaptidão para o cargo que ele ocupa sob o ponto de vista do respeito às leis e às decisões judiciais do País. Em segundo lugar, essa atitude, essa declaração, contribui negativamente para esse cidadão que hoje é presidente da República sob o ponto de vista moral, sob o ponto de vista de não ter a dignidade que o cargo exige. Tripudiar em cima da dor de toda uma família em relação a não ter podido ainda realizar cerimônias fúnebres do luto necessário do seu ente querido. Inclusive, Dona Elzita, que faleceu neste ano, e se esse ano era a hora dela, que bom que veio antes dela se deparar com essa declaração deplorável, mas, por outro lado, que pena ela ter morrido sem saber o que aconteceu de fato com o seu filho, sem ter maiores informações a respeito disso. Ela foi o exemplo de uma mãe que perseguiu até o fim a verdade.

Aí eu já entro na dimensão da sociedade, porque é isso que falta à sociedade brasileira, um comprometimento com a verdade, o comprometimento com a sua própria história. Então, assim como as pessoas que não têm contato com a sua história, não fazem uma análise da sua trajetória, vivem perdidas, sofrendo por coisas que nem sabem de onde vieram e atrapalham suas vidas, as sociedades também. Uma sociedade que não olha para a sua própria história, que não cuida com zelo dos seus fatos marcantes, ela acaba se envolvendo numa continuidade mórbida de uma série de atitudes autoritárias. Quando o estado brasileiro tortura, mata, desaparece, censura as liberdades públicas e civis de uma família, de uma pessoa, não está fazendo isso apenas contra aquelas pessoas, está fazendo isso contra toda a sociedade, porque está instrumentalizando as instituições públicas, os instrumentos públicos, para poder fazer esse tipo de coisa, o que é condenado pela legislação internacional. Quando isso acontece, é ruim para toda a sociedade. É a história da sociedade, é a história do Brasil, do estado brasileiro, do que o estado brasileiro se prestou em uma determinada quadra na história. É importante entender que essa responsabilidade do estado pelos danos que ele causou e o necessário reconhecimento do que foi praticado na esfera pública não é algo que acaba com o fim de um governo. Não interessa o governo ou quem está no poder, essa responsabilidade permanece sempre. Inclusive, em relação a crimes contra a humanidade, a violações graves de direitos humanos, são imprescritíveis os direitos que continuam a valer. Nesse sentido, em todos os horizontes em que se possa perceber, é altamente triste e deplorável essa declaração do atual mandatário.

Sul21 – Existem números de quantos casos de desaparecimento de pessoas nunca tiveram esclarecidas as circunstâncias da morte?

Moreira: Olha, a Lei 9.140, de 1995, que foi a lei que trouxe uma lista de desaparecidos — até hoje o Brasil não tem em sua legislação o crime de desaparecimento forçado. À época, se utilizou um instituto do Direito Civil que é o instituto da ausência para que os familiares pudessem ter acesso aos direitos necessários de sucessão, de identificação e tantas outras questões. Ali, foram 140 [nota da edição: 136]. Depois, outros vieram a se agregar. O número de mortos e desaparecidos políticos orbita em torno de 430, 440. Desses, uma boa parte são desaparecidos políticos, mais um de terço, e não se sabe de fato onde estão os restos mortais. O que aconteceu com eles a Comissão de Mortos pesquisou, procurou reconstruir e trouxe algumas versões aproximativas, outras bem claras, mas muitos casos não têm uma versão definitiva.

Sul21 – Esses 140 da lei de 1995. O Fernando Santa Cruz desapareceu em fevereiro de 1974. Isso significa que alguns demoraram mais de 20 anos para serem declarados oficialmente mortos?

Moreira: Exatamente.

Sul21 – As declarações do Bolsonaro vão contra documentos históricos. No caso do Fernando Santa Cruz, há documento da Aeronáutica que veio a público. O que te parece esse contexto de invalidação do trabalho da Comissão da Verdade e mesmo de documentos históricos?

Moreira: Em primeiro lugar, o pensamento autoritário, a ditadura, não convive bem com a verdade. Muitas das suas ações autoritárias e violentas precisam ser feitas em segredo. E esse segredo é tanto mais reforçado quando, encobrindo esse segredo, se apresenta uma versão falsa, que nega a verdade e inverte as coisas, ou nega o fato ou demoniza as vítimas. Dizendo que elas mereceram, que era aquilo mesmo que tinha que ter acontecido com elas. Então, são estratégias de negação próprias de qualquer prática e pensamento autoritários. Que o Bolsonaro tenha feito isso, não deve surpreender a ninguém. Ele sempre foi assim, sempre demonstrou isso. Talvez o ápice da sua coduta nessa direção tenha sido o seu voto durante o impeachment sem crime de responsabilidade da presidenta Dilma Rousseff. Ali, eu estava assistindo, perplexo, a homenagem que ele fez ao coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o único torturador que foi reconhecido como tal pelas três instâncias do Poder Judiciário. E fez essa homenagem em relação a uma pessoa que foi vítima dele, tripudiando em cima da dor sofrida, do trauma sofrido, da pessoa que ocupava a presidência da República, inclusive, a presidenta Dilma Rousseff. Ao assistir aquilo, eu disse: ‘se nada for feito depois dessa declaração, aí a gente vai entrar numa outra fase de continuidade autoritária’. É isso que me preocupa. Não é o Bolsonaro falar, o que me preocupa é a reação da sociedade brasileira, das instituições e também daquelas pessoas que se dizem sérias e democráticas.

Para Moreira, faltou punição aos torturadores e aos agentes públicos que cometeram crimes durante a ditadura | Foto: Giulia Cassol/Sul21

Sul21 – Que medidas poderiam ser tomadas ali?

Moreira: Ali ele deveria ter tido o mandato cassado imediatamente. Inclusive, o atual presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, se manifestou. No entanto, o Miguel Reale Jr., que foi um dos signatários do impeachment, hoje ele se manifesta, mas, naquela época, não disse nada. Como muitos outros não disseram nada. Esse é o ponto que eu quero enfatizar. A defesa dos direitos humanos, o repúdio a violações de direitos fundamentais pelos quais o estado deve zelar, não é uma questão de direita, nem de esquerda, é uma questão que está acima dessa polarização política. Quando muitos colocam essa questão básica, civilizatória, em segundo plano, por interesses políticos, por querem tirar determinado partido político do poder, não interessa como, porque querem aprovar reformas econômicas que são extremamente antipopulares nas suas consequências, que conseguem muitas vezes não serem apresentadas como são, porque são devidamente cosmetizadas. Então, o chamado mercado financeiro demonstra claramente que pouco está se preocupando com essas questões. Esse, para mim, é o problema básico.

Sul21 – O senhor falou em continuidade mórbida, em continuidade autoritária, muita gente fala de necro política, um governo que promove a ideia da morte. O senhor é referência na Justiça de Transição e nos crimes cometidos pela ditadura militar. Muita gente ainda receia em falar que esse governo tem pretensões ditatoriais, rejeita chamar de fascista, admite no máximo que tem algumas características autoritárias. Onde o senhor acha que a gente pode chegar com um governo que tem essas características de continuidade autoritária?

Moreira: Para mim, o nível ao qual esse governo chegou de características autoritárias é um nível que já ultrapassou o limite democrático, e isso só foi possível porque nós vivemos numa situação de quase anomia, de intenso desequilíbrio institucional, no qual os três principais poderes da República têm nos seus representantes, especialmente aqueles que ocupam as cúpulas, atitudes, decisões e ações completamente incompatíveis com o cargo que ocupam. Juízes que se transformam em políticos. Procuradores deixam de zelar pelo interesse público. Tanto do Poder Judiciário, quanto do Ministério Público e de setores da advocacia pública, de um modo geral, embarcam numa partidarização do sistema de Justiça. Cláusulas pétreas muito claras que não deveriam jamais serem ultrapassadas, especialmente porque se referem a uma parte do Direito que restringe gravemente direitos fundamentais daqueles que são atingidos, que é o Direito Penal, relativizam normas bem claras e literais que jamais deveriam ser relativizadas. O Direito Penal não pode trabalhar com analogias, com aproximações, com relativizações. No Direito Penal, se trabalha por exclusão, por restrição, exatamente porque ele viola gravemente os direitos das pessoas que são por ele atingidas.

Então, nessa situação de instabilidade institucional, quem é que vai garantir o mínimo necessário para que nós possamos de fato dizer que estamos vivendo numa democracia? Democracia não se confunde com a opinião da maioria, especialmente porque essa maioria pode estar envolvida em contextos altamente manipulados, resultante desse quadro de disfuncionalismo total que o Brasil vivencia hoje. Me parece que só temos o presidente que temos no poder e só temos o presidente que está fazendo o que está fazendo sem estar sendo parado, principalmente pela atuação do Poder Judiciário, que deveria estar dando uma resposta a isso.

Eu vou dar um exemplo. A Comissão de Anistia foi substituída na sua composição por conselheiros e conselheiras que fazem a defesa da ditadura, que é o que também está acontecendo agora com a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos. Isso é claramente um desvio da finalidade desses dois órgãos e do que está estabelecido na Constituição Federal, do que está estabelecido nos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil e na legislação brasileira.

Sul21 – O governo Bolsonaro, que foi eleito, não teria o direito de mexer na composição desses órgãos?

Moreira: O fato de alguém ter sido eleito e ser o presidente não dá a ele o direito de fazer o que quiser. A definição de estado de direito é um estado governado por leis, não por pessoas. Ele deve se ater aos limites estabelecidos pela lei. Que quem está no poder viole esses limites, que o político que está no Congresso nacional, deputado ou senador, queira violar esses limites, entendemos, porque muitas vezes faz parte da ação política, ainda que ela seja altamente condenável sob o ponto de vista da Constituição e da Democracia. Agora, que o Poder Judiciário não cumpra com o seu dever e se omita, isso é extremamente preocupante. Que as pessoas que estudam a norma do País, que são professores, que são intelectuais, relativizem isso, é altamente preocupante.

Então, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, que é um órgão do Ministério Público Federal, entrou com uma ação na Justiça Federal, pedindo liminar para que aqueles novos membros da Comissão de Anistia não fossem aceitos. E a resposta que o juiz federal deu ao negar a liminar foi no sentido de que o fato de os novos integrantes serem militares não invalida a participação deles nas comissões porque ser militar não significa necessariamente não ter perfil para poder estar nessas comissões. Até certo ponto, eu concordo com essa argumentação. Só que ela é cínica, porque é notório que esses militares que ali estão, um deles, por exemplo, fez o prefácio do livro do Ustra. O outro, que é curiosamente presidente da comissão atualmente, ingressou com duas ações na Justiça Federal para impedir a anistia do Lamarca e a anistia dos camponeses da Guerrilha do Araguaia. Camponeses que tiveram suas roças queimadas, que perderam suas terras, que foram torturados, sofreram violências e humilhações. Esse cidadão é o atual presidente da Comissão de Anistia.

O juiz ignorar isso em sua decisão revela o que eu estava dizendo, ou seja, pouco apreço pelos direitos humanos, pelas normas básicas da democracia brasileira, em nome de uma simpatia por determinada força política, força esta autoritária. Isso a gente entende ao perceber que uma boa parte dos integrantes do Poder Judiciário apoiam o atual presidente e replicam em muitos espaços o discurso dele. O discurso de ódio, discurso de relativização da história. Então, falta muito conhecimento e falta postura ética necessária para pessoas que ocupam vários dos cargos públicos do País. São funcionários públicos e deveriam servir ao interesse democrático estabelecido na Constituição.

Sul21 – Esse contexto que o senhor acabou de descrever, somado com as revelações do The Intercept Brasil de que os limites de atuação de vários órgãos foram desrespeitados, de atropelamento das funções e desapego aos limites definidos por lei, isso levou ao Bolsonaro ou é resultado da ascensão do Bolsonaro?

Moreira: O Bolsonaro é o que ele é, está fazendo exatamente o que disse que ia fazer. Figuras como ele infelizmente existem no mundo inteiro. O problema é que essas figuras, em determinadas situações de crise institucional, de crise ética, de crise política, acabam por oportunidade conseguindo um espaço que jamais deveriam ter. Ao fazer isso, causam um efeito de proliferação. Porque figuras assim têm como principal bandeira a destruição. Ele disse isso, inclusive, se eu não me engano em um jantar nos Estados Unidos, com várias pessoas em volta, que a missão para ele era acabar com tudo o que foi construído nos últimos anos, o que ele reputa como algo negativo. A principal proposta dele é destruir o que foi estabelecido. Essa destruição traz uma carga de ódio, uma carga catártica. Isso é visto como uma oportunidade por várias pessoas da sociedade brasileira que, pelas mais variadas razões, vivem em uma absoluta frustração. Pessoas que estão em situações difíceis, não foram favorecidas por determinadas políticas, que trazem, pelos mais variados motivos, ódios, raivas, que preferem, em vez de reconhecer os seus próprios limites e dificuldades, colocar a culpa nas outras pessoas. Então, quando essas pessoas são chamadas a um palco no qual ocorre uma catarse coletiva, vamos dizer que quase que um vômito de ódio e de indignação, não adianta você vir com razões, por mais bem fundamentadas que elas estejam. As pessoas não querem saber de ouvir, elas querem só gritar, expressar seu ódio, sua raiva, sua frustração. Isso é feito de uma maneira inconsequente. O problema maior não são essas pessoas, claro que elas fazem parte do problema, o problema são aquelas que aceitam esse deslocamento para um lugar central desse grupo de pessoas em nome dos mais variados interesses, colocando em risco a saúde política, moral, da sociedade e a higidez das instituições públicas, que vêm de um período muito recente, de uma democracia frágil, que veio de 21 anos de ditadura. Ditadura que acabou de maneira controlada, de maneira gradual, não houve muitas transformações necessárias que deveriam acontecer do ponto de vista democrático. Sem dúvida isso favoreceu a ascensão do Bolsonaro. Como eu disse antes, isso se encontrou com uma falta de compromisso dos ocupantes dos cargos institucionais, das carreiras públicas do estado, de seguirem de fato o que a Constituição de 1988 estabeleceu.

Sul21 – O que faltou para prevenir, não o reaparecimento da direita, que isso é algo natural, mas o reaparecimento dos defensores da ditadura militar? Em outros países, como Chile e Argentina, a gente tem uma direita que não é descaradamente apologista das suas ditaduras militares. O que faltou para superar essa tentativa de reativar a memória da ditadura?

Moreira: Você colocou muito bem. O Bolsonaro respondeu a Eugênia Gonzaga, que era a presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos, que disse que foi uma retaliação que ela sofreu ao ser destituída dessa comissão, uma pessoa valorosa, que buscou informação, conseguiu recuperar alguns desaparecidos políticos com investigação das ossadas. Ele disse: ‘agora o governo é de direita’. Pois ele está errado em dizer isso. Porque há muita gente de direita que não compactua com essa pauta de violação de direitos humanos que o Bolsonaro defende. Como eu disse, essa questão está para além de direita e esquerda. O grande exemplo foi o Chile. Quando o Bolsonaro, junto com o Onyx Lorenzoni, esteve lá, o Lorenzoni fez aquela declaração deplorável, acho que foi até pior do que essa do Bolsonaro, de que no Chile a morte de mais de 3 mil pessoas foi necessária, que foi necessário um banho de sangue para que lá eles fizessem aquela porcaria da reforma da Previdência que estão querendo fazer aqui. Então, o presidente do Chile, que é de direita, repudiou aquela declaração, não deu a atenção que, por exemplo, o Trump dá para o Bolsonaro. Vários parlamentares também de direita se negaram a receber o Bolsonaro. Então, isso mostra bem a diferença. Aqui no Brasil também tem gente de direita que agora está começando a perceber que a coisa está indo muito além do que queriam.

O que faltou no caso brasileiro? Faltou uma depuração, é o que a gente chama de Justiça de Transição, necessária do longo período autoritário que o Brasil viveu. Faltou representar no plano simbólico e no plano público o repúdio que o Brasil deve ter às práticas autoritárias do passado. Tanto isso não foi feito como deveria ter sido, que agora nós temos um presidente que celebra. E não só isso, muitas pessoas que não conhecem essa história e acham que ele está certo. Faltou julgar os torturadores. Faltou julgar uma reforma ampla na administração pública, impedindo que pessoas que tomaram parte nesses crimes contra a humanidade praticados pela ditadura, do judiciário, do legislativo, do executivo, do sistema de segurança pública do País, continuassem trabalhando e transmitindo os seus valores para os novos funcionários públicos que passaram a se formar ali. Essa cultura não foi combatida. Houve um bloqueio, um medo, que também foi cultivado pela visão quase que monolítica das forças armadas brasileiras, que se negam a se retratarem, a fazerem a sua mea culpa. Não vou dizer por todos, porque há militares que são constrangidos por essa história, eu mesmo já conversei com muitos. Assim como na ditadura centenas de militares foram perseguidos porque não concordavam com aquilo. Então, é complicado a gente não fazer essa reforma cultural, sob o ponto de vista da cultura política, nas instituições públicas, no sistema de ensino.

Se a gente não enfrentar essa história como ela deve ser enfrentada, vamos estar sempre fazendo isso. Eu tenho uma frase que eu acho que resume um pouco essa ideia. Uma democracia sem memória é como um Titanic desgovernado. Ela pode conseguir avançar até aqui, pode trazer uma série de conquistas. Mas, ali na frente, pelas mais variadas razões, se isso não for desarmado minimamente, facilmente a democracia cai. Faz um tempo que eu estudo esse tema e no meu ambiente de ensino colegas já vieram me perguntar por que eu ficava pesquisando aquelas coisas — isso antes de 2013, pouco antes das jornadas de junho –, se, afinal de contas, a juventude não estava mais interessada nesse assunto, ditadura era coisa do passado, o pessoal estava querendo saber de se divertir e estávamos numa democracia consolidada. Não precisávamos nos preocupar com essas coisas. Eu disse: ‘nunca diga que nós estamos numa democracia consolidada, deixando para lá as tarefas do dia a dia democrático’. Uma sociedade democrática é que nem uma relação que quer continuar sendo uma relação amorosa, entre duas ou mais pessoas, tem que ser cultivada diariamente. Não se pode assumir que isso está garantido.

Sul21 – É muito mais frágil do que parece.

Moreira: É muito frágil. Olha para trás na nossa história. Infelizmente, quando a gente fala da direita no Brasil, a gente percebe que uma grande parte dela, na história do nosso País, tem se revelado muito seduzida por artifícios golpistas e autoritários. Existe uma direita democrática no Brasil? Sim, mas ainda muito pequena para aquilo que o nosso País precisa. Ainda tem muita gente de direita seduzida por uma solução autoritária. Claro que também existe na esquerda. Mas, pela trajetória que nós temos no País, nós podemos perceber que o compromisso com a democracia é algo que falta de uma maneira generalizada e, como tu me perguntaste em relação à direita e ela foi protagonista, em grande parte da nossa história, desses golpes e soluções autoritárias, eu acho que pesa muito mais nela essa herança.

Moreira fala sobre a fragilidade das democracias | Foto: Giulia Cassol/Sul21

Sul21 – Existe algum risco de decisões que já foram tomadas, práticas que já foram concretizadas, pessoas que já foram anistiadas, serem revertidas com essas medidas que o governo federal tem tomado e essas mudanças na composição dos órgãos?

Moreira: Existe, não só pela mudança de composição dos órgãos. Vou te dar um exemplo. A reforma da Previdência que está tramitando no Congresso tem uma série de elementos inconstitucionais ao meu ver. Um deles atinge diretamente a questão das anistias, porque confunde a natureza jurídica do instituto da anistia. O instituto da anistia, definido pela Constituição de 1988 no artigo 8º do ato das disposições constitucionais transitórias, estabelece que a anistia é devida àqueles que foram perseguidos políticos como uma reparação. Quando a gente usa a palavra reparação, estamos indicando uma natureza jurídica de caráter indenizatório. No Brasil, a perseguição aconteceu muito no ambiente de trabalho das pessoas. Pessoas que foram demitidas, jamais puderam arrumar novo emprego, muitos até hoje, inclusive, lutam para conseguir tempo de contribuição. Qual foi a modalidade de reparação que a lei estabeleceu e que a Constituição já sinalizou? Estabeleceu um valor mensal relativo ao cargo que a pessoa tinha, o trabalho que ela tinha e perdeu. Isso fez com que pessoas que não tinham um compromisso um pouco mais profundo com o fundamento do instituto ou pessoas que fizeram isso de caso pensado dissessem: ‘ó, eles estão recebendo uma espécie de pensão’. Não é pensão, não é aposentadoria. Aposentadoria e pensão têm fundamento no trabalho que a pessoa desenvolveu. Aqui é indenização. O fundamento da indenização é o dano praticado pelo estado brasileiro, não se confunde uma coisa com a outra. Muitos desses que foram anistiados receberam a sua aposentadoria porque trabalharam e recebem aposentadoria e a reparação. A proposta da Previdência está dizendo que a pessoa vai ter que escolher entre um e outro, porque confunde a natureza. Não tem natureza previdenciária. Isso é flagrantemente inconstitucional, ilegal, incorreto do ponto de vista científico, doutrinário, dogmático, o que se quiser dizer, e é algo que vai atingir as anistias já estabelecidas e o seu resultado.

A possibilidade de revisão é como eu disse, depois que passou o impeachment naquele contexto, violando flagrantemente a lei, sem crime de responsabilidade, com requintes de crueldade como foi a homenagem ao coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra feita pelo Bolsonaro, ali foi aberta a caixa de Pandora. Ali eu disse: ‘se isso passar, pode passar qualquer coisa’. E quem é que vai impedir que isso vá adiante? Duas forças, basicamente. Institucionalmente, quem deveria ter essa a missão é o Poder Judiciário, que tem se negado muitas vezes a essa tarefa em muitos aspectos. Não tem bloqueado isso. Aqui e ali você vê alguma resistência, mas essa reação ainda não veio da maneira que deveria vir de acordo com a Constituição de 1988. E a outra que tem que ter é da sociedade brasileira. Dos movimentos, da sociedade civil organizada. Tem que ter algo parecido, mas em escala maior, como o que aconteceu recentemente na ABI [Associação Brasileira de Imprensa], defendendo o direito do jornalista Glenn Greenwald de desenvolver o seu trabalho, que provavelmente vai ser outro trabalho premiado, como foi o caso do Snowden. Garantir esse direito de sigilo de fonte, que é o direito da liberdade democrática, de liberdade de imprensa e de manifestação, não criminalizar isso, forças expressivas da sociedade acordaram para isso. Na questão da educação, também houve uma reação. Só que essas reações todas precisam ser mais orgânicas e mais contínuas. O cenário político ainda está muito confuso, muito caótico, sob o ponto de vista dessa reação. Então, nós precisamos dessas duas coisas para que garantias e direitos assegurados como os dos anistiados políticos e de tantos outros possam ser de fato defendidos. Porque, se nós não tivermos essas duas barreiras, tudo é possível. Tudo é possível.


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