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6 de maio de 2019
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21:51

Quatro primeiros meses de governo Bolsonaro põem em xeque bandeira do ‘fim da mamata’

Por
Sul 21
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Quatro primeiros meses de governo Bolsonaro põem em xeque bandeira do ‘fim da mamata’
Quatro primeiros meses de governo Bolsonaro põem em xeque bandeira do ‘fim da mamata’
Medidas do mandatário vão na contra-mão de seu discurso da “nova política”, apontam especialistas. Foto: José Cruz/Agência Brasil

Pedro Biondi e Antonio Biondi
Do Brasil de Fato

A frase “acabou a mamata” tem servido como um misto de slogan, palavra de ordem e promessa para Jair Bolsonaro (PSL) e seus seguidores. Ao mesmo tempo – repetindo antecessores sem lastro partidário, como Fernando Collor –, o presidente afirma representar o rompimento do sistema político tradicional e o marco zero de uma nova era, a dita “nova política”.

Nos primeiros quatro meses de seu governo, porém, o receituário se contradiz com numerosas medidas e posturas do Executivo federal e de sua base no Congresso Nacional.

“Essa história da mamata, o combate à corrupção, tudo, acaba sendo uma bandeira de campanha, e que depois vai sendo esquecida”, diz o sociólogo José Antônio Moroni, membro do colegiado de gestão do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), em entrevista ao Brasil de Fato. Ele observa, por exemplo, que a proposta de acabar com cargos comissionados, um compromisso do candidato, tem se aplicado somente a posições menos importantes, atingindo sobretudo a classe trabalhadora, não a elite, e gerando uma baixíssima economia.

Além disso, seguindo na contra-mão da propagandeada “nova política”, o governo conta com “um ministro, que é o ministro do Turismo, com ‘mil’ denúncias recentes, de candidaturas laranjas, de desvio de recurso público, via fundo eleitoral, e ele continua ministro”, acrescenta Moroni.

A Polícia Federal (PF) em Minas Gerais investiga o caso que tem como pivô o ministro Marcelo Álvaro Antônio, ex-chefe do PSL no estado. Após operação deflagrada, o delegado responsável afirma ter indícios concretos de que o partido burlou a obrigação de repassar 30% do fundo partidário a candidaturas femininas, usando-as como “laranjas” para beneficiar candidatos homens ou terceiros.

A apuração começou após reportagem da Folha de S.Paulo e derrubou, antes mesmo de o governo completar dois meses, o ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, o comandante do PSL em 2018 Gustavo Bebianno. Há investigação em curso sobre esquema semelhante em Pernambuco, estado do atual presidente nacional da legenda, Luciano Bivar.

A deputada federal Alê Silva (PSL-MG) acusa Álvaro Antônio de tê-la ameaçado de morte. Ele nega a ameaça e o envolvimento no esquema investigado.

Toma lá, dá cá

Outro bordão repetido pelo comandante em chefe do país é “o fim do toma lá, dá cá”, ou seja, da exigência de benesses ou vantagens em troca de apoio. No fim de abril, porém, a Folha trouxe à tona a oferta de R$ 40 milhões em emendas parlamentares até 2022 a cada deputado ou deputada que votar a favor da reforma da Previdência no plenário da Câmara. O bônus acresceria em dois terços o valor anual que esses congressistas têm direito a manejar no Orçamento federal – que é de R$ 15,4 milhões (cada) – para obras e investimentos em infraestrutura, tradicionalmente empregados nos respectivos redutos eleitorais.

O acordo teria sido proposto pelo ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni (DEM-RS), em reunião na casa do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Bolsonaro contestou a existência do “dá cá”, afirmando que o valor corresponde à liberação de R$ 1 bilhão em emendas impositivas (que o governo não pode contingenciar ou remanejar) represadas.

O anteprojeto da reforma é radical com alguns segmentos superiores do funcionalismo – inclusive os parlamentares –, mas o mesmo rigor não é estendido ao alto oficialato, na proposta à parte que também reestrutura as carreiras nas Forças Armadas. Questionado sobre o tratamento diferenciado, o ministro da Economia, Paulo Guedes, jogou para os parlamentares a responsabilidade de mudar essas condições. “Vocês não têm que virar para um ministro e perguntar por que a gente não cortou a aposentadoria dos militares. Cortem vocês. Vocês têm medo de fazer isso?”, desafiou, em audiência pública.

Entre carrões turbo e “Bics” genéricas

Uma das providências do presidente assim que eleito foi pedir a renovação da frota de veículos à disposição de sua cúpula. O então mandatário (em fim de gestão) Michel Temer (MDB) lançou de bate-pronto edital para a compra de 30 carros, num total de até R$ 5,6 milhões. Dos 12 blindados, foram requeridos alguns no nível III, reforço à prova de AK-47 e que exige autorização especial do Exército. Na justificativa para o “redimensionamento” da proteção do presidente e do vice, o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) mencionou o atentado sofrido por Bolsonaro durante a campanha eleitoral e alegou que ele continua a ter a integridade física ameaçada.

O GSI havia lançado pregão com esse fim em julho – antes das eleições –, com valor da licitação um pouco mais baixo (até R$ 5 milhões). Conforme o órgão respondeu à imprensa, aquela concorrência foi cancelada porque as empresas habilitadas não apresentaram os documentos exigidos. O arremate deu-se numa terceira tentativa, em que 30 Ford Fusion Titanium AWD 2.0 Ecoboost pretos foram comprados por R$ 5,8 milhões. O Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) concretizaram aquisições parecidas, na casa dos R$ 3 milhões, nos últimos meses.

O jornal O Estado de S. Paulo descobriu que a Presidência da República aumentou em 16% os gastos com cartões corporativos, que somaram R$ 1,1 milhão, em janeiro e fevereiro. Ao se defender, Bolsonaro atribuiu a diferença a preparativos de sua posse, embora a reportagem houvesse adotado como base a média dos últimos quatro anos. A mesma reportagem identificou o gasto de R$ 500 de um servidor do Ministério da Defesa em churrascaria grã-fina.

Charges e memes exploraram o contraste com a escolha de caneta “tipo Bic” (na verdade, da marca Compactor) para assinatura dos termos de posse dos ministros – mais uma produção simbólica como promessa de simplicidade e austeridade. Durante a transição, o futuro ministro Lorenzoni defendera a extinção do recurso criado para agilizar providências administrativas pequenas e urgentes.

A nova velha política e a velha nova política

“Não existe ‘nova política’”, afirma ao Brasil de Fato o diretor executivo da Transparência Brasil, Manoel Galdino. “’Nova política’ é a velha política. Você [o candidato] está sempre tentando se manter como o diferente, como alguém que vai acrescentar coisas para a população, de acordo com o que esta quer”, argumenta.

Galdino destaca o fato de Bolsonaro ter passado 28 anos no Congresso Nacional. “Não era outsider [alguém de fora do sistema] coisa nenhuma, era do ‘baixo clero’ [conjunto dos parlamentares sem destaque] e se envolveu com coisas típicas do baixo clero – como funcionárias aparentemente fantasmas, pouca efetividade legislativa”, acrescenta.

Recentemente, a Agência Pública descobriu mais cinco ex-assessoras de Bolsonaro que nunca registraram entrada na Câmara dos Deputados. Uma denúncia que se soma a várias outras relacionando a família à contratação de funcionários-fantasma e possível apropriação de salários. O assessor especial da Presidência Tercio Arnaud Tomaz, por exemplo, editava a página do Facebook Bolsonaro Opressor 2.0 e trabalhou na pré-campanha do então presidenciável enquanto estava lotado no gabinete de seu filho vereador Carlos (PSL), na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, segundo O Globo.

Em janeiro, o Banco Central (BC) abriu consulta pública para a proposta que flexibilizava a obrigação dos bancos de comunicar movimentações suspeitas ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). A possibilidade de retirar os parentes e colaboradores de políticos de monitoramento causou polêmica. A discussão veio a público enquanto reverberavam as revelações sobre movimentações financeiras e suspeita de lavagem de dinheiro de Flávio Bolsonaro quando deputado estadual pelo PSL e seu então assessor Fabrício Queiroz, e que incluíram depósito na conta da hoje primeira-dama Michelle Bolsonaro.

O BC negou que o texto tivesse a intenção de desviar os olhos das pessoas próximas ao poder. Embora avalie que o governo está fortalecendo o Coaf, Galdino, da Transparência, pontua que os casuísmos aplicados aos episódios em torno do clã colocam em dúvida os motivos por trás da proposição. Ele lembra dos casos dos radares de velocidade e da multa do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

No primeiro, o capitão gabou-se de barrar 8 mil novos radares já licitados para rodovias federais e, um mês depois, jornais inventariaram a vasta pontuação nas carteiras de motorista do presidente e de seus familiares por descumprir as leis de trânsito – várias vezes, por excesso de velocidade.

No segundo, parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) em dezembro – fim do governo Temer, já com o sucessor eleito – provocou a anulação de multa aplicada a Bolsonaro por pescar em lugar proibido quando era deputado.

Em abril, o novo governante assinou decreto que obriga os órgãos responsáveis a estimular a conciliação nos casos de infrações administrativas por danos ambientais e amplia os tipos de serviços aceitos para conversão das multas. Seu ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, está negociando transformar em “investimentos” os R$ 250 milhões que a Vale teria de pagar pelo vazamento em Brumadinho – que espalhou estimados 3 milhões de metros cúbicos de lama com rejeitos tóxicos e matou provavelmente 270 pessoas (das quais 37 ainda estão desaparecidas – leia mais). Parte do dinheiro seria usada em parques nacionais a conceder à iniciativa privada.

“O que a gente vê é a reprodução de uma prática política centenária no Brasil, em que as elites econômicas, culturais e políticas se apropriam do que é do povo”, afirma Moroni, do Inesc. Ele chama a atenção também para as privatizações já realizadas, que contaram com lances iniciais muito abaixo dos estimados e posteriormente pagos pelo mercado.

“Essa é a coisa mais velha que existe no Brasil. O capitalista no Brasil adora o dinheiro público. Adora um Estado para bancar os seus negócios e bancar inclusive os seus prejuízos. E isso está se acentuando”, considera.

Filhos dignos de honrosa menção

Bolsonaro concedeu ao escritor Olavo de Carvalho – seu guru ideológico – e a dois dos próprios filhos, o agora senador Flávio e o deputado federal Eduardo, a condecoração da Ordem de Rio Branco, prevista para “distinguir serviços meritórios e virtudes cívicas, estimular a prática de ações e feitos dignos de honrosa menção”. No caso do patrono da guerra contra o “marxismo cultural”, a distinção foi no grau máximo, de Grã-Cruz.

O conjunto de homenageados incluiu governadores que têm replicado parcialmente sua receita: João Doria (SP), Romeu Zema (MG) e Wilson Witzel (RJ), além do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), e do núcleo do Executivo federal – o vice-presidente Hamilton Mourão e os ministros ​Sergio Moro (Justiça) e Paulo Guedes.

Para Manoel Galdino, da Transparência, aqueles que tentam governar por rompantes e mudar as coisas “do dia para a noite” como Bolsonaro são pessoas que não querem entender como funciona a máquina pública.

“A gente sabe que na nossa democracia os partidos importam, no Congresso as coisas são feitas em torno de líderes partidários”, argumenta o cientista político.

De acordo com sua análise, em todos os regimes democráticos, as legendas dão organização e estabilidade à vida política e previsibilidade ao Legislativo, além de permitir um acompanhamento mais próximo pela sociedade. “A democracia é organizar conflitos por meios institucionais. É um contrassenso você querer ser um outsider nela”, explica.

Em seu sexto mandato e hoje parlamentar mais velha do Congresso, a deputada federal Luiza Erundina (Psol-SP) também põe em questão o rótulo de “nova política”. “Isso é uma coisa que não corresponde à realidade. São os filhos, netos, sobrinhos, apaniguados dos caciques da política tradicional, na sua expressão mais perversa, de fechamento da possibilidade de exercício do poder pelos líderes populares”, disse, em entrevista à Folha de S. Paulo.

Erundina, de 84 anos, aponta uma carência de lideranças e a ligação das bancadas a interesses específicos, no lugar daqueles da República ou da sociedade. Diante de pergunta sobre o futuro dos partidos, prevê “essa substituição por novos quadros a serviço do que tem de pior na vida política brasileira, no fundamentalismo religioso, moral, a perda do caráter laico do Estado”.


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