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21 de maio de 2019
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16:22

Em debate, Olívio, Ibsen e Zaneti apontam falhas na Constituição de 88, mas defendem sua vigência

Por
Luís Gomes
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Sob mediação de Juremir Machado, Olívio Dutra (dir.), Ibsen Pinheiro (ao lado) e Hermes Zaneti (esq.) se reuniram para debater a Constituição de 1988 | Fotos: Carol Ferraz

Luís Eduardo Gomes 

Entre fevereiro de 1987 e setembro de 1988, 559 congressistas fizeram parte da Assembleia Constituinte que se responsabilizou por elaborar a Constituição Federal que marcaria o fim definitivo da legislação do regime militar no Brasil. Na noite desta segunda-feira (20), três ex-deputados constituintes gaúchos se reuniram diante de um auditório para tentar responder à pergunta: “O Pacto Constituinte de 88 ainda vale?”. No evento promovido pelo Sindicato Intermunicipal dos Professores de Instituições Federais de Ensino Superior do Rio Grande Do Sul (Adufrgs Sindical), Olívio Dutra (PT), Ibsen Pinheiro (MDB) e Hermes Zaneti (PSB) apresentaram visões diferentes sobre o processo que legou a carta magna vigente, fazendo críticas e indicando problemas, mas defendendo as conquistas promovidas pelo texto original.

O debate, mediado pelo jornalista Juremir Machado, foi aberto por Hermes Zaneti, que por décadas esteve afastado da vida pública e retornou apenas recentemente, quando tentou, sem sucesso, concorrer ao governo do Rio Grande do Sul pelo PSB. Zaneti, que é autor do livro “O Complô: como o sistema financeiro e seus agentes políticos sequestraram a economia brasileira”, lançado em 2017, focou sua fala, a mais crítica da noite, no processo de captura da política pelo mercado financeiro e em como artigos da Constituição criados para controlar o sistema bancário nunca foram cumpridos ou foram descaracterizados. Destacou que, durante o período constituinte, os congressistas estabeleceram que a dívida da União deveria passar por um processo de perícia, o que, apesar de formada uma comissão posterior para debater as regras dessa auditoria, nunca foi feito e o debate judicial sobre a questão, que originou uma ação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em 2004, segue dormente há décadas no Supremo Tribunal Federal.

Zaneti também contou que os constituintes elaboraram o artigo 192 para fixar a taxa de juros reais cobrados no Brasil em 12% ao ano, mas que, na véspera da promulgação da Constituição, o então presidente José Sarney (MDB) se reuniu com o seu consultor-geral Saulo Ramos e determinou a produção de um parecer que justificasse a retirada desse artigo. “Pensem, o Brasil elege quase 600 constituintes para fazer uma Constituição, que é cassada numa das partes mais importantes. O Sarney jurou em 5 de outubro, com a mão tremula, jurou cumprir a Constituição. Tinha descumprido um dia antes”, disse Zaneti. A proposta do artigo também chegou a ser levada para julgamento do STF, mas dessa vez foi derrotada por 5 votos a 4, segundo contou Zanetti.

Hermes Zaneti focou sua fala no processo de captura da Constituição pelo sistema financeiro | Foto: Carol Ferraz

Para ele, o cenário atual de juros exorbitantes cobrados no Brasil é resultado do veto à redação original do artigo. “O cidadão, se for fazer um empréstimo e cobrar juros acima do valor de mercado, pode responder por usura, uma instituição financeira não. Só a Crefisa, que é uma associação do capital financeiro com o grande conglomerado de comunicação do País, cobrou de juros, entre 3 e 9 de janeiro, informação oficial do Banco Central, 21,09% ao mês. Isso é mais de 800% ao ano. Nós somos uma nação escrava do capitalismo financeiro, do sistema rentista. O dinheiro gerado para gerar dinheiro, não para gerar produção, riqueza”, disse.

Um terceiro ponto desse processo de captura apontado por Zaneti é o que ele descreveu como uma fraude permitida pela Constituição. “Num sábado à tarde, se reúnem Nelson Jobim (MDB) e o líder do PTB de São Paulo, Gastone Righi, e fazem uma alteração de duas letrinhas”, diz. A alteração foi a implementação da letra b, no item II do terceiro parágrafo do artigo 166. Esta mudança indica que emendas ao projeto de lei do orçamento anual somente podem ser aprovadas “caso indiquem os recursos necessários, admitidos apenas os provenientes de anulação de despesa”, excluindo, como consta na letra b, o que incida sobre o serviço da dívida. “Por causa disso, hoje pagamos primeiro os custos da dívida. Isso vai custar R$ 25 trilhões com o pagamento de juros e juros sobre juros desde 1988. Precisamos extirpar isso da Constituição, porque nos coloca de joelhos”, disse.

A conciliação possível

Já Ibsen Pinheiro optou em sua fala por fazer uma reflexão sobre o processo que produziu a Constituição, o que considerou um “processo muito vivo”, em que os constituintes participavam de reuniões em três turnos. Ele considerou que o resultado final, uma Constituição aprovada por unanimidade, foi fruto desse intenso ambiente de debates. “O visível foi a aprovação unânime, mas porque os conflitos tinham sido vencidos ou contemporizados nos processos de discussão”, disse.

Ibsen Pinheiro destacou pontos positivos e negativos do processo constituinte | Foto: Carol Ferraz

Ibsen disse que, inicialmente, achava que a Constituição tinha vindo tarde, visto que era defendida por movimentos democráticos desde os anos 1960. Depois, achou que fora feita antes da hora, com o Brasil ainda aprendendo a conviver com a democracia. Agora, disse que acredita que veio na hora, por ter devolvido a legitimidade às instituições públicas, o que ele considera mais importante do que problemas de construção técnico-jurídica que ocorreram na confecção da carta magna.

Ele avaliou que a Constituição foi fruto de um ambiente em que nenhum partido tinha maioria, o que obrigava todos os setores representados naquela assembleia a cederem. Para ele, isso levou a um processo com resultados positivos e negativos. Como positivo, destacou as garantias constitucionais implementadas e a construção de consensos que fez com que o texto final não fosse “extremista”. Como negativo, o fato de a carta magna ter um excesso de detalhamento em alguns artigos, tendo avançado em questões que não necessariamente precisariam ser constitucionalizadas, ao mesmo tempo que também abarcava artigos que precisariam ser regulamentados posteriormente. “Como ninguém tinha maioria, teve que pluralizar, isso fez com que alguns dos piores textos tivessem espaço”, disse. Ainda assim, ao refletir sobre o documento aprovado, avaliou que foi melhor aprovar “essa geleia” do que uma Constituição imposta por uma maioria parlamentar que pudesse ser um “instrumento sectário”.

No entanto, Ibsen ainda considerou que os constituintes deveriam ter estabelecido mais um processo de revisão da Constituição, o que ocorreu apenas em 1993. Para ele, o Brasil poderia ter se espelhado em Portugal, que revisou a sua última constituição, também produzida após a queda de uma ditadura militar, em duas etapas, cinco e dez anos depois. “Isso poderia ter trazido ajustes, como desconstitucionalizar algumas questões”, disse.

Olívio destacou que, apesar dos problemas, Constituição foi o resultado de mobilização popular | Foto: Carol Ferraz

Conquista popular

Último a falar, Olívio Dutra começou respondendo diretamente a pergunta. Para ele, sim, o pacto constituinte ainda vale. O petista reconheceu que a elaboração da Constituição teve problemas e precisou e ainda precisa ser aperfeiçoada — 106 emendas a ela já foram aprovadas desde 1988 –, mas afirmou que tratou-se de uma “conquista essencialmente popular”.

Ele argumentou que o objetivo dos militares ao deixarem o poder era promover uma distensão lenta, gradual e segura, sem “abrir as cancelas”, e que a Assembleia Constituinte foi planejada para ser realizada nesse cenário, com uma articulação “de cima para baixo”. No entanto, o que aconteceu, segundo ele, foi um clamor popular que levou a uma grande mobilização da sociedade sobre o processo, ainda que a maioria dos constituintes fosse ligada a representantes de setores da elite do País. “Não houve praça ou esquina que não tivesse agito popular. As ruas de Brasília estavam lotadas. Tinha gente que passava um mês viajando para dizer o que propunha, dar aquele bafo na nuca dos constituintes. O povo se assumiu como sujeito naquele processo”, disse.

Olívio, que vinha do movimento sindical, destacou que o campo popular, que somava cerca de 130 parlamentares ligados a sindicatos e movimentos sociais, chegou a apresentar um projeto próprio de constituição, elaborado por figuras como Flávio Konder Comparato, Eros Grau, Raymundo Faoro, Paul Singer, Hélio Bicudo, entre outros. A proposta foi protocolada junto à mesa da Assembleia, como forma de marcar posição, mas Olívio brinca que nunca viu um companheiro “pegar esse livrinho” (ele levou o documento ao debate), porque as reuniões durante o processo constituinte eram muito intensas e dominadas por “discussões do momento”.

Por outro lado, Olívio também apontou problemas. Disse que, ao assumir a Prefeitura de Porto Alegre, no ano seguinte, percebeu o efeito de um texto que deixou questões em aberto, como apontado por Ibsen Pinheiro. Ele contou que, no início de seu mandato, precisou enfrentar um problema sério de uma vila que se erguia ao lado do aeroporto, em que as famílias vivam em condições muito precárias, e que a Prefeitura desejava reassentar em um terreno próximo, na Av. Sertório, que há décadas estava abandonado. A intenção, segundo ele, era se valer do artigo constitucional que determinou que toda a propriedade deveria exercer uma função social para levar adiante um processo de desapropriação daquele terreno abandonado, o que acabou vetado pela Justiça, que deu ganho de causa ao proprietário. “Tivemos que colocar aquela comunidade no extremo norte da cidade. Então, a gente sentiu na pele o que foi a definição genérica da Constituição”, disse.

Na avaliação do ex-prefeito e ex-governador do Rio Grande do Sul, não há hoje espaço para a convocação de uma nova constituinte que possa reproduzir aquele ambiente de participação da sociedade, mas ele não descarta que isso possa ser “fermentado” no futuro, até mesmo em um não tão distante. “A democracia está sendo ferida, com decretos que ferem a autonomia das universidades, nas relações internacionais do País, em coisas que estão sendo pisoteadas. Se evoluir disso que está para pior, não tem como não pensar em um processo constituinte”.

Debate foi promovida pela Adufrgs Sindical na noite de segunda-feira (20) | Foto: Carol Ferraz

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