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3 de janeiro de 2019
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18:02

Mudanças ministeriais e flexibilização de políticas públicas: os primeiros dias de Bolsonaro no poder

Por
Sul 21
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Presidente Jair Bolsonaro e o vice-presidente Hamilton Mourão exibem uma bandeira nacional durante discurso no parlatório do Palácio do Planalto. Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Giovana Fleck

Ao tomar posse, o presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) não mencionou dois pontos-chave em seu discurso: a desigualdade social e o combate à pobreza. Os dois temas, presentes ao longo da campanha e intrínsecos à existência no Brasil, foram citados em todos os discursos desde a redemocratização.

Mesmo sem tempo de preparar um discurso, José Sarney reafirmou os compromissos de Tancredo Neves, recém internado, no combate à iniquidade social durante um breve pronunciamento. Fernando Collor, em seu primeiro discurso como presidente, disse que umas das prioridades do governo seria o “resgate de nossa gritante e vergonhosa dívida social”. Fernando Henrique Cardoso afirmou que trabalharia para “diminuir as desigualdades até acabar com elas”.

Em 2003, Luiz Inácio Lula da Silva tomou para si o combate à fome. “Enquanto houver um irmão brasileiro ou uma irmã brasileira passando fome, teremos motivo de sobra para nos cobrirmos de vergonha”, disse, durante sua posse. Sua sucessora, Dilma Rousseff, chamou atenção para a proteção dos “mais frágeis” como “compromisso supremo” de seu mandato.

Já Bolsonaro prometeu reerguer o Brasil a partir do que chamou de “libertação do socialismo” e da corrupção. Segundo ele, isso ocorrerá “sem discriminação ou divisão”, através do estímulo à meritocracia. De certa forma, a construção da narrativa do discurso de posse do presidente eleito vem sendo refletida em suas primeiras ações oficiais.

Bolsonaro chegou ao Palácio do Planalto por volta das 8h30min da quarta-feira (2). Em 30 minutos, cumprimentou as pessoas que trabalhavam no local e seguiu para um dos salões do prédio, onde participou da transmissão de cargos de quatro de seus ministros: general Carlos Alberto Santos Cruz na Secretaria de Governo; general Augusto Heleno no Gabinete de Segurança Institucional (GSI); Onyx Lorenzoni na Casa Civil; e Gustavo Bebbiano na Secretaria- Geral da Presidência.

Rodeado por eles, o presidente desceu a rampa que liga o terceiro andar do Planalto, onde fica seu gabinete, ao Salão Nobre, para o segundo andar. Sorridente, posou para fotos – que mais tarde foram postadas em seu perfil no Twitter. O púlpito usado para discursos chegou a ser montado, mas Bolsonaro não falou ou deu declarações – se limitando a acenar para os jornalistas.

Em seguida, o presidente teve uma série de reuniões com representantes internacionais. O primeiro que recebeu foi o secretário de Estado dos Estados Unidos, Mike Pompeo. Em seguida, se reuniu com o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, e depois com o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orban. A última reunião do dia foi com o vice-presidente do Parlamento chinês, Ji Bingxuan.

No entanto, o primeiro dia da administração Bolsonaro foi marcado por mudanças na organização ministerial e no posicionamento do presidente sobre como tratará temas ligados aos direitos humanos. Logo após a posse, Bolsonaro assinou a Medida Provisória 870, conhecida como MP da Reforma Administrativa, que estabelece a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios.

A publicação da MP no Diário Oficial no final da terça-feira (1˚) confirmou as extinções de ministérios anunciadas desde o início da transição governamental. Agora, são 16 ministérios, 2 secretarias e 4 órgãos equivalentes a ministérios. Foram extintas, portanto, sete pastas: Transportes, Portos e Aviação Civil; Indústria, Comércio Exterior e Serviços Esporte; Cidades; Cultura; Trabalho e Segurança Pública.

Uma federação de advogados – Federação Nacional dos Advogados (Fenadv) – questiona na Corte a extinção do Ministério do Trabalho, que teve suas competências integradas a outras pastas.

Outras medidas também foram questionadas por organizações civis. Confira, a seguir, as principais mudanças já feitas nos primeiros dias de governo Bolsonaro:

Foto oficial do presidente durante a nomeação de seus 22 ministros. Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

Cargos de articulação

O texto da medida provisória também criou cargos de articulação da Presidência com o Legislativo. A Casa Civil, chefiada por Onyx Lorenzoni (DEM), terá um secretário especial para a Câmara e outro para o Senado. Tradicionalmente, a função de mediação é executada exclusivamente pelo ministro nomeado pelo presidente.  Além disso, nos próximos dias, deve ser anunciado que Carlos Manato (PSL-ES) – que não conseguiu se eleger para o governo do Espírito Santo – será secretário especial para a Casa, e Leonardo Quintão (MDG-MG), outro derrotado nas urnas, cuidará da relação com o Senado.

Política nacional de segurança alimentar

Ainda por meio da MP 870, Bolsonaro retirou do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) a atribuição de propor ao governo federal as “diretrizes e prioridades” da política e do plano nacional de segurança alimentar e nutricional, colocando-a entre as competências do Ministério da Cidadania, comandado pelo ministro Osmar Terra.

A medida ainda revogou trechos da lei que trata da composição do Consea, órgão de assessoramento da Presidência da República. O texto, porém, não deixou claro se o órgão continuará a existir ou se foi extinto. Compete ao Consea propor à Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional, composta por ministros e secretários especiais, as diretrizes e prioridades da política nacional de segurança alimentar e nutricional.

Demarcação de terras indígenas

A Funai (Fundação Nacional do Índio) passa a ser vinculada ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (antes, era vinculada ao Ministério da Justiça) e não poderá mais demarcar terras indígenas – função básica da Fundação desde que começou a operar, há mais de 70 anos.

Quem passa a ter o poder de “identificação, delimitação, demarcação e registros das terras tradicionalmente ocupadas por indígenas” é o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. A pasta também será responsável pela delimitação de terras ocupadas por comunidades quilombolas.

Demandas LGBTs

A Medida Provisória não menciona a população LGBT na lista de políticas e diretrizes destinadas à promoção dos direitos humanos. A MP explicita as mudanças na estrutura dos ministérios, incluindo o novo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, comandado pela pastora Damares Alves.

Entre as políticas e diretrizes destinadas à promoção dos direitos humanos estão incluídos explicitamente as “mulheres, crianças e adolescentes, juventude, idosos, pessoas com deficiência, população negra, minorias étnicas e sociais e índios”. As pessoas LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) não são mencionadas.

Na tarde desta quarta-feira (2), ao tomar posse, Damares assegurou que a pauta LGBT continua sendo uma atribuição da pasta. Segundo ela, a Diretoria de Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais será mantida, com a mesma estrutura, na Secretaria Nacional de Proteção Global. Ela ressaltou, ainda, que o tema já era tratado por uma diretoria na estrutura anterior.

Salário mínimo

O Diário Oficial também trouxe o novo valor do salário mínimo, que começou a valer desde o dia 1º de janeiro: R$ 998. O valor é menor que o que havia sido previsto no ano passado pelo governo Michel Temer (MDB), de R$ 1.006. Isso representa uma correção de 5,45% sobre o salário mínimo anterior, de R$ 954.

O valor final resulta de uma mudança na previsão da inflação. O salário mínimo é calculado com base no PIB e no INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor), que corrige o poder de compra dos salários, medindo a variação de itens de consumo da população assalariada com baixo rendimento. Quando o governo Temer definiu o orçamento em R$ 1.006, a previsão era de que inflação fecharia em um valor mais alto, em 4,2% com crescimento do PIB de 1% em 2017. O governo também levava em conta um resíduo de R$ 1,75 que faltou do salário mínimo em janeiro de 2018. Porém, a expectativa para 2019 é que o INPC feche em um valor menor. O número oficial, no entanto, ainda não foi divulgado.

Cargos de chefia no Itamaraty a não diplomatas

A partir de 2019 , funções de chefia no Ministério das Relações Exteriores não se restringirão mais apenas ao corpo de servidores do Ministério. Na prática, não diplomatas poderão exercer cargos de chefia no Itamaraty. Segundo a MP 870, o “serviço exterior brasileiro (…) constitui-se do corpo de servidores, ocupantes de cargos de provimento efetivo, capacitados profissionalmente como agentes do Ministério das Relações Exteriores, no País e no exterior, organizados em carreiras definidas e hierarquizadas, ressalvadas as nomeações para cargos em comissão e funções de chefia”. A frase altera a Lei nº 11.440, de 29 de dezembro de 2006, sobre o Regime Jurídico dos Servidores do Serviço Exterior Brasileiro.

Contradições no apoio aos surdos

Presidente Jair Bolsonaro chega ao Congresso Nacional para a solenidade de posse, acompanhado de sua esposa, Michelle Bolsonaro. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Durante a posse, Michelle Bolsonaro ganhou protagonismo ao fazer um discurso em Libras (língua brasileira de sinais). A fala emotiva simbolizou o foco da primeira dama na inclusão. No entanto, horas depois, o primeiro gesto do novo ministro da Educação, Vélez Rodriguez, foi acabar com a secretaria que cuida da educação de surdos.

Segundo o jornal Folha de S. Paulo, a atual Secadi (Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão) será desmontada e em seu lugar surgirá a subpasta Modalidades Especializadas. Segundo a apuração do jornal, a nova pasta deve continuar a articular as ações de educação especial, de jovens e adultos, educação no campo, indígena e quilombola. Quanto às ações específicas para a população surda, que vinham sendo pautadas por meio de políticas já consagradas dentro da Secretaria, ainda não se sabe quem cuidará das articulações. A Folha lembrou que Bolsonaro, durante a campanha, atacou políticas públicas destinadas a grupos vulneráveis, o que classificou como “coitadismo“.

Mudanças no Coaf e na Comissão de Anistia

Por fim, o texto da medida provisória também trouxe alterações internas em ministérios. O Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) será vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, comandado pelo ex-juiz Sergio Moro. O Diário Oficial da União estabeleceu um novo estatuto do Coaf, criando duas novas diretorias – de Inteligência Financeira e de Supervisão -, entre outras modificações. O Conselho foi responsável por revelar, em dezembro de 2018, uma movimentação atípica de R$ 1,2 milhão feita no período de um ano por Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flavio Bolsonaro, filho do presidente.

Além disso, a Comissão de Anistia, antes vinculada à pasta da Justiça, migrará para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. A Comissão é responsável pelas políticas de reparação e memória para as vítimas da ditadura brasileira.


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