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3 de janeiro de 2019
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20:56

Cimi teme ‘esvaziamento absoluto da política indigenista no país’ após medidas de Bolsonaro

Por
Sul 21
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Na retomada guarani em Maquiné, a Aldeia Mata Sagrada é uma das comunidades que ainda não foram demarcadas | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Débora Fogliatto

Desde a campanha, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) já afirmava que em seu governo não iria demarcar “nenhum centímetro” de terras para indígenas e quilombolas. Em seus primeiros atos de governo, parece estar se dirigindo para cumprir esta promessa. Nesta quarta-feira (2), as atribuições de identificar, delimitar e demarcar essas terras foram oficialmente transferidas para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, enquanto a Fundação Nacional do Índio (Funai) passou a ser parte do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Até então, a Funai integrava o Ministério da Justiça e era a responsável pelos processos de demarcação.

Pelo Twitter, seu canal de informação oficial, Bolsonaro afirmou que irá “integrar” os povos indígenas e quilombolas. “Mais de 15% do território nacional é demarcado como terra indígena e quilombolas. Menos de um milhão de pessoas vivem nestes lugares isolados do Brasil de verdade, exploradas e manipuladas por ONGs. Vamos juntos integrar estes cidadãos e valorizar a todos os brasileiros”, colocou.

A nova ministra da Agricultura, a deputada Tereza Cristina da Costa (DEM), líder da bancada do agronegócio na Câmara, não tocou diretamente no tema das terras indígenas durante seu discurso de posse. A questão ficará a cargo do secretário especial de Assuntos Fundiários, Luiz Antonio Nabhan Garcia, presidente da UDR (União Democrática Ruralista). Questionado pela Folha de S. Paulo sobre o tema, ele colocou que “qualquer identificação ou demarcação vai ser submetida ao conselho. A palavra final mesmo será do presidente da República”. Acrescentou, ainda, que “não tem como fugir dos processos técnicos e jurídicos”, e que a legislação será respeitada.

De acordo com a Funai, atualmente existem 462 terras indígenas regularizadas, que representam cerca de 12,2% do território nacional, localizadas em todos os biomas, com concentração na Amazônia Legal. O direito dos povos indígenas às suas terras de ocupação tradicional configura-se como um direito originário e, consequentemente, o procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas se reveste de natureza meramente declaratória, segundo o órgão. Portanto, a terra indígena não é criada por ato constitutivo, e sim reconhecida a partir de requisitos técnicos e legais, nos termos da Constituição Federal de 1988.

Sem regularização, indígenas vivem às margens de rodovias no Rio Grande do Sul | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Rio Grande do Sul

Uma das preocupações de entidades ligadas aos direitos indígenas no Rio Grande do Sul é justamente o fato de haver muitas terras em processo de demarcação no Estado, os quais devem ser congelados pelo novo governo. Segundo a Funai, em 2010 viviam 18,5 mil indígenas de grupos étnicos Guarani, Mbia Guarani, Kaingang e mistos no RS. Em termos de terras indígenas, em 2015,  o Estado contava com 7 áreas declaradas; 2 delimitadas; 20 regularizadas e 16 em estudo. A quase totalidade delas encontram-se na área de domínio da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica.

Segundo o Relatório Azul 2017 (da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa gaúcha), apenas 14% das áreas indígenas gaúchas estão regularizadas. As restantes estão envolvidas em processos paralisados ou em estudos de identificação que ainda nem começaram. No artigo “Demarcações de Terras Indígenas no Norte do Rio Grande do Sul e os Atuais Conflitos Territoriais: Uma Trajetória Histórica de Tensões Sociais”, os professores Henrique Kujawa e João Carlos Tedesco observam que “o Rio Grande do Sul é um dos estados que mais possui conflitos entre indígenas e agricultores; o norte do estado é o espaço que se concentra o maior número e os que mais produzem conflitualidades sociais; a etnia kaingang é a que mais está presente no norte do estado e também da maior presença nos conflitos”.

Em setembro, o Sul21 visitou acampamentos indígenas que aguardam demarcação, três dos quais localizados na beira de movimentadas rodovias, vivendo em situações de precariedade. Dentre eles, uma comunidade guarani vive em um pequeno espaço de terra espremida entre o arroio da Divisa, a BR 290 e a cerca de uma fazenda que não permite que os indígenas peguem matéria-prima para fazer artesanato, sua única fonte de renda. Já as oito famílias que vivem às margens da RS 40, em Capivari do Sul não têm nem espaço para plantar. São diversas situações de violações de direito que, agora, devem se agravar.

Para Roberto Liebgott, coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Sul, a situação é mais grave no Estado por haver muitos processos em fase inicial. “Comunidades que vivem sem terra, nas margens das rodovias, e pleiteiam esse direito, não vão ter a partir dessas definições acesso à sua terra e seu direito originário”, lamenta.

Esvaziamento da Funai

O Cimi vê as medidas adotadas por Bolsonaro com bastante preocupação, segundo Roberto, tanto pela mudança da Funai para o Ministério dos Direitos Humanos quanto pelo esvaziamento do órgão. “Ele transfere a Funai de ministério sem nenhum tipo de discussão com o movimento indígena, e muda de forma absurda as funções da Funai, que eram no sentido de assegurar, no âmbito do poder Executivo, as ações e serviços de demarcação das terras, proteção e fiscalização dessas áreas. Então ele esvazia a Funai de sua principal função, e a transfere para dentro de um ministério sem critério, sem diálogo e sem os povos indígenas saberem como a Funai vai funcionar a partir de agora e qual será o seu papel. A nosso ver, essa medida vai na perspectiva do esvaziamento absoluto da política indigenista no país”, avalia.

Situação do Estado é preocupante devido a grande número de terras com processos em andamento | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Outra preocupação da entidade é com a atribuição da demarcação de terras pelo Ministério da Agricultura, o qual será administrado por setores vinculados ao ruralismo, que historicamente se colocam contra os direitos indígenas, de modo especial o direito à demarcação de terras. “Essa medida entendemos ser inclusive inconstitucional. Viola a Constituição Federal e a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que foi ratificada pelo país e estabelece que qualquer mudança que afete comunidades e povos indígenas e seus direitos, as comunidades precisam ser devidamente consultadas, em consulta prévia e informada. Há uma violação grave de direitos dos povos indígenas, que estão sendo alijados de qualquer possibilidade de se manifestarem no que tange aos seus direitos, que vão ser violados”, aponta Roberto.

O presidente e seus aliados já declararam mais de uma vez que têm a ideia de “integrar” os povos indígenas à sociedade brasileira, o que também é visto como um ponto de vista problemático pelo Conselho. “Essas medidas têm o objetivo de romper definitivamente com qualquer perspectiva de uma política indigenista que reflita as diferenças étnicas e culturais dos povos, porque visa em essência a integração dos índios à sociedade brasileira, combinado com o esbulho dos territórios indígenas por setores que pretendem a exploração da terra, dos recursos ambientais e minerais”, explica.

É entendido pela entidade que as medidas foram tomadas no sentido de inviabilizar o acesso à terra para indígenas, quilombolas e para a reforma agrária. “Não haverá nenhuma perspectiva de demarcação”, constata Roberto. Tudo isso, segundo ele, coloca uma insegurança na questão indígena, porque os setores que se colocam contra as demarcações de terra passam a sentir que o direito previsto na Constituição não tem validade: “a invasão de territórios, depredação dos recursos naturais, exploração ilegal da madeira e invasão de áreas por garimpeiros aumentarão significativamente, como já aumentaram em função dos discursos pré-posse. Isso vai gerar conflitos entre indígenas e esses invasores, e a consequência vai ser a violência exacerbada, com resultados que nem podemos prever. Mas sabemos que em toda a história os povos indígenas são os que mais perderam, em vidas e terras”.


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