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12 de janeiro de 2019
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10:17

Após sinalização de suspensão da reforma agrária, MST prevê: ‘luta pela terra vai florescer com mais força’

Por
Luís Gomes
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Após sinalização de suspensão da reforma agrária, MST prevê: ‘luta pela terra vai florescer com mais força’
Após sinalização de suspensão da reforma agrária, MST prevê: ‘luta pela terra vai florescer com mais força’
Marcha do MST e da Vila Campesina em janeiro de 2018 | Foto: Joana Berwnager/Sul21

Luís Eduardo Gomes

A semana que passou começou com uma má notícia, ainda que esperada, para os movimentos que lutam pela reforma agrária no País. Na manhã de terça-feira (8), o site Repórter Brasil revelou que superintendências regionais do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) receberam no dia 3 um memorando que determinava a suspensão de todos os processos para compra e desapropriação de terra em andamento, que seriam cerca de 250. Cinco dias depois, na noite do dia 8, o Incra recuou e suspendeu a paralisação. Apesar do recuo, um dos vários que ocorreram nos primeiros dez dias de governo de Jair Bolsonaro (PSL), as perspectivas não são boas para a criação de novos assentamentos durante os próximos quatro anos.

Alexandre Conceição, da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sem Terra (MST), diz que o processo da reforma agrária já estava sob ataques na gestão de Michel Temer (MDB), com a extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário, redução no orçamento para a reforma e o sucateamento do Incra, mas ele avalia que os problemas devem se acentuar na gestão que se inicia. O primeiro motivo elencado por Alexandre é que uma das maiores lideranças do agronegócio brasileiro, Luiz Antônio Nabhan Garcia, presidente da União Democrática Ruralista (UDR), foi nomeado para o cargo de secretário especial de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, órgão que ficará responsável por tratar dos processos de regularização fundiária e demarcação de terras.

Em entrevista ao Estadão no dia 9, Nabhan Garcia já deu o tom do que será sua gestão. “A realidade hoje é que não tem mais dinheiro no Incra, não tem dinheiro para fazer a reforma agrária”, disse.

O Incra é o órgão responsável por identificar se um imóvel é possível de ser destinado para a reforma agrária. Isso ocorre quando uma propriedade é considerada improdutiva, segundo pré-requisitos constitucionais, e pode ser desapropriada por decreto presidencial, o que permite que o Incra compre a terra e dê a ela uma nova destinação, via de regra para a reforma agrária. Com a paralisação, os 250 processos em andamento, que estão em diferentes fases (desde em análise até prontos para decreto), ficariam suspensos.

De acordo com Superintendência Regional do Incra no RS, atualmente há 12 processos de obtenção de terras para fins de reforma agrária no Rio Grande do Sul. Um levantamento realizado pelo órgão aponta que 12.342 famílias vivem em 343 assentamentos no Estado.

A expectativa de Alexandre é que, sob o governo Bolsonaro, haja uma concentração ainda maior da terra na mão de grandes latifundiários, mas ele não crê que isso deva arrefecer a luta dos movimentos sociais, pelo contrário. “Naturalmente, a luta pela terra vai florescer com muito mais força, porque ocupar não é só um desejo pessoal das pessoas, vem da situação econômica e social que o País se encontra, que necessita, obviamente, da reforma agrária. Portanto, a luta pela terra vai seguir com força. Vamos passar pelo governo Bolsonaro como passamos pelo governo FHC e por outros”, diz. “Ao longo dos 35 anos do MST, mais de 350 mil famílias foram assentadas. Nenhuma delas foi assentada porque o governo chegou lá e assentou. Só foram assentadas porque tiveram a capacidade de se organizar, se mobilizar e ocupar os latifúndios”.

Violência no campo

Alexandre ressalta que já durante a campanha Bolsonaro deixou clara suas intenções de criminalização dos movimentos sociais do campo. Ele espera que isso gere um ambiente de violência ainda maior no campo do que a já registrada em anos anteriores. “O governo Bolsonaro prega a violência com suas medidas no campo”, diz.

Em 2017, foram registrados 71 assassinatos ligados a conflitos no campo, segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT). Os números de 2018 ainda não estão consolidados, mas até dezembro haviam sido registradas 24 assassinatos, sendo mais da metade de liderança de movimentos sociais envolvidos na luta pela terra. A CPT registra pelo menos uma morte em 2019, de um trabalhador rural no município de Colniza (MS).

“Na violência no campo, só morrem os pobres, só morre quem luta pela terra, não morre latifundiário, não morre fazendeiro. Então, nós somos contra a violência porque somos vítima da violência. Portanto, a pregação do governo Bolsonaro pela violência é uma tentativa de eliminar, fisicamente inclusive, aqueles que lutam pela terra”, diz.

Uma nova luta no campo

Ex-presidente do Incra no governo de Dilma Rousseff (PT), o economista Carlos Guedes de Guedes avalia que o processo de reforma agrária passa por um desafio de atualização. “Quando teve o auge do debate da reforma agrária no País, entre os anos 1960 e 1990, havia uma configuração onde se conseguia claramente identificar o latifúndio improdutivo. Era uma grande propriedade onde não se aplicavam investimentos e não se tinha produção agropecuária e agrícola condizente com o País à época”, diz.

Ocorre que, a partir dos anos 2000, com o boom das commodities, a abertura do mercado externo para carnes e grãos e a expansão do agronegócio, ficou mais difícil identificar os imóveis que são próprios para a reforma agrária, pois o que se identifica no campo é uma maioria de propriedades com níveis parecidos e altos de produtividade. “Com esse processo de aceleração tecnológica e transformação de latifúndio em agronegócio, as melhores terras que poderiam ser destinadas para os agricultores ou estão cumprido os requisitos de produção, por mais baixos que sejam, são ainda dos anos 70, ou são terras que não é possível colocar o agricultor, porque estão num grau de degradação que inviabilizam o assentamento”, diz, salientando que esse é um cenário que se consolidou a partir do governo Dilma.

Guedes defende que o processo de reforma agrária deveria superar os critérios de avaliação de produtividade física e passar a também levar em conta questões ambientais, trabalhistas e de bem-estar social. “As terras deveriam ser selecionadas e destinadas em um perfil de agricultura que não é o do agronegócio, mas da agricultura familiar”, diz.

O diretor do MST concorda que o processo de luta pela terra passa, nesse momento, pela defesa do modelo agricultura agroecológica, como praticado em assentamentos do movimento, que não se utiliza de agrotóxicos, fertilizantes, transgênicos e outros insumos constituem o “pacote tecnológico do agronegócio”.  Os assentamentos do MST no RS são hoje, por exemplo, os maiores produtores de arroz orgânico da América Latina.

“O Brasil hoje é o maior consumidor de veneno no mundo. A reforma agrária e a produção de alimentos na agroecologia, que é a matriz de produção do MST, é a alternativa para a gente poder trazer do campo para a cidade um alimento saudável”, diz. “Toda essa tecnologia de produção de orgânicos que nós avançamos, com esse governo isso irá retroceder.  Nós vamos lutar para que não haja o retrocesso. Mas esse governo que está aí sequer se preocupa com essas questões, é o governo do latifundiário velho e atrasado, do chicote e do açoite”.

Alexandre avalia que outra mudança na luta dos movimentos do campo é decorrente da abertura do mercado da terra para multinacionais do agronegócio, acelerada a partir do governo Temer, mas que ele acredita deverá avançar sob Bolsonaro para áreas da União, territórios indígenas e quilombolas e áreas já demarcadas para a reforma agrária.

“Nós vamos ter que nos readequarmos. Além de cuidar dos assentamentos, continuar produzindo alimento saudável, fazendo feiras agroecológicas, debatendo com a sociedade sobre a produção de alimentos saudáveis, nós vamos ter que enfrentar o latifúndio que vai querer atacar os territórios já reformados ou impedir que as terras públicas sejam destinadas para a reforma agrária, mas entregues ao grande capital internacional para a produção das grandes multinacionais do agronegócios. Portanto, o caráter da luta deve mudar para ser um enfrentamento da luta pela terra mais forte do que propriamente a luta pela reforma agrária. Nos territórios já reformados, já consolidados, aí sim, consolidar a reforma agrária popular, com produção de alimento na agroecologia, com a industrialização dos camponeses, com a comercialização e com as feiras agroecológicas”, diz o diretor do MST.


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