Para pesquisador, combate à desinformação não é um processo tecnológico, mas político e social

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Para pesquisador, combate à desinformação não é um processo tecnológico, mas político e social
Para pesquisador, combate à desinformação não é um processo tecnológico, mas político e social
No Brasil, o uso do WhatsApp como meio de disseminação de informações falsas foi apontado como um dos pilares das campanhas eleitorais de 2018. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Giovana Fleck

No início de 2018, começou a circular em grupos de WhatsApp na Índia um vídeo de câmeras de segurança que, supostamente, flagraram um sequestro. As imagens mostram uma criança sozinha na rua. Em poucos segundos, ela é agarrada por uma dupla de motociclistas e, de repente, levada embora, para desespero dos vizinhos.

O vídeo, no entanto, não passava de uma peça informativa gravada por autoridades do Paquistão. Na edição original, a criança é devolvida e um dos “sequestradores” exibe um cartaz onde se lê: “Basta apenas um momento para uma criança ser sequestrada nas ruas de Karachi (cidade mais populosa do Paquistão)”.

A informação incompleta, no entanto, tomou proporções alarmantes. Segundo levantamento da Forbes, pelo menos 97% dos smartphones indianos usam aplicativos de comunicação todos os dias – e 96% dos usuários têm preferência pelo WhatsApp. Com a divulgação do vídeo, um sentimento de pânico não demorou a ser instaurado. Segundo a BBC, “vítimas foram caçadas nas ruas”.

Em junho, um homem de 26 anos que estava em Bangalore procurando emprego foi apontado por alguns moradores como um dos “sequestradores”. Ele teve as mãos e pernas amarradas, foi agredido, arrastado pelas ruas e morreu a caminho do hospital. Em um outro linchamento, no estado de Tripura, no nordeste do país, a vítima foi um homem empregado pelo governo local justamente para ir a vilarejos dispersar rumores espalhados pelas redes sociais.

No Brasil, o uso do WhatsApp como meio de disseminação de informações falsas foi apontado como um dos pilares das campanhas eleitorais de 2018 – especialmente a de um dos candidatos à Presidência. Reportagem publicada pela Folha de S.Paulo revelou que empresas contrataram disparos massivos de mensagens de WhatsApp contra o PT e a favor de Jair Bolsonaro (PSL), em contratos que chegavam a R$ 12 milhões. Além de contar com apoio financeiro não declarado ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a partir de pagamentos com CNPJs, o que é proibido desde 2015, os contratantes contavam com bases de dados de terceiros, prática também ilegal.

Por mais que um aplicativo ou rede social não requeira pagamento em dinheiro para acessá-los, é importante destacar que não são gratuitos. Você paga com seus dados. Nessas eleições, seu número de telefone foi uma das informações mais cobiçadas por empresas de marketing contratadas para disparar mensagens. Segundo reportagem do The Intercept, cada contato é vendido por um valor entre R$ 0,09 e R$ 0,25, dependendo do nível de segmentação.

Francisco Brito Cruz é especialista no monitoramento de políticas públicas ligadas a tecnologia e sua relação com a democracia. Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), é coordenador do Núcleo de Direito, Internet e Sociedade na universidade e diretor do InternetLab, centro independente de pesquisa em direito e tecnologia. Sua pesquisa mais recente tem monitorado os tipos de campanhas veiculadas nas eleições de 2018. “Para além de um processo tecnológico, vivemos um processo político”, defende. “Um pouco do que estamos fazendo é entender como as coisas estão se estruturando na internet. Mas existe o que está para lá, o que está para cá e o que cai em uma massa cinzenta.”

O que está para cá

Desde o início da campanha eleitoral de 2018, em 8 de setembro, as estratégias dos candidatos mostraram que o uso da internet e de aplicativos, especialmente os de trocas de mensagens, teriam protagonismo. Isso implica tanto na participação mais direta dos eleitores quanto na disseminação de conteúdo falso e em formas ilegais de influenciar o voto.

Um aplicativo para celular lançado pelo Partido Novo, para aumentar o número de apoiadores da campanha do presidenciável João Amoêdo, prometeu trocar pontos obtidos com o compartilhamento de mensagens por prêmios e recompensas. O caso do Novo surgiu na mesma semana que a notícia de que influenciadores digitais teriam sido pagos para fazer tweets elogiosos à campanha de candidatos petistas. A compra de votos é crime eleitoral. Após ser notificado pelo TSE, o Novo alterou a mensagem exibida em sua plataforma. No caso do PT, a empresa de marketing digital contratada para realizar a campanha está sendo investigada pelo Ministério Público Eleitoral (MPE). Até o momento, algumas páginas e perfis foram excluídos das redes sociais por solicitação do MPE.

O aplicativo Talckmin também chamou atenção do Ministério. Um procedimento foi aberto para apurar irregularidades na campanha do presidenciável Geraldo Alckmin (PSDB). Outra vez, a existência de um tipo de premiação levantou suspeitas. Mesmo que seja simbólica, a legislação eleitoral sobre compra de votos proíbe o oferecimento de “vantagem pessoal de qualquer natureza”. A mera promessa de algum tipo de vantagem já seria um indício de transgressão da lei.

Em meio a essas iniciativas e polêmicas, destaca-se a campanha de Jair Bolsonaro (PSL). Líder nas pesquisas, o candidato à presidência que – após ser vítima de um atentado – não tem participado de debates na televisão, ou arrecadado montantes vultuosos em sua campanha – a qual totalizou pouco mais de R$ 2,5 milhões – manteve o que Cruz classifica como “um discurso que colou”.

O postulante pelo PSL declarou, em sua prestação de contas ao TSE, que não gastou verba de campanha com impulsionamento digital. Ou seja, suas postagens não foram promovidas para perfis de redes sociais que não as solicitaram. Entre os demais candidatos, a prática somou mais do que a verba total de Bolsonaro, acima de R$ 2,6 milhões.

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“Muito além dos anúncios e do engajamento, percebemos que a mensagem tem sucesso quando o discurso cola. E isso é algo básico, que não se aplica somente para a internet, mas a todas as mídias”. No caso do WhastApp, Cruz prefere classificar as mensagens com conteúdos falsos como “spams”. “Atribuir caráter noticioso a mensagens falsas pode ser problemático. Nós sempre recebemos spams, quando não era por e-mail, era aquela gravação automática que ligava pra sua casa. A diferença, agora, é o potencial de disseminação do spam”.

Para o advogado e pesquisador, a forma como os spams são compartilhados não evidenciam um caráter piramidal – em que uma pessoa compartilha com outra ou outras – mas em rede, em que a primeira pessoa que recebeu a mensagem ainda pode ser impactada por ela e disseminá-la para tantas outras. “São mensagens que conseguem aderência e ganham capilaridade”, explica Cruz.

O que está para lá

Cada usuário pode ser membro de quantos grupos quiser no WhatsApp, mas há alguns limites impostos pela plataforma. Foto: Joana Berwanger/Sul21

“Ainda não temos conclusões sobre que estrago as informações falsas provocaram nesta campanha – ainda que ele pareça ser grande”, explica Cruz. Para ele, é importante lembrar que não se trata de um processo só tecnológico, onde se analisa o comportamento do indivíduo em redes. Mas, sim, de um processo político e social. “Não podemos explicar tudo que apareceu. Existe um trânsito entre as práticas de marketing comercial e político. O spam comercial é uma prática e não foi inaugurada pelo WhatsApp.”

Cruz se refere ao fato de que, antes das eleições, bases de dados coletadas por empresas e a disseminação de mensagens eram serviços comprados, especialmente, pelo setor privado. “A prática, em si, não é nova. Mas existe uma discussão sobre como as listas têm sido construídas”. Ele atenta para o fato de que, assim como ocorreu nas eleições estadunidenses de 2016, as bases de dados do WhatsApp podem operar de maneira muito mais sofisticada do que se percebe até o momento. “Não se pode comparar o vazamento de dados da Cambridge Analytica com o que está acontecendo aqui. Lá, inclusive, existia uma interlocução entre o próprio Facebook e as campanhas. Aqui, isto não ocorre. Mas se trabalhava com dados de perfis que iam muito além do número de celular.”

O Facebook – que é dono do WhatsApp – afirmou, em pareceres públicos, tanto após as eleições de 2016 nos Estados Unidos, quanto agora, no Brasil, que as ferramentas violam as regras das plataformas. “As nossas políticas não permitem a coleta automatizada de dados. Nós levamos isso muito a sério, e estamos investigando este caso específico”. A empresa, no entanto, não esclarece por que o número de telefone é tratado como um dado que pode ser público, nem se adotou medidas contra as práticas de disseminação em massa.

Cada usuário pode ser membro de quantos grupos quiser no WhatsApp, mas há alguns limites impostos pela plataforma. Um deles é o número de grupos que podem ser criados por um usuário. Esse limite, no entanto, é de 9.999 grupos. Outro limite é o número de mensagens encaminhadas simultaneamente em conversas diferentes, que foi reduzido de 256 para 20, em agosto deste ano, em razão da disseminação massiva de notícias falsas. “Acredito que haja um canal de diálogo aberto com a plataforma. Mas precisamos entender o quanto isso tudo é recente. Temos que tirar lições disso, colocando para os usuários o quanto seus dados são de interesse do poder público”, diz Cruz.

A massa cinzenta

Os casos extremos levaram o governo indiano a exigir atitudes concretas do WhatsApp. O CEO da empresa, Chris Daniels, visitou a Índia e, junto com membros dos departamentos de tecnologia da Informação do governo, elaborou algumas medidas que deveriam limitar o compartilhamento de informações falsas. Entre elas, a principal foi a delimitação de que uma mensagem só pode ser compartilhada no máximo cinco vezes.

Daniels escreveu um artigo para a Folha, em que enfatiza como o WhatsApp tem combatido a desinformação no Brasil. Apesar de afirmar que 90% das mensagens trocadas no aplicativo são entre duas pessoas, ele não aborda a atuação de empresas especializadas na disseminação de conteúdo pago. O professor do curso de Gestão de Políticas Públicas da USP, Pablo Ortellado, divulgou em seu perfil pessoal no Twitter três pedidos que fez ao WhatsApp para tentar restringir o avanço de iniciativas como esta. Ele sugere a restrição da capacidade de transmissão do aplicativo, o limite de cinco reenvios (como já acontece na Índia) e uma nova limitação de tamanho para grupos.

As mesmas indicações, segundo Ortellado, foram encaminhadas ao TSE. Ele e os outros pesquisadores que protocolaram o pedido não obtiveram respostas nem do Tribunal e nem da empresa. “Acredito que haja uma curva de aprendizado entre ambas as partes”, aponta Francisco Brito Cruz. “Quem estava preparado? O que dá pra fazer agora? Na minha opinião, precisamos começar a virar algumas chaves – nos preocupando com proteção de dados, listas, a partir de uma investigação mais aprofundada. O famoso ‘seguir o dinheiro’.”

Ele lembra da Lei de Dados Pessoais, sancionada por Michel Temer (MDB) em agosto de 2018 e que deverá entrar em vigor em fevereiro de 2020. Basicamente, ela impede que as companhias coletem dados pessoais e os usem na oferta de publicidade direcionada, telemarketing ou venda de informações para terceiros sem autorização do consumidor. Há, ainda, a previsão de uma multa caso os dados coletados pela empresa vazem. “É importante monitorarmos como se dará esse processo de transição e como a lei, de fato será aplicada”, ressalta o advogado e pesquisador do InternetLab.

Questionado se o WhatsApp influenciou, para o bem ou para o mal, no processo democrático, Cruz afirma que: “A televisão contribuiu para o processo democrático? São tecnologias que mudam o jeito como nos comunicamos… Tudo vai amadurecendo. Acabamos de viver uma parte do processo. Acho que deve haver certo distanciamento para avaliar isso com precisão.”


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