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1 de março de 2018
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12:56

‘Quem quiser falar de Jurisprudência nesse país, é com saudosismo’, diz ex-ministro Paulo Vannuchi



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Sul 21
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Paulo Vannuchi foi o convidado do Instituto Novos Paradigmas, presidido por Tarso Genro | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Fernanda Canofre

Entender os desafios postos diante do Partido dos Trabalhadores, depois de 13 anos de governo e um ano e meio do impeachment de Dilma Rousseff (PT), à luz de Norberto Bobbio. Assim foi a conversa promovida, quarta-feira (28), em Porto Alegre, pelo Instituto Novos Paradigmas (INP), com o jornalista e ex-ministro de Direitos Humanos do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, Paulo Vannuchi.

“Em política, você não avança 10 anos em uma direção sem que forças newtonianas se organizem para provocar um empuxo. Estamos vivendo isso agora”, disse ele logo no início da atividade.

Na sua análise, num cenário pulverizado com possibilidades de novas candidaturas surgindo todos os dias, Vannuchi acha difícil que o deputado Jair Bolsonaro (PSC/RJ) consiga vencer a eleição. Ainda assim, não se deve menosprezá-lo. O interesse do mercado, que tem participado de eventos e organizado jantares com o ex-militar, é prova disso. “É um pequeno homem, como Temer, como Adolf”, declarou. “E o perigo do Temer é essa estatura anã. Ele não tem pretensões de dinheiro, poder e glória”.

Espécie de think tank, que reúne nomes de partidos de esquerda e independentes, de Brasil, Portugal e Espanha e é presidido pelo ex-governador Tarso Genro (PT), o INP abriu assim uma série de diálogos que em breve trará um ex-ministro chileno a Porto Alegre e integrará um ciclo de debates em Lisboa, com Boaventura de Sousa Santos.

A fala de Vannuchi, intitulada “A crise do liberal-democratismo no enfrentamento com o projeto neoliberal e o seu déficit democrático”, virou uma análise da conjuntura atual do país, em torno da ideia das “seis promessas não cumpridas da democracia, do filósofo político Norberto Bobbio”. A tese foi publicada numa das obras de referência do italiano: “O futuro da democracia” (1984).

“O neoliberalismo é o capitalismo de uma etapa de baixa capacidade de resistência da classe trabalhadora” | Foto: Guilherme Santos/Sul21


‘Socialismo é o legítimo herdeiro do liberalismo’

Vannuchi começou sua intervenção lembrando do primeiro problema: a sociedade pluralista e o indivíduo soberano. O tripé da Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade – cuja última palavra, ele disse preferir trocar por ‘solidariedade’, durante os anos, também produziu distorções que fazem com que “o balanço do século XX, entrando para o século XXI, não seja bom”. Mesmo em lugares que tiveram experiências que se pretendiam socialistas, como Rússia e Cuba.

No primeiro, a Revolução de 1917, iniciada por Lênin, mas germinada pelo longevo governo de Joseph Stalin, que permaneceu no poder por 29 anos, acabou por produzir a “máfia” do grupo do atual presidente, Vladimir Putin. Em Cuba, a Revolução de 1959 que serviu de inspiração para toda uma geração de esquerda, tampouco fez com que o novo governo produzisse o melhor sistema em relação a direitos humanos.

“Cuba, que merece todo o nosso respeito como uma ilha de dignidade, é um sistema que eu não podia, como membro da Comissão Inter-americana de Direitos Humanos (CIDH) da OEA, dizer que ali os direitos humanos são respeitados. Alguns são, muitas vezes até mais do que em qualquer outro país, como igualdade racial, direitos das crianças e etc. Mas, o direito que depende do Judiciário, o direito de crítica da imprensa, vocês sabem que não existe. Quem disser que existe ainda está mergulhado num sonho ideológico”.

Assim, ele lembra, Bobbio tenta trabalhar uma síntese do socialismo e liberalismo. “O John Stuart Mill falou disso: o socialismo é legítimo herdeiro do liberalismo. O liberalismo não é neoliberalismo (…) O Luís Carlos Bresser-Pereira conseguiu entrevistar [Bobbio] em Turim, uma vez, e perguntou: você conseguiu fazer uma síntese? Ele disse: não, síntese é impossível, mas eu tento compromisso. Compromisso com ideais liberais e socialistas”.

Para Vannuchi, qualquer discussão de crise da democracia liberal precisa passar por esse entendimento. “Primeiro, que liberalismo não é neoliberalismo. Hoje, se me pedissem em uma definição didática, numa reunião sindical, do que é o neoliberalismo, além de repetir o que a gente repete – Estado mínimo, etc – eu falaria: o neoliberalismo é o capitalismo de uma etapa de baixa capacidade de resistência da classe trabalhadora. O apogeu tatcheriano vem da crise do socialismo do século XX, o ciclo neoliberal vem dos problemas do nosso período de governo que, objetivamente, foi o período que fez o Brasil avançar, de maneira pujante”.

“O PT não podia fazer um debate de governo, criticando o governo, por causa de todas as implicações de um ataque” | Foto: Guilherme Santos/Sul21

O ex-ministro reafirmou a ascensão de milhões de pessoas da miséria a melhores condições, o Estado como indutor do desenvolvimento, marcas dos governos petistas, mas, lembrando desenvolvimentos posteriores. “Que estão nesse amargor atual, repressivo, até anti-civilizatório, que ninguém é capaz de prever o quanto de energia e tempo vai nos custar. A nossa geração não vai ver uma retomada”.

Mesmo com tom pessimista, Vannuchi disse que durante muito tempo de sua vida não imaginou que veria um governo Lula, menos ainda um que pudesse ser vitorioso. “Para quem perdeu a memória, de que foi vitorioso, basta lembrar 2010. O PIB, auto-estima nacional, voltei de Brasília fazendo análise de conjuntura do tipo: a década dos anos 10 já está contratada. Com Olimpíadas, pré-sal, Copa do Mundo. E em 2013, todo esse otimismo se desfez”.

Voltando à obra de Bobbio, Vannuchi lembrou que ele começou sua experiência em meio ao fascismo italiano. Construiu assim a ideia de que o Estado não pode ser organizado à base de grupos que competem entre si. “O problema é que ele nunca aceitou a visão que, para nós, é completamente indispensável para compreensão adequada da sociedade, que é a teoria das classes sociais e da luta de bases”. Algo, que em sua visão, o Brasil de 2018 deixa “escancarado”.

O ex-ministro de Lula lembrou da primeira posse de Dilma Rousseff, enquanto comemoravam, brindando e “corações ao alto”, ele conversava com Marco Aurélio Garcia sobre o sucesso histórico da sua geração. “Ele disse: cá entre nós, o debate acabou. A gente sentia isso. O PT não podia fazer um debate de governo, criticando o governo, por causa de todas as implicações de um ataque. Quando começa a ter todas as implicações do mensalão, você não pode mais fazer um debate aberto e transparente, porque tudo isso vai ser midiatizado pela Globo. E as consequências são muito complicadas. Aparecia uma denúncia do [Antonio] Pallocci, que hoje não pode ser defendido por nós, sobre como ele tinha milhões e não tinha como confirmar. É evidente que essa evolução nos gera dificuldades”.

Para ele, isso é oposto ao momento atual. Embora haja resistência na velha guarda da esquerda, que reclama que a luta de classes estaria sendo substituída por questões identitárias (movimento negro, de mulheres, LGBT, entre outros), ele acredita que não sejam incompatíveis.

Mandato de representação e oligarquias

““Impressionante como no Brasil de hoje reflora a elite escravista, sem pejo de esconder formulações escravistas” | Foto: Guilherme Santos/Sul21

A segunda promessa não cumprida da democracia, apontada por Bobbio, está ligada ao mesmo tema: é o mandato imperativo. Concebido como uma ideia de mandato que cumpriria a agenda de um setor. “O mandato imperativo tem a famosa carta de [Edmund] Burke, feroz crítico da Revolução Francesa, que é a Carta aos eleitores de Bristol: ‘fui eleito por Bristol, mas não vou defender Bristol, vou defender a Inglaterra’. Equação de dificílima resolução, porque os sindicalistas que estão lá terão uma pauta e haverá momentos de tensão entre a pauta de política nacional e interesses”.

Relacionando com o tempo de hoje, com o Legislativo que ocupa cadeiras no Congresso Nacional, isso teria se ultrapassado na representação de “interesses de quadrilhas”.

“Impressionante como no Brasil de hoje reflora a elite escravista, sem pejo de esconder formulações escravistas. A ideia do trabalho como uma coisa sem qualidade, sem importância. Da reforma trabalhista, do teto dos gastos sociais, aos coxinhas raivosos da internet. Uma das primeiras ações da intervenção no Rio de Janeiro que aparece é a fotografia do trabalhador pobre, negro, com crianças horrorizadas. Não tem ninguém fotografando Leblon, Ipanema, para onde a droga vai”.

Democracia limitada a espaços

Vannuchi partiu assim para o quarto ponto do teórico italiano: o espaço limitado da democracia. Apesar de nascer da política, ela não pode se confinar na mesma e precisa extravasar para todos os ambientes sociais. “Na luta sindical falamos que a democracia não entrou no portão da fábrica, ficou lá fora. Na crise de 2013, a primeira reação nossa foi essa. Mudamos muito o Brasil, da porta de casa para dentro, entrou geladeira, ‘nova classe média´, mas da porta pra fora nada. Foi um caos urbano que deflagrou aquele processo [os protestos de junho] até hoje muito mal interpretado também.

“Agora o Temer, esse pequeno ser humano, chama o Exército para uma intervenção sem a menor condição de avaliar os desdobramentos dessa atitude” | Foto: Guilherme Santos/Sul21

“Uma das minhas ilusões de 2010 foi essa. Não mexemos nos pilares do capitalismo, mas pelo menos a elite brasileira está obrigada a estar à frente, a ter relação de respeito. Foi a experiência mundial mais importante de esquerda moderada. E o que a imprensa diz hoje? Lula é a besta-fera radical. Aquelas capas deformadas da Veja. Todos eles sabem que não é nada disso, ele é um grande mediador, chamamos até carinhosamente de macunaímico”.

Ele lembrou ainda de elaborações, que aparece no ex-ministro da Educação de Dilma, Renato Janine Ribeiro, entre outros, sobre falta de afeto na democracia e falta de democracia nos afetos. “Está dialogando com o tema do Bobbio do espaço limitado para expansão da democracia. Ela ficou muito confinada a espaços, não se tornou uma regra, uma prática social”.

Poderes ocultos

O quinto ponto seria dos poderes ocultos que operam na democracia, discutido por Bobbio através do papel da máfia, numa Itália pré-“mano polutti”. Vannuchi lembrou da época em que ele e Tarso, então ministro da Justiça, lutaram para o estabelecimento de uma Comissão Nacional da Verdade, gerando turbulência no fim do governo Lula.

Ele criticou o voto do então ministro Eros Grau e diz que, para defender a mesma tese dele, que votou contra a revisão da Lei de Anistia, usaria apenas a tese de que a mesma, que beneficiou vítimas e violadores, não foi criada pela ditadura. “No sistema interamericano, isso não resolveria. Feita a justiça de transição, o Estado é obrigado a fazer revisão, apurando, reparando, adotando políticas de não-repetição, não importa se aquela lei da Anistia foi aprovada em regime democrático. Porque não se pode anistiar um crime que é de lesa-humanidade”.

Vannuchi lembrou do caso recente, do capitão do Exército, ‘Balta Nunes’ (nome falso pelo qual Willian Pina Botelho se apresentava), inflitrado em grupos políticos para tentar criminalizar os mesmos. O caso ocorreu em São Paulo e teve 18 jovens detidos, em setembro de 2016. Na época, o próprio Exército disse que teriam outros 50 agentes como “Balta”.

“Agora o Temer, esse pequeno ser humano, chama o Exército para uma intervenção sem a menor condição de avaliar os desdobramentos dessa atitude. O que ele quer é resolver um problema imediato dele, vai ter uma sequência de alternativas e são todas muito danosas. Uma delas, quando ele se retirarem em dezembro, o crime pode estar muito mais enraizado”.

O ex-ministro aponta a Rede Globo como um dos tais “poderes ocultos”. “Se o golpe não tiver uma reunião semanal toda segunda-feira, que talvez não tenha, é como se tivesse. Com o impressionante ciclo de atos e decisões. Por exemplo, em algumas das minhas análises de conjuntura, eu falei que o julgamento [de Lula] em Porto Alegre teria que ser abril, mas iriam antecipar para março. Eles marcaram para o dia 24 de janeiro, quando nunca houve julgamento no Judiciário brasileiro, é recesso e eles o cumpriam até depois do Carnaval. O resultado já era caracterizado”.

Ele criticou ainda a postura de ministros do STF durante a cobertura da imprensa ao julgamento. Na leitura de Vannuchi, a presidente da Corte, ministra Carmen Lúcia, após divulgado o resultado que reafirmou a condenação de Lula, teria feito “48 horas de militância política”. “[Dizia]: o Supremo não pode se apequenar revendo a prisão de Lula. O Gilmar [Mendes], que vinha posando de garantista e fez um belíssimo discurso em defesa do Temer [no TSE] – ‘esse tribunal não pode querer substituir o voto popular, o presidente da República é decidido pelo voto’”.

Outro poder oculto seria o papel dos Estados Unidos nos últimos acontecimentos no Brasil. Vannuchi citou o ex-ministro das Relações Internacionais, Celso Amorim, que em suas manifestações recentes vem ironizando: “quem quiser acreditar em coincidência, acredite. Eu acredito em teoria da conspiração”. O pré-sal, a relação com juízes brasileiros, como Sérgio Moro, para ele seriam indicativos disso.

“A regra vale a cada dia, quem quiser falar de Jurisprudência nesse país, é com saudosismo” | Foto: Guilherme Santos/Sul21



Educação para democracia



O último ponto das promessas não-cumpridas pela democracia, para Bobbio, é a ausência da educação sobre a mesma. A isso está atrelada outra “batalha” da qual o próprio Vannuchi está próximo agora: a questão da comunicação. Como um dos responsáveis pela rede TVT, ele fala do impacto que uma presença maior em redes que poderiam chegar a mais pessoas teria.

Sobre caminhos para a esquerda atual, Vannuchi lembrou do grande ato do segundo turno de 2014, quando a campanha de Dilma Rousseff, conseguiu reunir milhares de pessoas no histórico teatro TUCA, da PUC de são Paulo. Ali, para ele, os jovens apresentaram uma leitura da conjuntura atual e mostraram que aquele seria o caminho pelo qual o PT poderia chegar a eles. Porém, logo no início do segundo mandato, acabou “sendo gestado outro processo”, veio o anúncio de Joaquim Levy para o ministério da Fazenda e toda uma agenda neoliberal de cortes.

“O Bobbio fala em regra da maioria como uma chave procedimental. A democracia para ele era sobretudo procedimental. Nos procedimentos dele, ele formula coisas sobre o conjunto de regras do jogo – cadê as regras do jogo brasileiro? A regra vale a cada dia, quem quiser falar de Jurisprudência nesse país, é com saudosismo. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) mostrou que o direito eleitoral é o mais sem jurisprudência. Nos últimos 30 anos, cada decisão da Justiça Eleitoral fica sem sintonia com as anteriores. É um momento de correlação de forças”.

Afirmando que não se deixa “encantar por soluções simplórias”, Vannuchi diz que embora nem tudo feito pelos governos do PT tenha sido errado, a auto-crítica é necessária para o partido neste momento. “A que estamos fazendo agora, se baseia num erro de conjugação verbal. É sempre ’nós erraram’. Os textos de auto-crítica é sempre alguém, outra parte, outra corrente, eu acho que nós erramos. Vai ser difícil escapar alguém, em posição de relevância que possa dizer, ‘na minha área não errei’”.

Na análise dele, embora a social-democracia seja uma tradição da classe operária, não parece o melhor caminho para o Partido dos Trabalhadores.


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