‘As derrotas da esquerda são filhas de suas divisões’, diz Mujica em conversa com Lula

Por
Luís Gomes
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Lula serve um mate para Mujica, em Santana do Livramento, com Mujica. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Luís Eduardo Gomes

Foi um encontro de quatro ex-presidentes latino-americanos em uma praça que marca o encontro entre Brasil e Uruguai. Com direito a um intervalo por falta de luz, Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff, Pepe Mujica e Rafael Correa, que apareceu no final, tiveram na divisa entre Santana do Livramento e Rivera uma conversa de cerca de 1h30 sobre os desafios da esquerda e da América Latina no período posterior aos governos de orientação social que marcaram a primeira década do século XX. Foi o segundo evento da caravana do ex-presidente Lula pela região sul do País, que começou nesta manhã com uma visita ao campus da Unipampa em Bagé.

Ao contrário de Bagé, onde foi organizado um protesto de ruralistas para tentar bloquear a visita de Lula à Unipampa, o evento de Santana do Livramento foi rechaçado apenas por um pequeno grupo de apoiadores da direita brasileira, enquanto milhares de pessoas, brasileiros e uruguaios, petistas e apoiadores da Frente Amplia de Mujica, envolveram o palco montado na Praça Internacional para a conversa entre os dois ex-presidentes e a todo o momento gritavam palavras de apoio. Inicialmente, estavam posicionadas duas cadeiras, para Lula e Mujica, mas foi adicionada mais uma, para Dilma. Em seguida, contudo, juntaram-se a eles os ex-governadores Tarso Genro e Olívio Dutra, além do senador chileno Marco Enríquez-Ominami. Estava montado o que Lula ao final brincou ser o “Caldeirão do Mujica e de Lula”.

Primeiro a falar, o ex-presidente brasileiro destacou que a América Latina teve, entre 2000 e 2014, uma série de governos de esquerda que implementaram políticas sociais bem sucedidas, segundo ele, como em nenhum momento depois da Segunda Guerra Mundial. E então perguntou a Pepe: “O que mudou no Uruguai e na América do Sul?”

“Quando a burguesia nos convida para uma festa, essa é a festa deles, não a nossa”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Mujica foi breve em sua primeira fala, destacando que dois grandes desafios se impõem aos governos latino-americanos e aos partidos de esquerda. O primeiro deles é ter uma política econômica que não vise apenas o crescimento do PIB, mas também a distribuição de renda e a alegria do povo. “Já não se pergunta como vai o povo na América Latina, esse é o problema”, disse Mujica. O segundo problema apontado foi a divisão interna dentro dos países, que, de acordo com o uruguaio, se encontram em situação de confronto “a todo momento”.

Mas foi em sua segunda intervenção, quando respondeu a um questionamento sobre “o que fazer”, que Mujica foi mais incisivo na crítica à esquerda latino-americana. “Nós da esquerda também nos equivocamos. Não quisemos aprender que as derrotas das esquerdas são filhas de suas divisões”, disse.

E fez então um resgate histórico para afirmar que desde a Revolução Francesa, passando pelo Franquismo, na Espanha, e pela ascensão do nazi-fascismo, que a esquerda está mais comprometida com brigas internas do que em confrontar as políticas de direita. “Sem unidade não há poder. Ninguém tem a verdade total”, disse. “Eles [a direita] nos querem divididos, pulverizados, atomizados”.

Foi interrompido pela falta de luz quando afirmava que aqueles que lutam pela igualdade precisam resistir às tentações do poder, que levam muitos de seus políticos a viver como uma minoria privilegiada, e sim manter um modelo de vida semelhante ao da maioria do povo. “Quando a burguesia nos convida para uma festa, essa é a festa deles, não a nossa. Se lutamos pela igualdade, devemos conservar um modelo de vida que expresse o compromisso por aqueles que lutamos”, disse.

Além de fazer a defesa da unidade e da busca de pautas que unam as esquerdas, e não daquelas que as dividem, Mujica saudou a intenção de Lula concorrer a um novo mandato, mas ressalvou que os partidos e as mudanças sociais não podem depender de uma pessoa só. “Amanhã essa pessoa não estará mais e a luta continua. Sorte que o Brasil hoje tem o Lula, mas amanhã não terá mais. Temos que produzir gerações de militantes sociais”, defendeu.

Lula: “Se continuarmos separados, sendo serviçais dos EUA, não teremos futuro”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Influência dos EUA

Em suas falas, o ex-presidente Lula destacou que em seu governo buscou formar uma aliança com os demais países da América Latina para que a região não mais fosse uma área de total influência dos Estados Unidos. Contudo, destacou que foi um trabalho difícil, primeiro porque os governos americanos sempre teriam incutido nos nossos vizinhos a ideia de que o Brasil era um inimigo a ser enfrentado, e também pelas resistências internas dos países a deixarem a área de influência americana. Mas, destacou que isso acabou se concretizando, com o fortalecimento do Mercosul, a criação da Unasul (União das Nações Sul-Americanas), da Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos) e com a derrota das Alca (Área de Livre Comércio das Américas), proposta pelos EUA. Contudo, essa maré virou, segundo Lula, também por dedo dos americanos.

“Lamentavelmente, as coisas começaram a degringolar. Não temos mais a unidade que tínhamos. Se continuarmos separados, sendo serviçais dos EUA, não teremos futuro”, disse. “O dado concreto é que todos os países, com exceção do Uruguai e da Bolívia, mudaram os governo. A verdade é que o Brasil hoje tem um governo golpista que está atendendo a tudo que o mercado financeiro pede”, complementou Lula.

Dialogando com a manifestação inicial de Mujica, salientou que o Brasil está retomando agora políticas da metade do século XX, quando, apesar de ser um dos países que mais cresceu no mundo, não conseguiu distribuir renda e viu a desigualdade apenas aumentar.

Diante desse quadro, Lula colocou-se como o candidato que pode reverter esses quadros de afastamento dos países latino-americanos e de aumento da desigualdade. Assim como tinha feito pela manhã em Bagé, Lula minimizou o processo judicial que o ameaça de prisão após ser condenado em segunda instância pelo Tribunal Regional Federal da 4ª região em janeiro. “O meu problema pessoal é pequeno diante do problema que atinge milhões de brasileiros que já perderam o emprego e estão perdendo o direito de cursarem uma universidade”, disse, ainda ironizando a possibilidade de cruzar a praça e fugir para o Uruguai. “Eu poderia dar um pulo pro Uruguai e não dou, porque mais dia e menos dia quem vai sair do país são meus acusadores, no Ministério Público, na Polícia Federal e no Judiciário, porque ele inventaram a meu respeito e eu só tenho a meu favor a tranquilidade de um homem inocente”.

Dilma: “O monstro saiu da caixa. A extrema-direita não tinha cara, agora tem”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Busca pela felicidade ampla

Em sua fala, Dilma disse que o Brasil, infelizmente, se tornou um líder na região ao introduzir um novo modelo de golpe militar-midiático, com apoio de setores financeiros e algumas corporações de classe, como a do Judiciário. Assim como havia dito em entrevista recente ao Sul21, salientou que o seu impeachment foi apenas o passo inaugural do golpe, que seria um processo.

A presidenta eleita destacou que, após um primeiro momento em que discutia-se se foi golpe ou não, comprovou-se que, sim, tratava-se de um, quando o governo adotou a “agenda golpista que tinha sido derrotada quatro vezes”, com políticas da privatizações de estatais e desregulamentação do mercado de trabalho. “Impuserem o mais sombrio neoliberalismo”.

Agora, o Brasil estaria em um terceiro momento, de promoção do ódio, em que o governo se encontra sem candidato próprio após alimentar o “monstro” da extrema-direita. “O monstro saiu da caixa. A extrema-direita não tinha cara, agora tem. O golpe se auto derrotou e o único candidato que se opõe a esse crescimento da extrema-direita, de fazer oposição ao retrocesso e à venda de patrimônio e de terras, vocês sabem quem é. Lula tem a missão de fazer o Brasil se encontrar consigo mesmo. Nós queremos lavar e enxaguar a alma do nosso país, acabar com a dor profunda que abala o povo brasileiro. Temos que liderar um movimento pela construção da felicidade ampla”, disse.

Rafael Correa criticou seu sucessor Lenin Moreno, acusando-o de ser o “Temer equatoriano”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

“Temer equatoriano”

Em uma breve aparição ao final do evento, o ex-presidente do Equador Rafael Correa criticou o seu sucessor, Lenin Moreno, a quem acusou de ser o “Temer equatoriano” por ter, segundo ele, traído a “revolução cidadã” do país e entregado seu governo “totalmente para a direita”. “Foi uma traição profunda, a entrega total do país aos poderes de sempre e à imprensa corrupta”, disse.

Correa, que hoje vive na Bélgica e veio à Santana do Livramento para gravar entrevistas com Lula, Dilma e Mujica para o canal russo RT, também concordou que a América Latina vive um retrocesso de aumento da pobreza e no qual setores da elite e da imprensa tentam deslegitimar os governos de esquerda com a acusações de corrupção, judicialização da política, rompimento com os direitos humanos e com a regra constitucional, mas ressaltou que, diante disso, não se pode perder a disputa moral. “O governo honesto não é o que não tem casos de corrupção, porque todos têm, mas o que não tolera”.

Ao final, acabou o seu discurso, e o evento, com um tradicional chamado para a mobilização da esquerda latino-americano. “Venceremos companheiros. Hasta la victoria, siempre“.

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Foto: Guilherme Santos/Sul21
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