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15 de novembro de 2017
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15:45

‘Começa uma longa marcha para reconstruir o país, recuperar direitos, reflorestar as palavras’

Por
Sul 21
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Flavio Koutzii: “Tenho o acalanto confortante de ter vivido muito mais do que minhas mortes prenunciavam”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Marco Weissheimer

“Mesmo no tempo mais sombrio temos o direito de esperar alguma iluminação”. A escolha de epígrafe feita pelo historiador Benito Bisso Schmidt para abrir a biografia de Flavio Koutzii marca o que o biografado acabou definindo como atualidade inesperada da obra. A reflexão de Hannah Arendt, em “Homens em Tempos Sombrios” dialoga com as sombras que voltaram a encobrir o presente e de como alguns exemplos de vida podem lançar alguma luz sobre elas:

“(…) mesmo no tempo mais sombrio temos o direito de esperar alguma iluminação, e que tal iluminação pode bem provir, menos de teorias e conceitos, e mais da luz incerta, bruxuleante e frequentemente fraca que alguns homens e mulheres, nas suas vidas e obras, farão brilhar em quase todas as circunstâncias e irradiarão pelo tempo que lhes foi dado na Terra (…)”.

O lançamento de “Flavio Koutzii – Biografia de um militante revolucionário. De 1943 a 1984” (Editora Libretos), no final da tarde de terça-feira (14), foi ele próprio um momento de iluminação. A sala Leste do Santander Cultural ficou completamente lotada, deixando muita gente no lado de fora. Depois, uma longa fila se formou na Praça de Autógrafos da Feira do Livro de Porto Alegre, em busca de uma assinatura do militante revolucionário criado no Bom Fim e que saiu mundo afora para defender os ideais que forjaram sua alma e sua trajetória política. Em um encontro carregado de emoção, autor e biografado falaram sobre o longo e penoso caminho que percorreram para reconstruir a memória de uma vida em tempos sombrios que, numa dramática ironia, voltam a sobrevoar o presente.

Livro “Flavio Koutzii, Biografia de um militante revolucionário” (Editora Libretos) foi lançado na Feira do Livro de Porto Alegre. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Algumas nuvens dessas sombras sobrevoaram recentemente o próprio local onde ocorreu o lançamento do livro. Na abertura do encontro, o jornalista Rafael Guimaraens lembrou o episódio do cancelamento da exposição Queer Museu pelo Santander Cultural. “Há algumas opiniões que defendem que devemos boicotar o Santander. De uma parte, essa não é uma atividade do Santander, mas sim da Feira do Livro, e não haveria tempo hábil para encontrar outro local. Se houvesse o boicote, isso significaria mudar de local toda a programação cultural da Feira. O que estamos fazendo é lembrar o episódio e criticar a postura adotada pelo Santander Cultural”.

Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Benito Schmidt não pode participar presencialmente do lançamento, pois encontra-se nos Estados Unidos em atividade acadêmica. Mas ele gravou um vídeo falando sobre o sentido do livro e acompanhou, pela internet, a fala de Flavio Koutzii e as intervenções do público. A obra, segundo ele, resultou de um encontro entre uma pesquisa acadêmica que buscava um personagem cujo percurso falasse sobre a história latino-americana recente e a disposição de Koutzii em contar um pouco das escolhas feitas por ele e por sua geração e dos valores que as motivaram. “Entender a trajetória do Flavio é entender uma época complexa, onde muitas pessoas fizeram escolhas difíceis, entre elas, a luta armada contra ditaduras latino-americanas”, disse o historiador, que acrescentou:

“Esse é um livro acadêmico, mas também é uma obra de intervenção na luta atual contra o obscurantismo e o autoritarismo”.

Ao final de sua fala, Flavio Koutzii foi aplaudido de pé por vários minutos. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

“A minha experiência é completamente singular, ser biografado e ainda estar vivo”, brincou Koutzii na abertura de sua fala que apontou o caráter doloroso do mergulho que fez em sua própria vida. “Foi um processo de emergência permanente da memória, algo doloroso, pois não há um mecanismo que selecione os momentos de alegria e afaste os momentos de dor. No intercâmbio com o biógrafo, fui aprendendo muito com ele e ele comigo. Esse percurso teve situações dolorosas. Pouco a pouco, vai se percebendo a montagem da minha própria história como se fosse um grande espelho”. À irrupção de dois níveis de memória, somou-se o tema do envelhecimento, acrescentou, lembrando que foram sete anos de conversa para a produção da biografia, lançada agora quando ele está com 74 anos.

No posfácio, intitulado “Sou um deles e todos eles sou eu”, o biografado resumiu assim esse trabalho de mergulho na própria memória:

“A biografia é a implosão da memória, desorganiza a narrativa do biografado, que não sabe como cairão as peças. Se reabre a vida para outra fase – viver coexistindo todo o tempo com a respiração da elaboração biográfica. Passa a ser uma grande incerteza, um maldito labirinto, e estabelece, rapidamente, uma tensão brutal entre o passado e o breve presente. (….) Tenho o acalanto confortante de ter vivido muito mais do que minhas mortes prenunciavam, e mais, ter conseguido (com o que sobrou) juntar os pedaços e fazer caminhos”.

Além de interpelar a sua própria memória, contou ainda Flavio Koutzii, o processo de construção da biografia foi sofrendo um deslizamento e começou a se mesclar com os trilhos do presente da política brasileira. “São períodos distintos, mas eles acabam se encontrando no presente. Não tem como não misturar. Essa trajetória acaba interpelando o que estamos vivendo hoje. A minha vivência e a de outros combatentes da minha geração interroga o trágico presente que vivemos. Neste sentido, o livro acabou adquirindo uma atualidade paradoxal e inesperada”.

Após um processo doloroso de mergulho na própria obra, Koutzii considerou o resultado final de uma “inpesperada atualidade”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

O biografado destaca dois personagens nesta atualidade: Che Guevara e Lula. “A atualidade de Che não é uma literalidade. Não é que eu ache que devemos partir para a luta armada, mas sim olhar para o símbolo e o exemplo que ele deixou, um exemplo de vida verdadeira, de entrega e de coragem”. No posfácio, Koutzii resume assim o exemplo de Che: “ele lutou, chegou ao poder, renunciou, continuou a lutar e deu a vida”. Quanto a Lula, “ele não é nenhum Che”, frisou, mas é um herói dos nossos tempos que, agora, tem a força moral de, sitiado, caminhar pelo país numa caravana que guarda uma analogia com a caminhada da Coluna Prestes.

Essa atualidade, concluiu, articula a vivência de várias gerações que foram para o olho da tempestade, experiência esta que interroga e trata das lutas de resistência do presente. No texto que encerra o livro, Flavio Koutzii fala sobre essas lutas que se abrem para as novas gerações: “Agora, aqui, começa a longa marcha para reconstruir o país, recuperar direitos, reflorestar as palavras, reler os poemas, ouvir nossas canções”. E, na forma de um PS, lamenta a partida de um companheiro: “Marco Aurélio Garcia, farás muita falta. Pô, logo tu que me recrutaste.”

Galeria de fotos

Foto: Guilherme Santos/Sul21
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Foto: Guilherme Santos/Sul21
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