Últimas Notícias>Política
|
17 de agosto de 2015
|
13:34

O olhar de um iraquiano sobre o Oriente Médio

Por
Sul 21
[email protected]
Sabah Salman: Em minha casa não havia um só livro. A fonte de conhecimento eram meu pai e minha mãe | Foto: Flavia Boni Licht / Especial Sul21
Sabah Salman: Em minha casa não havia um só livro. A fonte de conhecimento eram meu pai e minha mãe | Foto: Flavia Boni Licht / Especial Sul21

Adélia Porto Silva e Nubia Silveira

O iraquiano Sabah Salman deixou seu país nos anos 1980, com 23 anos, e foi buscar cultura artística na Europa. De família modesta, ele conseguiu desenvolver seu talento nas artes plásticas e obter bolsas de estudos na Suíça e na Inglaterra. Viveu muitos anos na Europa sem voltar ao seu país, casou-se com a brasileira Suzana Boni, tornou-se professor na Escola Internacional de Genebra e ganhou reconhecimento como artista plástico. Da Europa, ele viu à distância as transformações que abalaram os países do Oriente Médio, os efeitos das guerras infelicitando seus conterrâneos e principalmente a destruição da rica e produtiva cultura dessa região do mundo. Voltou ao Iraque logo após os ataques dos norte-americanos e mantém-se em contato permanente com sua grande família, que ainda vive em Bagdá. Aos 58 anos, Sabah Salman deplora essas perdas avassaladoras. Diz que “as guerras destruíram a alma iraquiana” e que gostaria de transmitir aos brasileiros que “a paz que vocês têm é magnífica. Aproveitem!” Ele conversou com o Sul21 em encontro na casa do economista Enéas de Souza e da arquiteta Flavia Boni Licht, que participaram da entrevista. A conversa continuou por e-mail, com ele já de volta à sua casa.

Sul21 – Como era sua vida no Iraque?
Sabah Salman –
Nasci em Bagdá, em 1957. Sou de uma família humilde, modesta e numerosa. Tenho seis irmãs e três irmãos. Em minha casa não havia um só livro. A fonte de conhecimento eram meu pai e minha mãe. As informações eram transmitidas oralmente. Mas sempre me interessei por tudo que é visual, como a pintura e o desenho. Com 14 anos, nos anos 1970, comecei a passar o dia fora de casa. Foi um período formidável. (Naqueles anos, no Iraque, havia comunistas, marxistas, stalinistas, todos os partidos políticos.) Foi quando encontrei os livros. Comecei a ter acesso às livrarias e ler tudo. Para nós, era muito difícil adquirir livros. A gente comprava um e trocava por outros. Era moeda corrente. Se tu tinhas um livro, tu já eras rico. Assim, tive acesso à literatura de vários países: alemã, espanhola, francesa, inglesa, árabe, literatura clássica, iraquiana também. No Oriente Médio, principalmente no Iraque, a literatura e a arte visual têm a mesma importância. Bagdá era o berço de quase toda arte islâmica. Havia, também, outras cidades iraquianas importantes na civilização muçulmana, como Basra, de onde vinha meu pai, e Khufa. Eram cidades de destaque na ciência, na arquitetura, na literatura. Há uma cultura rica no Iraque. Até hoje, em Bagdá, há pessoas que se reúnem para ler poesia. Há espetáculos de poesia. Festivais de poesia. Há muitos poetas.

“Crianças e adultos são operados sem anestesia”

Sul21 – Como era viver no Iraque naquela época?
Sabah – Nos anos 1970, pouco antes da guerra com o Irã, vivíamos um período formidável, sob todos os pontos de vista. O Iraque era um dos países mais desenvolvidos de todo o Oriente Médio. Mais desenvolvido do que o Brasil. Desenvolvido do ponto de vista da saúde, educação, do ensino superior, nas universidades. Chegavam pessoas de todos os países do Golfo, do Egito, do Marrocos, para estudar e obter seus diplomas em Bagdá. Era um período muito rico. A área da saúde era muito desenvolvida. Hoje em dia, crianças e adultos são operados sem anestesia. A estrutura sanitária foi muito atingida e o nível em que se encontra hoje pode ser comparado ao dos países africanos. Os médicos partiram para os Estados Unidos, para a Europa. Os engenheiros também.

Naquela época, se vivia no Iraque como em todos os lugares do mundo. Havia escritores e intelectuais que pensavam o social, imaginavam transformar o mundo. Cantores, poetas, políticos, escritores queriam, verdadeiramente, mudar o mundo para melhor. Havia a riqueza da cultura e também a riqueza do petróleo. Quando eu tinha 14 anos, a vida no Iraque era muito agradável. Foi nessa época que comecei a voltar tarde para casa. Ia de uma livraria a outra, apesar de não ter dinheiro. Foi assim que comecei a conhecer o pensamento político. Quando Saddam Hussein chegou, em 1968, ficou só o partido político dele. Os outros se esconderam, inclusive os comunistas.

"Enquanto os sunitas aceitam que as autoridades religiosas e políticas sejam fundidas na mesma pessoa, os xiitas pregam por uma separação"
“Enquanto os sunitas aceitam que as autoridades religiosas e políticas sejam fundidas na mesma pessoa, os xiitas pregam por uma separação” | Foto: Flavia Boni Licht / Especial Sul21

Sul21 – O que levou os demais partidos ao esconderijo?
Sabah – A ditadura de Saddam Hussein. A proibição de todo movimento de oposição. Perseguição, prisão, tortura…

Sul21 – Você fez o curso de Belas Artes?
Sabah –
Sim. Fiz Belas Artes porque amo a arte, a literatura, a cultura. A Universidade em que estudei era um complexo enorme, com cursos de música, pintura, cerâmica, televisão, cinema, teatro, etc. Para mim, de estrato social inferior, foi formidável conhecer todo esse mundo. Quando terminei o curso, fui um dos primeiros 10 da Universidade de Bagdá, que tinha, na época, entre 150 mil e 200 mil estudantes. Havia a possibilidade de eu ensinar Belas Artes. Eu queria ganhar algum dinheiro. Minha mãe esperava por isso e eu também, porque nunca havia ganho um salário na minha vida. Por isso, optei por ser professor, justamente nos anos 1980, quando começou a guerra com o Irã. Em Bagdá faz muito calor, cerca de 50 graus, bem mais do que em Porto Alegre. As pessoas dormem sobre os telhados. No último ano de Belas Artes, eu estava dormindo quando ouvi o ruído dos aviões que voavam muito baixo, quebrando a barreira do som. Todos nós acordamos. Foi um choque para nós. Era o início da guerra com o Irã.

A guerra do Irã X Iraque foi a de sunitas contra xiitas

Sul21 – Por que a guerra?
Sabah – Por que a guerra? Disseram que eram sunitas (o Iraque, de Saddam Hussein) contra xiitas (o Irã, do aiatolá Khomeini). Vocês compreendem a diferença entre os dois ramos do Islã? É como católicos e protestantes. Os sunitas consideram o Corão como uma obra divina: o imã é um pastor nomeado por outros homens, que serve como guia entre os fiéis e Alá; em certas situações ele pode se autoproclamar. Os xiitas consideram o imã, descendente da família de Maomé, como um guia indispensável à comunidade, tirando a sua autoridade diretamente de Deus. Consequência prática: enquanto os sunitas aceitam que as autoridades religiosas e políticas sejam fundidas na mesma pessoa, os xiitas pregam por uma separação clara. A imagem dos sunitas é a dos conservadores que sempre serviram ao Ocidente. A dos xiitas é dos que sempre foram reprimidos. Como não serviram ao Ocidente, a má imagem é deles, dos xiitas. Países muito ricos em petróleo, parceiros do Ocidente, são sunitas. A Arábia Saudita, Catar, Barein, países ricos em petróleo, são sunitas. Sua imagem é muito boa, enquanto a dos xiitas é ruim.

Judeus, cristãos e muçulmanos têm a mesma raiz de crença. No Corão estão os nomes de Maria, José, Jó, de todos os profetas. São as mesmas pessoas, as mesmas histórias. As três religiões nasceram muito perto, numa área como se fosse o Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Os judeus e os muçulmanos não comem porco. Por quê? Porque na época havia muita doença por causa do calor, então o evitavam. No Islã, não há intermediário, não há um padre. Fala-se diretamente com Deus. Essa é a diferença. A ideia de paraíso, de punição, do julgamento final, é tudo igual. Nossa história também tem fantasia, é lógico. Tem profetas, mitologia. Acho que as raízes dessas três religiões não são o antigo testamento, são os assírios, há sete mil anos, são os mitos antigos, as regras antigas. Todas as leis, como o Código de Hamurabi, por exemplo, já estavam feitas. Nós as pregamos, mas não pertencem aos judeus nem aos cristãos. Pertencem aos iraquianos antigos. Por isso, digo que nesse canto do mundo sempre haverá guerra. Sempre vão inventar coisas. Em sete mil anos, foram raros os períodos de paz. Moro na Suíça e faz sete séculos que eles não têm guerra. É maluco! Como o Ocidente protege países como a Arábia Saudita que corta a cabeça das pessoas, não respeita os direitos de homens e mulheres? Não entendo.

Sabah: o interesse petrolífero que desencadeou a guerra no Afeganistão também causou a guerra no Iraque
Sabah: o interesse petrolífero que desencadeou a guerra no Afeganistão também causou a guerra no Iraque | Foto: Flavia Boni Licht / Especial Sul21

Sul21 – A região sofreu com invasões de europeus, dos soviéticos e dos norte-americanos. Como foi viver sob estes invasores?
Sabah –
Quando chegaram ao Oriente Médio, os ingleses e os franceses queriam instaurar a cultura deles. No Iraque conviviam várias religiões, os diversos ramos muçulmanos, cristãos, judeus, sabeus e yazidis, uma seita muito antiga do norte do Iraque, que adora o fogo. Os europeus não deixaram as religiões se expressarem, o que perdurou e se reforçou durante os 30 anos de ditadura no período de Saddam. As pessoas praticavam suas religiões, mas o pensamento religioso era reprimido. Quando os americanos entraram no Iraque e eliminaram Saddam Hussein, houve uma explosão da religião, especialmente os xiitas, que foram os mais reprimidos nesse período. Quanto aos partidos, Saddam havia eliminado a todos: comunistas, direita, esquerda. Quando a ditadura caiu, eles saíram de seus esconderijos. Como resultado, hoje, existe uma centena de partidos políticos que querem todos fazer valer as suas opiniões. O problema é que a maioria desses partidos é corrompida e é o dinheiro que prevalece e não as ideias.

Sul21 – O petróleo foi a causa de tantas invasões, não?
Sabah –
(mostrando o mapa do Oriente Médio) – No mar Cáspio, Uzbequistão e Turkmenistão, que se encontram ao norte e nordeste do Irã, existe uma enorme reserva de petróleo e gás natural. As multinacionais norte-americanas, que exploram o petróleo e o gás, precisavam de um “corredor” para fazer os gasodutos chegarem ao Mar de Omã e ser transportados por navios para a Europa e EUA. A única opção para este “corredor” era o Afeganistão, já que o Irã era governado pelo ayatolá Khomeini, inimigo jurado dos EUA. Problema: os russos tinham invadido o Afeganistão e controlavam aquela região. Os americanos formaram, treinaram e armaram os afegãos para recuperar a região. Bin Laden fazia parte desta “elite”. Uma vez ganha a guerra pelos “afegãos”, o corredor estava seguro.

O mesmo interesse petroleiro desencadeou a guerra no Iraque. Numa primeira fase houve a eliminação de Saddam Hussein, que não jogava mais no campo dos americanos, e numa segunda fase a apropriação dos campos e das refinarias de petróleo pelas multinacionais americanas e pelas dos países que tinham se alinhado com os americanos. Como exemplo dos que não obtiveram nenhuma parte do bolo, está a França, que votou, no Conselho da ONU, contra a intervenção dos EUA no Iraque.

Suzana – A razão é sempre a indústria de armas norte-americana. É preciso inventar mercados, a qualquer pretexto. É preciso inventar guerras e, ao mesmo tempo, explorar os recursos naturais das regiões invadidas. Para mim, esses são crimes contra a humanidade.

“Nas guerras, perdemos dois milhões de pessoas. Os aleijados são milhares”

Sul21 – Quantas pessoas morreram nessas guerras?
Sabah – Perdemos dois milhões de pessoas. É muito. O que fizemos para perder toda essa gente? Qual crime cometemos? Quantas mulheres ficaram sem marido! Quantas crianças ficaram sem pai! Os aleijados são milhares de pessoas. Saí de lá justamente quando a guerra começou com o Irã, em 1981, há 34 anos. Fiquei durante quatro meses da guerra. Depois saí para fazer meus estudos de Belas Artes em Lausanne. Eu tinha 23 anos e acabara de terminar a Universidade.

Suzana – Ele recebera uma bolsa de estudos. Trabalhava com gravura. Voltou a Bagdá e a guerra entre Irã e Iraque continuava e, então, decidiu retornar à Europa.

Sabah – A Europa para mim era outro mundo. No Iraque, eu lutava por um livro. Na Europa, eu encontrava os museus. Em Bagdá, eu tinha uma imagem vaga de Picasso, dos mestres da pintura. Na Europa, eu via as pinturas nos museus. Fiz dois anos de Belas Artes em Londres. Depois, decidi voltar a Lausanne e lá comecei a fazer grafismo. Fiz três anos assim, eu tinha muito boa técnica, era muito preciso, fazia muito bem meu trabalho. Colegas que viram meu portfólio, me engajaram numa escola de design, na Suíça. Lá, numa escola formidável, encontrei toda a riqueza do mundo ocidental.

"O serviço secreto iraquiano era muito forte na Europa. Por isso, eu tinha que trocar de endereço, trocar de nome, seguidamente" | Foto: Flavia Boni Licht / Especial Sul21
“O serviço secreto iraquiano era muito forte na Europa. Por isso, eu tinha que trocar de endereço, trocar de nome, seguidamente” | Foto: Flavia Boni LIcht / Especial Sul21

Sul21 – Você mantinha contato com a sua família?
Sabah –
Por nove anos não recebi uma única carta, nenhuma noticia de minha família. E eles não sabiam nada de mim. Fui chamado para a guerra. Ignorei. Tornei-me desertor. O serviço secreto iraquiano era muito forte na Europa. Por isso, eu tinha que trocar de endereço, trocar de nome, seguidamente. Se eles me achassem, ou minha família, fariam pressão para que eu voltasse, matariam uma ou duas pessoas para que eu voltasse. Eu me escondia, trocava de nome. Isso durante nove anos. Perdi meu pai durante esse tempo. Foi um período muito difícil. A gente não sabe o que se passa. Eles (o governo iraquiano) encontraram um caminho: pegaram minha mãe, mandaram-na trazer de volta o filho. Ela disse: “Sem problemas, vocês me dão passaporte e dinheiro e eu vou procurá-lo na Europa”. Eles não deram o passaporte. Fizeram pressão psicológica. Ninguém saiu de Bagdá.

Quando houve o ataque norte-americano, todos os iraquianos que estavam em Lausanne e em Genebra, começaram a aparecer e se identificar, procurar notícias da família, falar uns com os outros e restabelecer comunicação. Eu queria voltar, fazia 11 anos que estava fora e isso era muito tempo para mim. Na primeira vez, eu e a Suzana fomos encontrar a minha família em Amã, na Jordânia. Na segunda vez, depois de estar longe da minha cidade natal por 20 anos, resolvi ir a Bagdá. Cheguei em Amã, passei pelo deserto, viajei 16 horas em táxi até Bagdá. Foi muito estranho, eu tinha muito medo. Mas decidi: queria voltar. Não podia deixar minha família. Não cometi nenhum crime. Alguns companheiros tinham entrado antes, havia uma rede que dava notícias para se saber como ir. Desta vez eu estava sozinho, havia a batalha de Faluja. Foi uma viagem muito perigosa, pois devíamos passar por essa cidade no momento mesmo em que ela estava sendo bombardeada. Tivemos que fazer um grande desvio e não entendíamos bem o que estava acontecendo naquele momento. Só quando cheguei a Bagdá e vi toda a família em pânico e soube que a Suzana, que conhecia o meu roteiro e sabia mais ou menos onde eu me encontrava, já tinha telefonado várias vezes para saber se tudo estava bem, é que compreendi.

Sul21 – Como foi recebido quando voltou pela primeira vez? Como estava Bagdá?
Sabah –
Como já falei, o Iraque era um país muito rico. Tão rico que, quase seis anos depois do primeiro ataque, não havia vestígios de guerra. Não havia traços de guerra em Bagdá, nas avenidas tão largas como a Champs Elisées, em Paris. Refizeram tudo. Deixei minha irmã quando ela tinha nove anos e, na volta, ela já tinha três filhos. Não lembrava de mim. Minha mãe lhe dizia: “Te juro. É teu irmão”. Viajei com passaporte suíço. Tinha me tornado suíço. Em Bagdá, no tempo da ditadura, suíço ou não, eles pegavam o passaporte. Os militares não têm respeito. Fiquei dez dias em Bagdá. Não reconhecia mais ninguém da minha família. As crianças não me conheciam. Na época, Saddam estava cansado, enfraquecido. Ele queria que o deixassem tranquilo. Havia muitos iraquianos voltando, com muitos dólares. Isso servia ao governo.

Não acho os iraquianos muito diferentes dos brasileiros. Eles continuam tendo humor. Escondem-se nas piadas, nos momentos de gravidade. Eles adoram fazer festa também, mas sem álcool. Gostam de sair, encontrar os outros. É um povo muito vivo.

“As guerras destruíram a alma iraquiana”

Sul21 – Qual a pior consequência dessas guerras?
Sabah –
As guerras não destruíram só o país, destruíram a alma iraquiana. A vida mudou. As pessoas que eram antes muito amáveis se tornaram agressivas, desconfiadas. Antes, as pessoas não trapaceavam. Hoje, o que custava 100 dólares vale 500. As pessoas se tornaram mais comerciantes, mais trapaceiras, algo que não havia antes. Agora, tudo é problema. Lixo é um problema, eletricidade e água são problemas. É uma humilhação. Um país que produz em volta de quatro milhões de barris de petróleo por mês, não tem água limpa. Atualmente, só há água nas torneiras durante duas horas por dia. E lá faz 50 graus de calor! Sem água, apesar do calor, as pessoas não podem banhar-se. É uma humilhação. A corrupção tornou-se incrível. Em Bagdá, hoje, a gente encontra todos os ladrões do mundo. Não há segurança. Se você estaciona o seu carro em lugar errado, na terceira vez, leva uma bala na cabeça. Matar alguém não é nada. O ser humano não tem qualquer valor.

"As guerras não destruíram só o país, destruíram a alma iraquiana"
“As guerras não destruíram só o país, destruíram a alma iraquiana” | Foto: Flavia Boni Licht / Especial Sul21

Sul21 – O Iraque tem condições de voltar a ser o país que era? Reorganizar-se numa democracia?
Sabah –
Não é possível, porque destruíram as escolas, a educação. Não há memória. As pessoas não compreendem o que se passa. É impossível construir uma sociedade com pessoas que não têm educação. É a mesma situação das favelas no Brasil. É impossível construir uma sociedade nessas condições. Os iraquianos hoje vivem sem educação, sem saúde e sem segurança. Não têm referências. Não se sabe como sairão disso. As crianças de hoje não conhecem os assírios, nem os babilônios, nem a civilização muçulmana, nem a história de seu país, a cultura. Os iraquianos hoje não sabem nada. Estão destruídos. Atualmente, é o Irã que comanda o país, pois muitos dos refugiados políticos do tempo de Saddam, que se encontravam no Irã, voltaram, e hoje se tornaram parte do governo atual. Existem também alguns movimentos religiosos e a milícia que são subvencionados pelo Irã.

Sul21 – Dizem que os norte-americanos levaram duas coisas ao Iraque: a democracia e o mercado.
Sabah –
Não há democracia. Os iraquianos não precisamos dessa democracia de merda. Não há mercado. O que eles levaram foi a guerra. E nós deixamos. Não se produz nada no Iraque. É uma paralisia completa. O ser humano iraquiano hoje está completamente destruído, apesar de ser o povo mais produtivo e criativo do mundo árabe.

Não falamos na questão geopolítica. Na cidade síria de Tartus há uma base militar russa. É a única que eles podem usar para chegar ao Mediterrâneo. Os russos querem que os iranianos xiitas sejam fortes, porque impedem os norte-americanos de avançar no Oriente Médio. É de novo os russos contra os americanos e nós espremidos no meio.

Uma das consequências da intervenção americana no Iraque foi a independência “relativa” do Curdistão iraquiano e a formação do Daesh (Estado Islâmico). Outro fator perturbador para o Oriente Médico é a segurança de Israel. O Hezbollah, partido político libanês, é xiita. A Síria, representada pelo poder de Bashar al-Assad, é xiita. Os xiitas iraquianos e o Irã, estado xiita por excelência, são uma verdadeira ameaça a Israel.

Sul21 – Os integrantes do Estado Islâmico falam em construir um califado. O EI é realmente um perigo para o mundo?
Sabah –
Não sei. O que há de verdade é que quando os norte-americanos entraram no Iraque, eles armaram um grupo sunita para caçar a Al Qaeda, que chegou do Afeganistão. Este grupo, que trabalhou com os americanos, combateu a Al Qaeda no Iraque com bons resultados. Eles se reforçaram em armas. Os americanos aliados ao governo iraquiano, depois de obter os resultados desejados, abandonaram este grupo que não obteve nenhuma força política (e a história se repete). Sem esquecer que este grupo era formado por sunitas e o resto dos militares de Saddam. Depois disso, eles se autoproclamaram Estado Islâmico e declararam a guerra ao Ocidente e ao poder Iraquiano, que é xiita. O objetivo é formar um estado sunita, fundamentalista, com retorno às fronteiras de 1916 (acordo Sykes-Picot, que determinou as fronteiras do Oriente Médio atual). O financiamento do Estado Islâmico continua sendo duvidoso. De toda maneira, existe uma troca constante de poder e de interesses nesta região que se torna difícil de controlar. Acho que é isso, muitos partidos políticos, facções religiosas diferentes, potências estrangeiras que lutam por um mesmo objetivo: poder e dinheiro. O caos é total e o cenário é ideal para os que aproveitam para saquear as riquezas do país.

Esta divisão entre sunitas e xiitas não era assim. Na minha família existiam xiitas e sunitas. Casavam-se entre eles, sem problemas. Esse ódio hoje existente foi alimentado. Há um provérbio que diz: “o tubarão caça em águas turvas”. Semeia-se o caos e se tira proveito.

“A mulher é respeitada quando está coberta. Se ela se mostra, é agredida”

Sul21 – Qual a situação das mulheres, hoje, no Iraque?
Sabah – Em geral, ruim. Na estrutura familiar, a mulher controla o dinheiro. Ela cuida da educação dentro de casa. Ela tem o seu lugar, mas hoje é muito reprimida na rua. Não é respeitada. É respeitada quando está coberta, mas se ela se mostra, é agredida. Isso começou uns seis meses depois da entrada dos norte-americanos no Iraque.

Atualmente, a tendência é que a mulher se cubra, seguindo os textos religiosos. As mulheres não podem se maquiar, devem se mostrar só para os maridos, não para outros homens. Se a mulher sai da casa, tem que estar vestida de forma a não excitar os homens. Os religiosos dizem que mostrar os cabelos, a boca, o nariz excita o homem. É preciso que a mulher se cubra toda. No Afeganistão e em alguns países árabes, elas usam a burca, cobrindo-se totalmente. Em Bagdá, em alguns bairros, as mulheres vivem normalmente, como aqui, como na Europa. Mas na maior parte dos lugares, elas têm que se cobrir. Se arriscar desobedecerem, podem ser fisicamente agredidas.

Suzana: "Com fome, os iraquianos passaram a aceitar o dinheiro dos políticos religiosos. É como aqui no Nordeste: político que dá cesta básica, ganha voto"
Suzana: “Com fome, os iraquianos passaram a aceitar o dinheiro dos políticos religiosos. É como aqui no Nordeste: político que dá cesta básica, ganha voto” | Foto: Flavia Boni LIcht / Especial Sul21

Suzana – Quando estive no Egito, entre 1996 e 1997, o pai de uma amiga egípcia dizia para ela não sair de manga cavada. Ela saiu do Egito e quando voltou, encontrou suas amigas usando véu. Elas disseram que os partidos religiosos, como a miséria era absoluta, pagavam as mulheres na universidade para vestirem o véu. Davam um salário. No Iraque, quando os norte-americanos entraram, as comunidades xiitas e sunitas se dividiram como nunca havia acontecido. As pessoas foram tiradas de suas casas, de seus bairros. Se decidissem que o bairro era sunita, o xiita não podia ficar. Até matavam pessoas, por ter nome de conotação sunita ou xiita. Viviam em guetos. E os que patrocinavam os guetos eram os religiosos, porque os norte-americanos afirmaram que levariam dinheiro, democracia e comércio. Não levaram nada. E as pessoas entraram em desespero. Com fome, aceitavam o dinheiro dos políticos religiosos. É como aqui no Nordeste: político que dá cesta básica, ganha voto.

Sabah – Hoje, as mulheres que terminam a universidade têm dificuldade em encontrar trabalho. Preferem os homens às mulheres. Outra realidade é a existência de mais mulheres do que homens no Iraque, pois muitos deles morreram na guerra. Assim, o homem pode escolher mulheres virgens, cada vez mais jovens, para casar. As famílias são pressionadas a casar suas filhas, para diminuir a carga familiar. Há toda uma questão social. Os pais casam filhas com 14/15 anos e até menos. Há o medo do Estado Islâmico, que, ao chegar nas cidades, prende crianças e viola jovens. Se estiverem casadas, estarão protegidas. Quando casam, vão viver com a família do marido e passam a ser empregadas deles. Não é uma vida cor-de-rosa. Mas há as que resistem. Tenho várias sobrinhas que terminaram a universidade e querem seguir estudando, trabalhando. Lina, uma delas, terminou a universidade aos 22 anos. Com essa idade é considerada velha, ninguém quer casar com ela. Na Europa, as mulheres casam com 44/46 anos, o dobro.

Sul21 – A vida não é cor-de-rosa apenas para as mulheres?
Sabah –
Com os homens e as crianças também é muito difícil. Os homens que têm meios para casar são felizes. E os que não têm? Não há sexo antes do casamento e, para casar, precisam oferecer um dote. No Iraque, quem dá o dote é o homem. Para os que têm vencimentos modestos é complicado. Numa sociedade arcaica – não só a do Iraque, falo da sociedade muçulmana (hoje, conforme para quem eu dissesse isso em Bagdá, seria degolado três vezes) – não há vantagens para as mulheres, nem para os homens ou para as crianças, a família, a sociedade. Comparado com os cristãos, o Islã tem essa ideia de monopólio do homem. Claro que ainda há preconceito contra a mulher, também, no mundo ocidental. Na Suíça, por exemplo, os salários não são iguais. Há cantões em que só há poucos anos foi dado o direito de voto às mulheres.

Acho que o modelo da nossa sociedade está falido. Vivemos a maldição do petróleo e da guerra. Estamos no meio do conflito entre russos, norte-americanos e iranianos. Falo dos iraquianos e, também, dos outros países árabes, que são visados e vivem o mesmo sofrimento, com exceção dos países do Golfo. Nós, da sociedade árabe, estamos cansados e com nostalgia da civilização muçulmana. No Iraque, não há mais o orgulho que havia nos anos 1960/1970. Naquela época, as mulheres ficavam em casa cuidando dos filhos, mas havia muitas mulheres que trabalhavam e estudavam. Todas as minhas irmãs trabalhavam. Hoje, estão aposentadas. Havia respeito.

Suzana – Eles viviam em um grupo coeso, onde havia harmonia, lugar para todo o mundo. O sistema implantado pelo capitalismo é muito individualista. No mundo muçulmano, a tendência era a de avançar, mas devagar. Nos últimos 25 anos, com a globalização e a chegada da Internet, eles foram sacudidos em suas tradições.

Sabah – Antes, em sociedades isoladas, muito simples, o pai controlava tudo na casa. A mãe controlava as crianças. Hoje, não controla mais. As crianças estão no telefone, conectadas ao mundo e a mãe não sabe o que se passa. Os pais foram, muito rapidamente, ultrapassados pelos acontecimentos.

Infelizmente, as mudanças políticas ocorreram de modo acelerado e dramático, nos últimos 20 anos. Em meu país há um sentimento de decepção, frustração e tristeza. Os que têm o poder não se interessam em nada pela população. Não vejo como pode melhorar. Tudo o que interessa é o lucro. Cortam-se os investimentos em educação, arte, pesquisa, em tudo. Para mim, deve ser o contrário. Para termos paz amanhã, é preciso injetar dinheiro na educação, na arte.

"Vocês, brasileiros, são ricos. Vocês são muito cosmopolitas, têm uma riqueza incrível. Vocês precisam manter a paz"
“Vocês, brasileiros, são ricos. Vocês são muito cosmopolitas, têm uma riqueza incrível. Vocês precisam manter a paz” | Foto: Flavia Boni Licht/ Especial Sul21

Sul21 – Você ainda tem esperanças?
Sabah –
Esta é uma questão muito difícil, porque é profunda, Para mim, o que existe é o dia a dia. Se amanhã houver paz em algum lugar, estarei contente, pois a guerra é horrível. Aqui no Brasil, as pessoas têm água, luz e não estão contentes. Ficam dizendo que tudo é uma merda. Se viverem uma guerra, saberão realmente o que é merda. Você pode ser crítico, mas não pode deformar a realidade. Vi críticas à presidenta Dilma, imagens que fizeram dela e não gostei. Ela pode não ser uma destacada líder política, mas é uma personagem, faz parte da História. Muitos querem alimentar a guerra, a divisão, a raiva. Mas, vocês são ricos. Vocês são muito cosmopolitas, têm uma riqueza incrível. Vocês precisam manter a paz. Fui ao Mercado Público, no Centro de Porto Alegre, vi louros, negros, todo tipo de gente. Em Bagdá não é assim, só há gente parecida comigo. Eu gostaria de dizer aos brasileiros que a paz é magnífica. Aproveitem. A guerra é o pior de tudo que pode acontecer. Eu gostaria de dizer isso aos que decidem, às multinacionais, que não têm alma e só pensam em cifras. Dizer a eles que por trás dessa contabilidade há seres humanos que são totalmente destruídos. Nós, iraquianos, vivemos todas essas coisas horríveis há 30/40 anos.

“Não temos nenhum líder político ou religioso”

Sul21 – Há algum líder no Iraque, que possa conduzir o país à redemocratização?
Sabah – No mundo muçulmano, não há um grupo que decida. Nós não temos hoje nenhum líder político ou religioso. No mundo ocidental há líderes que se pronunciam e podem influenciar o mundo. No Iraque de hoje é o caos total, perdemos todas as referências.

Sul21 – Mas se fala muito em nome de Maomé. Há uma autoridade que busca atacar o Ocidente em nome do profeta.
Sabah –
Esses são grupos de mercenários, pagos para fazer isso. Uma hora é o Irã que paga, em outra, a Arábia Saudita. Toda a guerra do Golfo foi feita por mercenários. Entre eles estavam australianos e até brasileiros. O Estado Islâmico recruta pessoas que são pagas, são mercenários. Recebem até dez mil dólares para combater no Iraque.

"Toda a guerra do Golfo foi feita por mercenários. Entre eles estavam australianos e até brasileiros"
“Toda a guerra do Golfo foi feita por mercenários. Entre eles estavam australianos e até brasileiros” | Foto: Flavia Boni Licht / Especial Sul21

Sul – Ouvimos sobre os ataques da Al Qaeda, do Al Shabab e do Estado Islâmico, ou Isis. O que os diferencia ou aproxima?
Sabah –
O objetivo desses grupos é o mesmo: destruir a herança cultural, artística e humana. De toda a maneira, são todos manipulados para um mesmo fim. A diferença? A fonte de financiamento…, qual país patrocina e qual o interesse em jogo.

Sul21 – O Estado Islâmico já tomou grande parte do Iraque, destruiu sítios históricos, e promete chegar a Bagdá. Como sua família vive com esta ameaça?
Sabah –
Em primeiro lugar, eles estão muito inquietos pela sua integridade física, pois estão entre um exército mal organizado, mal armado e incompetente e um governo e partidos políticos completamente corruptos. Em segundo lugar, a angústia da ameaça de ver transformar um estado laico em um estado religioso.

Sul21 – Você acha que será possível conter o avanço do Estado Islâmico e de seus apoiadores?
Sabah –
Inxala! como se diz no Iraque… se Deus quiser! A complexidade dos interesses na região, os diferentes grupos étnicos e religiosos e o caos em que os países dessa região estão mergulhados me fazem ver com pessimismo o futuro desses povos.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora