Samir Oliveira
Líderes comunitários, acadêmicos e ativistas debateram na noite desta terça-feira (18) as violações de direitos humanos que ocorrem na cidade de Porto Alegre em função da realização da Copa do Mundo. A discussão integra o ciclo de atividades da 6ª Semana de Direitos Humanos do Serviço de Assessoria Jurídica Universitária (SAJU) da UFRGS e ocorreu no Salão Nobre da Faculdade de Direito da universidade.
José Fachel Araújo, conhecido como Seu Zé, mora há mais de 40 anos na Vila Cruzeiro e é um dos líderes da comunidade. Parte de sua propriedade está na linha por onde irá passar a obra de duplicação da Avenida Tronco. “Vão ter que passar com a patrola por cima de mim”, diz o morador de 74 anos.
Ele recorda que a Vila Cruzeiro teve origem em um processo de expulsão da população pobre das regiões centrais da cidade e lamenta que, após terem consolidado suas vidas na região, os moradores estejam sendo obrigados a abandoná-la. “Construímos o bairro com muito suor e sacrifício. O que conquistamos vai ficar para a burguesia”, expressou.
Seu Zé explicou que a comunidade já conquistou pelo menos uma garantia da prefeitura: de que algumas famílias poderão ser reassentadas em terrenos da própria região. Mas esse não é o caso de todas as mais de mil famílias afetadas no local. A reportagem do Sul21 já verificou que muitas pessoas estão se mudando para o Litoral Norte do estado ou cidades da Região Metropolitana – onde é possível comprar um imóvel pelo valor oferecido pela prefeitura.
José Luís Ferreira, morador da antiga Vila Chocolatão, removida em 2011 pela prefeitura, lamenta que, atualmente, o governo municipal não dê tanta atenção à sua comunidade como dá às obras relacionadas à Copa do Mundo. “Nenhum governo foi eleito para fazer Copa. O mesmo governo que é inteligente para atender à FIFA é burro para atender à população que se propôs a governar”, compara.
Com a remoção da Vila Chocolatão, seus moradores receberam casas em um loteamento no Morro Santana. Entretanto, sem ter condições de viver, naquele local, do ofício que mantinham na Vila – a coleta de papelão –, muitos acabaram vendendo os imóveis e morando na rua. “Onde eu moro, 70% das pessoas venderam a casa por R$ 5 mil a R$ 20 mil, porque não tinham como sustenta-las”, relata José Luís.
Ele também comentou a discrepância entre a situação das pessoas que poderão assistir aos jogos da Copa – seja no estádio, seja pela televisão – e as comunidades mais pobres da cidade. “Não vamos poder assistir à Copa no Beira Rio, porque é muito caro. Esse dinheiro vai para a comida e para o gás. Tem muita gente que nem tem luz para acender a televisão e ver os jogos”, lamentou.
“Problemas de moradia são maiores que a Copa”, afirma geógrafa
A geógrafa Lucimar Siqueira, do Observatório das Metrópoles, afirma que os problemas de moradia em Porto Alegre não são necessariamente originados com a Copa do Mundo, mas acabam se tornando mais intensos em função dos prazos exigidos para as obras do megaevento. “Os problemas de moradia são muito maiores que a Copa. Eles se agudizam (com a Copa) por conta dos prazos”, entende.
Para ela, as remoções realizadas em comunidades da periferia violam o direito das pessoas à cidade, mesmo quando elas recebem uma nova casa, já que a família está indo para uma região estranha à sua criação e, muitas vezes, sem os equipamentos públicos necessários à sua sobrevivência.
Lucimar acredita que a prefeitura de Porto Alegre tenha sido incompetente na realização dos projetos das obras de mobilidade urbana que, agora, estão paradas, por conta de uma verba de R$ 400 milhões que o governo federal ainda não liberou. A geógrafa explica que a prefeitura resolveu bancar os empreendimentos com recursos próprios, mesmo antes de sair a confirmação de que a Caixa Econômica Federal liberaria o financiamento.
Para Lucimar, os recursos liberados em função da Copa do Mundo deveriam ter sua aplicação decididos pelo conjunto da população de Porto Alegre. “A cidade já é um espaço em disputa. Setores empresariais disputam a aplicação desses recursos e os setores populares não conseguem incidir sobre essa política”, compara.
Professor afirma que Lei Geral da Copa gera “Estado de Direito de Exceção”
Professor da Faculdade de Direito da UFRGS, Bruno Miragem falou sobre a Lei Geral da Copa. Aprovado pelo Congresso Nacional, o projeto estipula uma série de regras que fogem ao ordenamento jurídico do país e têm validade somente para o período em que o megaevento ocorre, configurando o que o acadêmico qualifica como “Estado de Direito de Exceção”.
Para ele, a Lei Geral da Copa “cria verdadeiras excrecências” e delega poder de polícia administrativa à FIFA – algo que só pode ser exercido pelo Estado. A afirmação se refere ao fato de que a entidade futebolística tem o poder de autorizar quais produtos poderão ser comercializados dentro e ao redor dos estádios em que ocorrerem os jogos.
O professor recorda que o texto original do projeto de Lei Geral da Copa previa, inclusive, que o Código de Defesa do Consumidor fosse suspenso durante a competição. E critica o fato de a lei prever que qualquer prejuízo que possa ocorrer durante a Copa terá que ser ressarcido pelo Estado às FIFA – que, desta forma, usufrui apenas dos lucros do megaevento.
Bruno alerta para o fato de que uma legislação com essas características tenha sido aprovada no Congresso Nacional. “Hoje é a Copa, amanhã serão as Olimpíadas e depois poderá ser qualquer outra coisa que justifique a anulação das garantias fundamentais”, expressou.